Os seis desafios do formador

Formar professores exige saberes refinados, que a formadora Cristiane Pelissare traduziu em um conjunto integrado de desafios a serem continuamente perseguidos

Tornei-me formadora de professores um pouco por acaso. Esses acasos que com o tempo, e sem a gente perceber, ganham espaço, despertam o desejo, provocam mudanças e se transformam em casos definitivos. Com o tempo, descobri que ser formador de professores1 não é uma tarefa fácil. O ato de formar é complexo, nem sempre linear ou totalmente prescritivo. Constituir-se formador é processual, o que significa, entre outras coisas, tempo, investimento pessoal e disponibilidade para rever-se. Aprender novas formas de ensinar professores pressupõe tempo para testá-las, avaliar seus efeitos, realizar ajustes, reavaliá-las. É preciso ter a oportunidade de trabalhar com seus pares – dentro e fora da escola – partilhar, além de idéias e conhecimentos, os sucessos e as dificuldades desse ofício especializado em transformar práticas de professores.

Constituir-se formador implica desenvolver, progressivamente, um corpo específico de saberes. Saberes esses que nem sempre coincidem com aqueles do ofício de professor (origem profissional da maioria dos formadores de professores). E quais são esses saberes? Que competências, habilidades específicas, capacidades necessitam desenvolver os formadores para que suas ações representem mudanças efetivas dentro das instituições às quais estão vinculados? Na tentativa de dialogar com essas questões e com reflexões de alguns formadores experientes, arriscome a elencar seis desafios que considero postos hoje ao contexto da formação continuada de professores e, especialmente, aos formadores de professores.

1. Criar um contexto investigativo de formação
Recorrendo ao princípio da homologia de processos (que busca coerência entre a formação recebida pelo professor e o tipo de educação que posteriormente lhe será pedido que desenvolva com seus alunos), entendo que a melhor maneira de formar professores investigativos, reflexivos e críticos é expô-los a uma formação mais dialógica e menos transmissiva. Uma formação que privilegie a análise da prática pedagógica por meio de uma metodologia por resolução de problemas.

“Uma capacidade que o formador precisa ter é problematizar a situação de aprendizagem com os professores.”2

“É preciso que o formador tenha a capacidade de analisar as atividades dos professores, saber fazer intervenções e dar devolutivas que auxiliem o professor na sua ação e na reflexão sobre ela. Saber problematizar as situações didáticas, de forma que o professor possa pensar sobre seus saberes.”

Essas afirmações revelam um desafio cotidiano da profissão de formador: planejar situações-problema3 que se convertam, de fato, em momentos de aprendizagem para os professores. Problematizar uma situação de aprendizagem com os professores significa intervir na intenção de destituir certezas, abalar convicções, instaurar dúvidas, desestabilizar. Gosto de pensar com Lino de Macedo4 quando diz que “a situação-problema pede um posicionamento, pede um arriscar-se, coordenar fatores em um contexto delimitado, com limitações que nos desafiam a superar obstáculos, a pensar em um outro plano ou nível. Trata-se, portanto, de uma alteração criadora de um contexto que problematiza, perturba, desequilibra”.

Isso pressupõe uma metodologia que, diferente dos modelos tradicionais de formação, privilegie a construção e o uso de conhecimentos, em vez de apenas a transmissão de informações teóricas.
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2. Analisar as necessidades formativas dos professores
Para diminuirmos o descompasso entre os programas de formação e as necessidades dos professores, é preciso conhecer com maior seriedade e critério as necessidades formativas. Não me refiro aqui apenas àqueles levantamentos de demandas em que os formadores inicialmente “ouvem” os professores para depois delinearem os objetivos da formação, as estratégias a serem utilizadas, os conteúdos a serem ensinados, etc. Ou seja, um movimento de ajuste entre a “procura” de formação e a “oferta” da mesma. Analisar as necessidades formativas é ir muito além desse primeiro diagnóstico.

Parece-me que nem sempre é possível “delegar” a esse diagnóstico inicial toda a condução da ação formativa subseqüente. É preciso ultrapassá-lo.

“Eu achava que tinha que desvelar essas necessidades para os professores. Quando você está lá, no dia-a-dia, as coisas ficam meio obscuras. Um olhar diferente, alguém que está afastado do fazer consegue enxergar coisas não-‘normais’. Eu tento mostrar para elas a necessidade, mas não dizer diretamente. Eu tinha que fazer com que elas pensassem sobre o problema.”

Na maioria das vezes, as necessidades formativas dos professores encontram-se, também para eles, oculta. Então, como eles podem identificar um problema de que não têm consciência ainda? A experiência com a formação de professores tem me mostrado que a própria formação é um veículo desencadeador de novas necessidades. Em outras palavras: um dos objetivos da formação – pautada em uma perspectiva reflexiva – deveria ser a possibilidade de provocar nos professores a “construção” de suas necessidades ou, ainda, de novas necessidades. Tornar o que era inconsciente em um objeto de reflexão.

O diagnóstico das necessidades de um grupo de professores não se esgota no momento inicial da formação. Ele se estende, se configura e se reconfigura no “durante”, ao longo da formação. Estar atento ao movimento do grupo é tarefa do formador. Provocar e ler essas necessidades desencadeadas pela própria formação é um saber específico a ser, progressivamente, desenvolvido pelos formadores. A observação criteriosa e a escuta – não qualquer escuta – representam aliados nessa perspectiva.

“Se eu tivesse que traçar um perfil de formador eu diria que teria que ser observador, ouvinte. Não ouvinte de cabeceira, mas um ouvinte atento, que busca conhecimento, um pesquisador. Que goste de aprender junto.”

A escuta aqui apontada não tem caráter avaliativo e, sim, formativo. O material da observação, da escuta, deve estar a serviço da atuação do formador e, principalmente, da aprendizagem dos professores.

“Ouvir o professor é uma coisa que aprendi e acho que é uma competência que a gente tem que desenvolver cada vez mais. Não é só escutar. Eu tenho que escutar com compreensão. Eu tenho que ter a competência de organizar essa escuta para que ela alimente a minha atuação.”

3. Analisar as práticas dos professores em sala de aula
Para se fazer formador, é preciso ter claro o olhar com que se olha, o modo pelo qual se olha e, ainda, considerar o lugar a partir de onde se olha para determinadas realidades5. Chamo aqui de “realidades” a sala de aula, a prática do professor. O saber didático necessita ser observado, analisado, discutido.

“Falta ao formador uma competência que permita ajudar o professor a olhar para sua prática. Essa é uma competência de formador: saber trabalhar com o fazer didático, com os conteúdos procedimentais.”

Se acreditamos que é através da reflexão sobre sua própria prática que o professor avança e que a ação reflexiva pode ser mais bem realizada pela mediação de um formador, então, rapidamente se conclui que tomar a aula como objeto de análise é um saber imprescindível a ser desenvolvido pelos formadores.

“É preciso que o formador tenha capacidade de analisar as atividades dos professores, saber fazer intervenções e dar devolutivas que os auxiliem.”

Analisar as práticas docentes implica buscar respostas para algumas questões, como, por exemplo: Quais são as situações de classe mais produtivas para uma análise? As “boas” ou as “más”? O que observar? O quanto é possível abordar na devolutiva ao professor? Como colocar os resultados da análise a serviço da aprendizagem do grupo de professores pelo qual o formador é responsável? Ou melhor: quais partes de uma análise são generalizáveis para outras situações?
Acredito que só a discussão coletiva e a reflexão sistemática nos ajudarão a, progressivamente, encontrar respostas para essas questões. Porém, uma coisa é certa: é preciso entrar nas salas de aula, desvelar esse espaço “sacralizado”, tomá-lo como precioso objeto de reflexão. É necessário compreender tanto a prática declarada como aquela desenvolvida pelos professores.

“Às vezes, o professor tem um discurso articulado, mas a sua prática ainda não é tão boa e, às vezes, o contrário, o professor não tem um discurso teoricamente tão adequado, mas as crianças estão muito bem na sala de aula. Se você não entrar na sala de aula não funciona.”

4. Atuar em trânsito entre o papel de professor e de formador
Não é raro ouvir dizer que para ser um bom formador é preciso ter sido um (bom) professor para, assim, conseguir pensar como eles, colocar-se no lugar deles, sensibilizar-se com seus problemas. Longe de negar a legítima importância da influência da condição de professor para a de formador, suspeito que é preciso assumir a diferença entre o professor e o formador. Exatamente por terem funções diferentes, saberes diferentes, posturas diferentes, é que o formador pode propor um outro jeito de olhar, de analisar ou conduzir uma ação.

“Temos que nos colocar ora muito próximos da sala de aula, ora distantes, para assim compreender a complexidade desse trabalho com o professor. Quando eu coloco estar distante, é você conseguir olhar e perceber aquilo em que o professor precisa melhorar em sua prática, e aí falar com ele. Ao mesmo tempo, você precisa estar próximo da sala de aula para compreender quais são as dificuldades dele, seus conhecimentos prévios.”

Em outras palavras, o formador deve ser um componente do grupo, estar próximo dele e, ao mesmo tempo, ser um outro. Isto porque, nessa posição, corremos menos riscos de embaçar nosso olhar, de deixar escapar pistas e sinais em relação à prática dos professores, suas representações, suas teorias implícitas. Ser um outro possibilita distanciar-se, analisar a situação sob pontos de vista muitas vezes ocultos para o professor.

Ainda que o fato de o formador sensibilizar-se com os problemas do professor, olhar para determinada problemática com olhos de professor ou lhes oferecer sugestões de atividades ajude no estabelecimento de vínculos e na criação de um clima de empatia e credibilidade, esse tipo de colaboração dificilmente ajudará o professor a avançar, de fato, em sua prática educativa.

5. Compreender os processos de aprendizagem do adulto-professor
Como os professores aprendem? Como se dá o processo de conhecer desse sujeito-adulto, portador de representações sobre escola, sobre como se ensina, como se aprende, qual o papel do aluno, qual o do professor? O que influencia sua aprendizagem? Será que ensinar adultos é como ensinar crianças? A análise da maneira como os professores aprendem é ainda uma questão pouco debatida no cenário da formação docente.

“A gente sabe um pouco sobre como as crianças aprendem e eu acho que os professores aprendem da mesma forma, assim, fazendo jogos com o conhecimento, fazendo ligações com aquilo que já sabem.”

“De certa forma, quando você lida com criança, você é detentora do saber, não há um julgamento por parte deles. Quando você passa para a função de formadora, você está lidando com parceiros iguais. Eles têm a mesma formação.”

Caminhamos por um terreno ainda pouco explorado, mas arrisco dizer que gerenciar um grupo de professores em formação não é o mesmo que gerenciar uma classe. Atuar como formador de sujeitos adultos (e professores) não consiste simplesmente em pôr em prática as habilidades que desenvolveu em sua origem profissional, mas, sim, adquirir outras que, em geral, o trabalho como professor não exigiu.

“Assim como os professores precisam olhar para seus alunos e trabalhar a partir dos conhecimentos prévios deles, o formador também precisa olhar para o professor.”

“Uma competência que o formador precisa ter é pensar como meu aluno aprende, como ele se aproxima dos objetos de conhecimento.”

Conhecer tais processos poderá estabelecer de melhor forma as fronteiras entre essas duas dimensões: ser-professor e ser-formador, dando, assim, maior visibilidade às especificidades de cada função. Considerando o número de professores que anualmente participa de ações formativas e os gastos públicos que os programas de formação representam, penso que esse é um tema que precisa ser investigado urgentemente, pois novas descobertas sobre as atitudes dos professores frente à formação recebida podem possibilitar reorientações consistentes no terreno da política de formação.

Estudar, investigar profundamente essas concepções que orientam as práticas dos professores permitirá criar dispositivos formativos que favoreçam o processo de identificação das mesmas. Não que, ingenuamente, devamos acreditar que reconhecer as próprias concepções signifique substituí-las, automaticamente, por outras mais coerentes com o conhecimento disponível. Mas, certamente, identificá-las já representa uma maior possibilidade de, por meio do autoconhecimento e da auto-avaliação, reconceitualizar práticas até então cristalizadas.

6. Fazer parte de um coletivo de formadores: o trabalho colaborativo

Aqui gostaria de destacar a necessidade de se instaurar um trabalho de elaboração colaborativa do conhecimento dentro dos grupos de formadores. É preciso considerar que os formadores também são sujeitos em formação, também vivem um processo de desenvolvimento profissional.

“Comecei a pensar mais nesse papel de formadora e ter instrumentos para atuar como formadora à medida que eu encontrei um grupo de pessoas que faziam a mesma coisa que eu e ali a gente tinha um espaço para discutir o que estávamos fazendo.”

“Não é intuitivo, existe estudo. Ver esse lado da formação que eu não via. A gente achava que só conhecer o conteúdo que ia ser discutido bastava. Achava que isso era suficiente para ser formador, mas descobri que não é.”

“É importante encontrar pessoas que possam direcionar seu olhar para alguns aspectos. Eu me lembro que quando eu fazia relatórios, eu tinha uma pessoa que me indagava, me ajudava a ver as coisas.”

As falas dos formadores evidenciam a importância do coletivo na construção do conhecimento. A interação é a engrenagem do saber, exatamente porque nos permite (re) pensar nossas idéias à luz das dos outros.

“A gente sozinho não consegue. A gente acaba se isolando cada um com seus saberes e aí dá impressão que não dá para compartilhar com o outro. Mas uma coisa que acho fundamental é estar refletindo, é essa busca.”

Viver o coletivo nessa perspectiva é trabalhoso, frustrante, às vezes, pois envolve a disponibilidade para viver o conflito, a diferença de opiniões. Exige deslocar-se, sair de si mesmo para considerar o outro. Como diz Saramago6, “se não sais de ti, não chegas a saber quem és… é necessário sair da ilha para ver a ilha…” Entendo que sair de nós, no contexto da formação, significa ser co-responsável pela formação dos seus pares, do grupo ao qual pertence. Antes de finalizar, gostaria, ainda, de ressaltar que se constituir formador de professores pressupõe desejar aprender, e não apenas ensinar. Assumir que é preciso estudar, dialogar com o conhecimento disponível sobre o assunto, investir na própria formação, reivindicar espaços de reflexão para o desenvolvimento dos saberes específicos necessários a sua função.

(Cristiane Pelissari, formadora do Instituto Avisa Lá e do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Letra e Vida)

1Refiro-me a todos os profissionais que assumiram como uma das suas principais tarefas a formação de professores, sejam coordenadores pedagógicos, diretores de escola, supervisores, técnicos de secretarias públicas e assessores pedagógicos

2As falas de educadores que aparecem nesse artigo fazem parte da dissertação de mestrado: A formação dos professores: um tema em discussão. A formação dos formadores de professores: um tema em suspensão – Um estudo sobre os saberes dos formadores de professores. Cristiane Pelissari, Universidade Metodista de São Paulo UMESP, abril de 2005.

3“As competências para ensinar no século XXI” – Philippe Perrenoud e Mônica Thurler (org.). In Situação-problema: forma e recurso de avaliação, desenvolvimento de competências e aprendizagem escolar. Artmed, 2002.

4Lino de Macedo é Professor Titular de Psicologia do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP. É membro do Conselho Consultivo da Revista avisa lá.

5Trecho da pesquisa “Caminhos, procedimentos, armadilhas…”, Neusa M. Mendes de Gusmão. In: Desafios da pesquisa em Ciências Sociais. Centro Rural e Urbano – CERU, n0 8, Série 2. São Paulo,Humanitas, FFLCH/USP, 2001, pp. 73-87.

6In O conto da ilha desconhecida, Companhia das Letras, 1999, pp. 16-17.

As “boas” situações de classe

As situações de classe que são mais produtivas de se analisar são as que podem ser caracterizadas como “boas”, porque são estas situações que permitem explicitar o modelo didático com que se trabalha; porque a reflexão sobre elas torna possível discutir a respeito das condições didáticas requeridas para o ensino da leitura e da escrita; porque as interrogações que o capacitador apresenta sobre seu desenvolvimento levam a elaborar conclusões positivas acerca da natureza do conteúdo que se está ensinando e aprendendo nessa classe e a respeito das intervenções do professor e dos efeitos produzidos por cada uma delas; porque a análise da apresentação do conteúdo e dos pressupostos que se põem em evidência sobre o processo de aprendizagem realizado pelas crianças gera, nos professores, a necessidade de aprofundar seus conhecimentos tanto sobre o conteúdo lingüístico em questão como sobre a aprendizagem desse conteúdo. Optar por apresentar situações “boas” não significa pretender encontrar ou produzir registros de classes “perfeitas”.

(Ler e escrever na escola, o real, o possível e o necessário. Delia Lerner, p.111. Ed. Artmed)

Para saber mais

Livros

  • “Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és e vice-versa”, A. Nóvoa. In: A pesquisa em educação e as transformações do conhecimento. Ed. Papirus. Tel.: (19) 3272.4500.
  • A profissionalização dos formadores de professores, Marguerite Altet, Léopold Paquay e Philippe Perrenoud. Ed. Artmed. Tel.: 0800.703.3444.
  • Era assim, agora não… – uma proposta de formação de professores leigos, Regina Scarpa. Ed. Casa do Psicólogo. Tel.: (11) 3034-3600.
  • Ler e escrever na escola, o real, o possível e o necessário, Delia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800.703.3444.
  • O conto da ilha desconhecida, José Saramago. Ed. Cia. das Letras. Tel.: 11 3707-3500.
  • Processos formativos da docência: Conteúdos e práticas, Maria da Graça Nicoletti Mizukami & Aline M. de Medeiros R. Reali. Ed. UFSCAR. Tel.: (016) 3351-8014

Sites

  • O conto da ilha desconhecida, José Saramago. http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp
  • Programa Letra e Vida – Formação de Professores Alfabetizadores. http://cenp.edunet.sp.gov.br/letravida
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