Não só para guardar as produções infantis mas, principalmente, esse instrumento auxilia na avaliação formativa das crianças e dos professores
Havia uma inquietação que eu e minha equipe de professores tínhamos ao fim de cada trimestre quando precisávamos formalizar a avaliação das turmas de Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. Já havíamos incorporado o registro e as reflexões contínuas dos educadores aos registros diários. As professoras anotavam as inúmeras atividades desenvolvidas e refletiam sobre a própria atuação, sobre o desenvolvimento dos pequenos e sobre as intervenções necessárias para que todos avançassem. Nesse grupo, compreendíamos a aprendizagem como construção do conhecimento que depende do desenvolvimento em processo dos saberes pedagógicos e das relações afetivas e, por isso, fazíamos uma avaliação contínua e formativa dos avanços de cada criança e também de suas dificuldades.
No entanto, no fim de cada semestre, segundo normas fazia-se necessário explicitar esse processo aos pais. Então, os professores escreviam um longo relatório dissertativo sobre cada integrante de sua turma, mas não estabeleciam relação com as observações anteriores. Os escritos ficavam impessoais, quase iguais para todos e pouco retratavam o desenvolvimento individual. Além disso, muitos adultos não os liam e as crianças sequer sabiam o que estava escrito ali. Diante dessa situação, surgiam os mais variados questionamentos: Como fazer com que todos crianças, familiares e educadores) compartilhassem e analisassem essas avaliações? Será que os envolvidos percebiam os avanços no processo de ensino e aprendizagem? Como tornar isso visível? Foi a partir disso que apresentei à equipe o desafio de elaborar portfólios realmente significativos. Por que e para quê? As situações de avaliação devem permitir o acompanhamento das aprendizagens, sempre mediado pelo conteúdo (o que se aprende) e também pelo sujeito (de que maneira cada um aprende). Nesse sentido, as propostas não devem ser pensadas para medir o que ainda não se conseguiu aprender e sim para selecionar intervenções adequadas que contribuam para avanço de cada um. A avaliação precisa possibilitar que aquele que está sendo analisado possa ter clareza do que já aprendeu e do que ainda falta.
O primeiro desafio, portanto, foi envolver toda a comunidade escolar na vivência de uma avaliação verdadeiramente contínua e formativa. É importante que as crianças, seus familiares e também os educadores tenham clareza sobre o percurso de aprendizagem realizado – as intervenções, as dificuldades, as conquistas e os objetivos ainda por vir. O uso do portfólio na Educação é recente. Em muitas escolas, a prática de arquivar as atividades numa caixa ou pasta é bastante comum, porém não podemos considerar tal coletânea como um portfólio se não houver análise e reflexão de todos os envolvidos no processo educativo. Ele pode ser definido como uma coleção de amostras significativas que evidenciam o desenvolvimento da criança em um determinado período. Essas amostras podem ser iniciadas com um foco em uma aprendizagem específica e, progressivamente, isto pode ser ampliado. Desse modo, os professores terão a oportunidade de experimentar, refletir, adequar-se e dominar esse instrumento de avaliação.
Avanço na oralidade
A professora Débora Corrêa Garcia, que trabalhava com crianças de 2 e 3 anos, tinha como um de seus principais objetivos estimular o desenvolvimento da oralidade. A cada semana, dois da turma traziam de casa um breve relato por escrito (obviamente feito pelos adultos da família) do que haviam realizado no fim de semana (como referência para ela) e um objeto ou uma imagem que desse à criança subsídios para falar sobre o que havia acontecido. O fato de escolher semanalmente um número reduzido de crianças permitia à educadora realizar um registro de qualidade. Passados alguns meses, a mesma atividade se repetia, iniciando um novo rodízio. Acompanhe a transcrição da roda de conversa realizada em 19 de março de 2007:
Professora – O que é essa imagem que você trouxe?
Criança – …
Professora – É um termômetro. Por que você trouxe um termômetro?
Criança – Porque eu tô com febre.
Professora – Você foi ao médico?
Criança – Fui (e mostrou o dedo machucado).
Professora – E depois do médico, você foi aonde?
Criança – Fui na Viviane.
Professora – E quem é a Viviane?
Criança – Fui almoçar.
Professora – Na casa da Viviane?
Criança – Na casa da bisa.
Professora – O que você comeu na casa da bisa?
Criança – Fui na Viviane.
Agora, leia a transcrição da roda de conversa feita em 28 de maio do mesmo ano:
Professora – Conta pra gente onde você foi passear nesse final de semana?
Criança – No círculo!
Professora – Não, é circo! E o que tinha lá no circo?
Criança – Palhaço.
Professora – E como era o sapato dele?
Criança – Redondo.
[…]
Professora – Seus amigos estão dizendo que nunca foram ao circo. Conta para eles como é o circo.
Criança – É uma casa grande. Tinha a caixa da bailarina e tinha palhacinho. Daí a bailarina saiu da caixa e deu uma balança.
Professora – Ela estava no trapézio balançando?
Criança – Sim.
[…]
Professora – E você gostou de ir ao circo?
Criança – Sim. Eu fui no carro do tio Danilo.
Professora – E o que você comeu lá?
Criança – Pipoca.
Ao comparar os relatos, ficou evidente para todos que consultaram o portfólio o avanço em relação à oralidade. Assim, Débora apenas redigiu uma bre ve reflexão que foi anexada aos dois registros anteriores.
Evolução na escrita
É comum, em escolas de Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, que os professores realizem sondagens (ou diagnósticos) mensais para acompanhar a evolução da escrita. No entanto, o encaminhamento a seguir evidencia a preocupação em ajudar a criança a refletir e a perceber seu desenvolvimento nesse quesito. Acompanhe o registro de entrevista feito em 21 de maio de 2007 sobre a evolução do nome:
Professora – Lucas, eu separei aqui três atividades em que você escreveu seu nome. Você acha que elas estão todas iguais?
Criança – Não, aqui (apontando para a primeira) eu não sabia escrever! E aqui (apontando para a segunda), eu escrevia que nem a minha mãe.
Professora – E esta daqui?
Criança – Agora tá que nem igual a da minha tarjeta; é meu nome! Olha: o L, o U, o A, o C e o S! (nomeando todas as letras)
Professora – É verdade, Lucas, agora você já consegue escrever as letras do seu nome.
Uma criança de três anos, por exemplo, reconhece seu portfólio como uma seleção de suas atividades mais importantes mas, provavelmente, ainda não consiga refletir sobre o que aprendeu. No entanto, depois que os pequenos vivenciam e se habituam à prática de elaboração desses álbuns, também têm condições de analisar, refletir e planejar a escolha de atividades significativas e ações necessárias para sua própria aprendizagem. Nesse sentido, as perguntas do educador são fundamentais para auxiliar a criança a perceber dificuldades e avanços. As fichas de entrevista, em que o professor registra o que cada uma percebe, devem ser previamente elaboradas como instrumento de registro da avaliação. No caso do Felipe (5 anos) esta reflexão torna-se evidente.
Envolvimento de todos
As crianças também participam da elaboração de seus portfólios, selecionando trabalhos e atividades que mais gostaram de fazer (e que, portanto, foram mais significativas). Com o auxílio dos professores, podem refletir sobre seu progresso na escrita, na matemática, nas hipóteses e soluções encontradas para problemas, além de pensar sobre objetivos ainda não atingidos. Como o portfólio deve ser encarado como um processo de construção desse percurso, grande parte das atividades a integrá-lo, no início, provavelmente será selecionada pelos educadores.
No entanto, não há dúvidas de que a vivência de situações reflexivas contínuas auxiliará os pequenos na construção de um exercício de escolha e reflexão das conquistas ou dificuldades. Há de se ter clareza de que essa maneira de compartilhar e tomar consciência da aprendizagem é uma novidade para as crianças, seus familiares e também educadores (mesmo quando habituados a refletir sobre práticas e intervenções necessárias). Essa necessidade de conscientizar a todos sobre o quê e como aprendem envolve constante análise e reconhecimento de erros e acertos dos educadores envolvidos.
Se partirmos do pressuposto de que a família é parceira na análise e reflexão de conquistas, os portfólios devem ser enviados para casa periodicamente. A formação dos pais para a compreensão desse instrumento também é de fundamental importância e precisa ser pensada por toda a equipe pedagógica. É possível, por exemplo, enviar fichas de entrevista e reflexão para que os familiares possam pensar sobre alguns aspectos da aprendizagem. Essas contribuições podem ser encaminhadas por escrito para que façam parte dos portfólios, ou o educador pode realizar entrevistas pessoalmente. Por último, é importante compreender que não há receitas. Cada educador, cada equipe pedagógica, cada rede de ensino precisa refletir sobre a maneira mais significativa de elaborar portfólios eficientes. Afinal, dar sentido ao que se faz é o que torna a aprendizagem mais envolvente. Não é assim que fazemos com as crianças? Por isso, os educadores precisam compreender que assim vivenciam um processo de construção que demandará ação, reflexão, reestruturação e novas ações.
(Denise Tonello, Pedagoga, coordenadora de Educação Infantil e primeiros anos do Ensino Fundamental I do Colégio Miguel de Cervantes, em São Paulo – SP, assessora de escolas particulares, colaboradora para produção de materiais didáticos da Editora Moderna e colaboradora na formação de educadores do Instituto Avisa Lá)
Comentários reflexivos da professora
Após dois meses de muitas rodas de conversa, observo que Lucas demonstrou grande avanço em relação à oralidade. Apesar de ainda necessitar de minhas intervenções para organizar seu discurso, já consegue contar experiências vivenciadas. Aos poucos, começa a interagir na conversa com os amigos da classe, em vez de apenas responder ao que lhe pergunto.
Conclusão da professora
Agora Lucas já sabe que ao olhar sua tarjeta consegue traçar as letras de seu nome com a intervenção das professoras. Já reconhece e nomeia as letras de seu nome e também o nome da maioria dos amigos de sua classe.
Mas afinal, o que significa portfólio?
De acordo com a definição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa: Portfólio (primeiros registros na língua portuguesa datam do século XX) é o “conjunto ou coleção daquilo que está ou pode ser guardado num portfólio. Conjunto de trabalhos de um artista (…) para divulgação entre clientes prospectivos, editores, etc.”
Portafolio (primeiros registros na língua portuguesa datam de 1899) é um cartão duplo dobrável, usado para guardar papéis. Pasta de couro ou similar, usada para carregar papéis, cadernos, etc.”
Comercialmente, portfólio é uma amostragem de trabalhos apresentada a clientes ou em entrevistas de trabalho de emprego para a demonstração de suas habilidades e de seu percurso profissionais do tipo. Pode ser montado em uma pasta, ou apresentado em notebooks.
(In SHORES, Elizabeth & Grace, Cathy. Manual de Portfólio: um guia passo a passo para o professor, Artmed. SP: 2001)
Ficha técnica
Denise Tonello – E-mails: denise.tonello@cmc.com.br e denisetonello@terra.com.br Agradecimento às professoras: Andreia Müller, Débora Corrêa Garcia, Elisabete da Silva Duarte do Colégio Nossa Senhora do Morumbi, em São Paulo – SP.
Para saber mais
Livros
- Manual de portfólio: um guia passo a passo para o professor, de Elizabeth Shores e Cathy Grace. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444.
- Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho, de Fernando Hernández. Ed. Artmed. Tel.:0800-7033444.
Revista
- O portfólio pode muito mais do que uma prova, de Joyce Munarski Pernigotti, Liane Saenger, Lígia B. Goulart, Vera M. Zambrano Ávila. Pátio Revista Pedagógica. Ano 3 – no 12. Tel.: 0800-703-3444.