Ao refletir sobre o papel do formador de apoio, a autora dá o exemplo de como ajudar os professores a redescobrir a leitura como ferramenta de estudo
O processo de formação de um professor envolve inúmeros aspectos ligados à dimensão pessoal, profissional e organizacional. Segundo António Nóvoa1:
“O professor é pessoa. E uma parte importante da pessoa é professor. Urge por isso (re)encontrar espaço de interações entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se de seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida”.
Isso quer dizer que, para um professor de fato se envolver num processo de formação continuada, ele precisa passar por intervenções nestes âmbitos, além de construir sua identidade profissional e pessoal de uma maneira complementar. Assim, formadores de professores têm um grande desafio pela frente: despertar um interesse pessoal do professor pela formação, envolvendo-o nos aspectos profissionais e institucionais. Não é algo simples, mas é possível, como relato a seguir, a partir da experiência que vivi como formadora de professoras de três CEIs2 em São Paulo.
Formador de apoio
O início de um novo semestre sempre gera algum tipo de ansiedade, pois estou ali, na ponta de um grande projeto, que envolve profissionais altamente qualificados, atuando em diversas frentes. Eu, simples formadora de apoio3, parceira-irmã das professoras de sala dos Centros de Educação Infantis (CEIs), em meio a este rol de conteúdos e intervenções, trabalhando diretamente para um dos objetivos finais do projeto: a formação dos professores.
Num projeto de formação com duração de dois a três anos, como geralmente acontece no Instituto Avisa Lá, o formador de apoio atua diante de classes diferentes a cada semestre e lida diretamente com as crianças e seus professores. Aí está o diferencial desta proposta, pois oferece ao professor as ferramentas necessárias para repensar sua prática a partir da observação de um outro professor diante de seu próprio grupo de alunos.
Além disso, o formador de apoio justifica e explica sua prática nas reuniões de supervisão, por meio de elementos teóricos necessários para lançar luz ao que foi visto e vivido pelo grupo de professores e alunos. Ao mesmo tempo em que propõe, através das seqüências ou projetos, problemas para as crianças refletirem e avançarem nas diferentes áreas do conhecimento, tornando-os observáveis aos professores, oferece também questões que levam à reflexão destes.
Assim, o formador de apoio atua o tempo todo nestas duas esferas, que envolvem saberes distintos: a situação contextualizada com os alunos e uma situação que tem como principal objetivo a reflexão sobre o que foi feito e a generalização desta experiência, levando-a para outros momentos da prática. Portanto, o formador de apoio é um “duplo professor”: tanto dos alunos, quanto dos professores, para que avancem em suas reflexões sobre os objetos de ensino e as condições didáticas necessárias ao planejamento de situações de aprendizagem.
Desta forma, tanto o planejamento do formador de apoio, quanto os registros que faz dos momentos presenciais devem contemplar todos estes atores do processo de formação. Na prática, o formador de apoio planeja uma seqüência didática sobre desenho, elencando objetivos e conteúdos (o que quer que as crianças aprendam e o que abordará com elas). Em seguida, é preciso que planeje seu projeto de formação para aquele semestre, apontando também os objetivos e conteúdos didáticos de formação (o que quer que os professores aprendam e o que abordará com eles).
Durante sua atuação, o formador de apoio tece relações entre o que faz, suas intervenções com as crianças e o que discutirá em sua reunião com os professores, propondo que generalizem e utilizem em outro contexto (descontextualizem) o que observaram e aprenderam. Aí se cria a situação de dupla conceitualização: há um duplo objetivo por trás de sua atuação.
Incentivo à leitura
Durante o semestre, refleti inúmeras vezes sobre como auxiliar as professoras a avançarem em seus conhecimentos como leitoras de textos informativos, pois observava que, em nossas reuniões, quando nos remetíamos a algum texto ou a uma referência teórica, muitas questões ficavam no ar, sem serem respondidas. Nossos conteúdos didáticos estavam ligados ao desenho e traçado infantil e à reflexão de boas propostas junto às crianças do minigrupo (crianças de dois anos, aproximadamente).
Refletir e planejar boas propostas e ainda assim ter uma competência como leitoras era algo que objetivava para minhas “alunas- professoras”. Para uma de nossas reuniões levei um texto informativo sobre interferência gráfica5. Antes de lê-lo e de discutirmos sobre este tipo de proposta para os pequenos, entretanto, apresentei-lhes o texto, explicando o motivo da escolha e de onde o havia retirado. Solicitei que o folheassem e buscassem dicas de qual seria o assunto principal tratado pelo texto, antes mesmo de lê-lo.
Ao longo de alguns minutos, folhearam, leram títulos e subtítulos e observaram imagens, legendas e ilustrações. Em seguida, dispensei alguns minutos para que falassem sobre o que haviam descoberto com essa “leitura inicial” e quais hipóteses tinham do que se tratava: o assunto principal e como haviam descoberto sem mesmo tê-lo lido. Procurava com a ação explicitar os comportamentos leitores de um texto informativo. Uma situação clara de dupla conceitualização.
Além de refletir sobre as propostas de interferência gráfica que fariam para as crianças, as mais adequadas, e as que os fariam avançar em seus conhecimentos sobre os traçados e percursos criadores pessoais, estavam também aprendendo sobre a maneira mais adequada de se tornarem leitores deste tipo de texto. Algo que somente se aprende fazendo.
Nos momentos da leitura fiz inúmeras intervenções, solicitando que grifassem, falassem o que tinham entendido num determinado trecho e incentivei que tirassem suas dúvidas.
Textos informativos
Assim, a compreensão de que eram minhas alunas, talvez tenha auxiliado aquelas professoras a utilizar mais uma ferramenta para sua atuação como professoras: a leitura de textos informativos que subsidiam a prática pedagógica. Abaixo, trago um trecho de um dos meus relatórios, para ilustrar como aconteceu este encontro com as professoras de um dos CEIs:
Partimos para os procedimentos de leitura de um texto informativo. Solicitei que folheassem o texto, lendo e observando figuras, procurando indícios acerca do assunto tratado. Logo falaram sobre o título e se referiram às imagens de outras interferências gráficas. Realizamos uma leitura conjunta, na qual solicitei que grifassem as partes importantes.
Sem dúvida estes procedimentos precisam ser apreendidos por estas professoras: a todo momento, apesar da leitura pausada e discutida, uma das professoras pedia ajuda para ver o que deveria ser grifado. Precisam de muito investimento em suas competências leitoras. Grifamos todos os conteúdos importantes e discutimos os pontos cruciais de uma boa proposta de interferência gráfica. Ao final, solicitei que voltassem nas partes grifadas e me ajudassem a escrever a ficha de orientação didática, com a seguinte consigna: “Se vocês tivessem que falar para uma outra professora sobre esta atividade de interferência gráfica, o que diriam? O que elas precisam saber para fazer uma boa proposta?”.
Esta intervenção permitiu que voltassem ao texto e relessem partes importantes, destacassem e transformassem estas informações em orientações a outros educadores. Sem dúvida, uma atividade a ser repetida, pois foi bastante proveitosa e creio que tenham ficado com um bom material de consulta para novas propostas.
Virada mágica
Estas são apenas algumas das questões que nós, formadoras de apoio do Instituto Avisa Lá, enfrentamos. Já somos professoras e agora nos formamos como professoras de professores, ou formadoras. Assim como qualquer processo de aprendizagem, este também contém avanços e retrocessos. O que faz a diferença é refletir, registrar e discutir com minhas parceiras mais experientes (formadoras de formadores) sobre cada um deles.
Confesso que é um processo encantador e que, apesar de sabermos muito bem que é um percurso construído com muito trabalho, leituras, estudos, registros etc., num dado momento, parece mágico: conforme o semestre avança e adaptamos nossos planejamentos ao público com o qual trabalhamos, tudo entra nos eixos e se ajusta. Olhar o brilho dos olhos de uma professora que acabou de se perceber uma contadora de histórias, daquela que vê em seu aluno a descoberta da magia de movimentar seu braço e deixar uma marca sobre o papel é algo, no mínimo, compensador.
Permitir que suas práticas, por meio dos registros, reflexões e planejamentos passem de algo irrefletido para uma real apropriação e se tornem autoras. Isso, de fato, é uma grande recompensa!
(Débora Perillo Samori, formadora do Instituto Avisa Lá)
1Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.
2Centros de Educação Infantil (CEI) da União de Núcleos e Associações de Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (UNAS), localizados na Zona Sudeste da cidade de São Paulo – SP.
3Os programas de formação do Instituto Avisa Lá possuem essa função de apoio à prática pedagógica como professor modelo.
4 “Interferência gráfica – uma proposta para alimentar o desenho infantil”, Silvana Augusto. In Revista Avisa lá, número 06. Edição de abril de 2001.
Situações de duplo objetivo
“Entre as situações que conservamos, possuem particular interesse aquelas que perseguem um duplo objetivo: conseguir, por um lado, que os professores construam conhecimentos sobre um objeto de ensino e, por outro lado, que elaborem conhecimentos referentes às condições didáticas necessárias para que seus alunos possam apropriar-se desse objeto. Essas situações contemplam duas fases sucessivas. Cada uma delas corresponde a um dos objetivos apresentados, e podem ser exemplificadas através de uma atividade que utilizamos muitas vezes para trabalhar sobre a natureza da escrita.
Na primeira fase apresenta-se uma proposta que pode ser a produção, em grupo, de uma mensagem dirigida a um destinatário específico. Pode ser um informe para o supervisor ou o diretor da escola, um resumo de algum material bibliográfico para ser compartilhado com outros colegas que não terão oportunidade de lê-lo diretamente. Nesta fase os participantes aprendem a discutir os problemas apresentados e, principalmente, ao analisar os registros de suas interações, eles se conscientizam de que a escrita envolve processos de planejamento, textualização e revisão, de que esses processos são recursivos, de que, ao escrever, é necessário enfrentar e resolver múltiplos problemas.(…)
Na segunda fase, acontece a reflexão sobre as características da situação de aprendizagem em que os professores participaram como alunos. (…) As apreciações do capacitador durante a socialização contribuem para aprofundar a fundamentação da proposta e das intervenções realizadas por ele nas diferentes fases da atividade, assim como para enriquecer as conclusões, proporcionando a informação que considere necessária.”
(Trechos extraídos do livro: Ler e escrever na escola: O real, o possível e o necessário, Delia Lerner. Ed. Artmed, 2002.)
Ficha técnica
Responsabilidade Técnica: Instituto Avisa Lá
Patrocinador: Nestlé Brasil Ltda – www.nestle.com.br
Parceria: União de Núcleos e Associações de Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco – UNAS.
Endereço: Rua da Mina, 38 – Tel.: (11) 2272-0140 – E-mail: unas@uol.com.br
Centros de Educação Infantil (CEIs) envolvidos no Projeto:
Centro de Educação Infantil Mina. Tel.: (11) 2272-2827
Centro de Educação Infantil Paulo Freire. Tel.: (11) 6160-1306
Centro de Educação Infantil Girassol. Tel.: (11) 2274-6865
Formadora: Silvana Augusto
Formadora de apoio: Débora Perillo Samori
Para saber mais
Livros
- “Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és e vice-versa”, A. Nóvoa. In: A pesquisa em educação e as transformações do conhecimento. Ed. Papirus. Tel.: (19) 3272.4500.
- Ler e escrever na escola: O real, o possível e o necessário, Delia Lerner. Trad. Ernani Rosa. Ed. Artmed, 2002. Tel.: 0800 703-3444