Documentar o trabalho profissional por meio da escrita é um hábito que precisa ser instituído nos espaços de formação
No programa de formação continuada de educadores do Projeto Capacitar – EI2, o objetivo é atender às crianças de maneira mais significativa. No entanto, para mudar, é necessário que os profissionais sejam reflexivos, e a escrita sobre a própria prática é uma das ferramentas mais importantes desse processo. Escrever não é simples, ainda mais para quem não tem essa prática como hábito. Existem diversas maneiras de se analisar cuidadosamente o que acontece nas instituições educativas. Exemplos são os diários de campo, os projetos institucionais, os relatórios de acompanhamento, as devolutivas dos formadores registradas nos diários, os planejamentos, a narrativa dos projetos didáticos e as sínteses das reuniões de formação.
Há registros que são mais sumarizados e descritivos, tendo como função principal relembrar e reorganizar as ações; há outros que são bastante reflexivos, expondo as dúvidas e os questionamentos que fazem emergir conhecimentos didáticos importantes. As sínteses de reuniões de formação são parte importante da tarefa de pensar a prática de maneira informada.
Atividade formativa
Desde o primeiro ano do Projeto Capacitar – EI, introduzi a síntese como uma atividade formativa para um grupo de 15 coordenadores pedagógicos de unidades diferentes entre Centros de Educação Infantil (CEIs) e Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs) da cidade de São Paulo. No segundo ano, tivemos também a participação dos diretores de todas as unidades, em parceria com seus respectivos coordenadores, o que representou ganhos para a formação. Ao propor o trabalho com a síntese, tive dois propósitos. Primeiro, sistematizar coletivamente os conteúdos trabalhados no projeto de formação para que se tornassem subsídios para as ações formativas dos coordenadores com os professores de suas escolas. Depois, queria que os participantes se apropriassem da construção coletiva do registro de trabalho no grupo.
Quando uma equipe assume essa tarefa, as pessoas se empenham em compartilhar conhecimentos, estratégias, formas e conteúdos, e todos se apóiam em suas escritas individuais. Há a construção de um relato coletivo, que marca o momento, dá concretude ao conhecimento construído, amplia a memória individual para uma que é de todos e favorece que se possa retornar a esse momento em outras situações, inclusive historiando todo o processo. Na estrutura de cada encontro, após a apresentação da pauta do dia e da leitura de um texto escolhido por mim, os coordenadores pedagógicos e diretores liam o resumo do encontro anterior.
Combinamos um rodízio entre as unidades para não sobrecarregar ninguém e para que todos tivessem a chance de fazê-la. Montamos uma estrutura de comunicação e organização por e-mail, que funcionou muito bem. Os autores enviavam a primeira versão para mim, sempre com uma semana de antecedência, para que eu pudesse encaminhá-la a todos. A intenção era que cada um imprimisse uma cópia para acompanhar a leitura na reunião seguinte. Após leitura e revisão coletiva, os autores faziam as alterações necessárias e me enviavam o texto finalizado. Minha tarefa era fazer o texto circular entre todos e, se fosse o caso, inserir algumas s informações contidas em transparências utilizadas e em quadros sistematizados com das reflexões feitas durante os encontros, entre outras colaborações. Por fim, todos recebiam o texto final para que fosse impresso em suas unidades e compusesse suas pastas.
A revisão era feita por escolha do grupo após o término da leitura compartilhada. A riqueza desse momento foi a contribuição de todos: o uso das informações anotadas individualmente, a retomada dos conteúdos e das estratégias formativas da reunião anterior, os esclarecimentos das dúvidas e, por fim, as questões de ortografia e de gramática.
Do desafio ao prazer
A primeira síntese de cada ano sempre foi de minha responsabilidade. Naquele momento, discutimos qual a função desse modelo textual em um projeto de formação. Durante o ano, os coordenadores e os diretores produziram escritas em duplas ou trios, mesmo que de unidades diferentes. Segundo eles, o maior desafio era transformar as próprias anotações em boa síntese. A estruturação de um bom texto ajuda a organizar as idéias e o próprio pensamento. Auxilia também a se colocar no lugar do leitor. Madalena Freire2 afirma: “Uma coisa é escrever, ser escritor-reprodutor e reapresentador de linguagem escrita. Outra é, no exercício disciplinado do escrever, tornar-se escritor-sujeito-produtor de linguagem escrita. É nesse sentido que, nesta concepção de educação, acompanhar e instrumentalizar o processo de formação de educadores envolve trabalhar o resgate do processo da alfabetização dos mesmos: resgate de seu pensamento como sujeito- escritor, produtor de linguagem escrita. Reaprender a ler e a escrever comunicando pensamento, construindo conhecimento”.
Colocar a síntese em evidência na formação, nesse caso, significa aprender a fazê-la em situações bem diferentes, como um processo inicial para posterior aprofundamento sobre o seu papel na reflexão. Escrever é tão necessário ao professor como ao coordenador, que é (ou deveria ser) o formador da equipe pedagógica de sua instituição escolar. Para esse profissional, a elaboração da síntese de cada encontro de formação do qual participa vai além da análise sobre as concepções dos professores. Traz à tona, também, as ações de parceria e a decisão sobre os conteúdos formativos previstos para a capacitação de sua equipe. A organização de todos os resumos produzidos durante o projeto torna-se fonte de inspiração e pesquisa para eles ao planejarem suas reuniões com os professores.
O trecho abaixo foi escrito pela coordenadora pedagógica Silvia Rapp Leite, do CEI J. G. de Araújo Jorge. Ela revela o significado de escrever a síntese e, ao mesmo tempo, a relação que estabeleceu entre o que foi lido no encontro anterior e o que se realizou durante ele.
“A cada reunião, sou uma. Pela disposição que trago e pelo que me influencia a cada leitura compartilhada. Somente depois de refletir para fazer esta síntese é que percebi que sempre navego entre o que acontece no encontro e o que foi lido logo de início. Meio cá, meio lá, chego à conclusão que escrever uma síntese é contar uma história, a história da reunião. No princípio, a formadora leu o resumo do encontro anterior e procedemos aos ajustes necessários, deixando claro que dessa fez parte a opinião de quem a escreveu, um fator altamente positivo”.
Em seguida, um trecho da síntese escrita por Vânia S. P. Moraes, coordenadora pedagógica do CEI Parque Cruzeiro do Sul. Ela destaca as questões do grupo a partir da leitura prévia do texto de Adriana Klysis, sobre faz-de-conta.
“Foi aberta uma reflexão coletiva, na qual foram levantados alguns pontos e questionamentos, como:
– Qual o nosso papel no jogo infantil?
– A necessidade de transformar o espaço respeitando as vivências das crianças.
– A questão do brincar nos remete somente à organização do espaço físico?
– Brincar é fundamental para o desenvolvimento?
– Brincar com qualidade.
– Brincar ligado ao papel social, gênero e cultural.No geral, o texto mostra que o professor deve propiciar a convivência e o respeito, criando espaços para que as crianças possam brincar e recriar suas próprias brincadeiras. Algumas coordenadoras e a formadora do Avisa Lá fizeram sugestões de como podemos orientar nossos professores a intervir nos cantos de faz-de-conta”.
As sínteses precisam respeitar o foco principal: sintetizar e registrar o que foi trabalhado no encontro de maneira clara ao leitor, priorizando as reflexões sobre a prática. Mas, como coordenadora do grupo, estimulei a elaboração pessoal e o estilo próprio de escrita para quem estava responsável pelo registro. Durante o processo de formação, dividi com eles minha admiração por autores como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Machado de Assis (poemas), Pablo Neruda, Regina Machado, Carlos Heitor Cony, Bartolomeu Queiroz, Clarice Lispector, Khaled Hosseini, entre outros. Aos poucos, observamos que nossas conversas sobre esses textos estimulavam a qualidade e a liberdade de escolha do estilo de cada um para a elaboração das sínteses. Alguns mostraram seu lado poético; outros, o humor.
A evolução da qualidade das sínteses e o crescente envolvimento de todos com a sua elaboração e seu uso como fonte de estudo para a transformação constante da prática foram observados por todos. O cuidado ao produzirem esse tipo de registro tornou-se cumplicidade no grupo, um produto coletivo sobre as conquistas de todos na formação com seus professores. A coordenadora Elaine Prático e a diretora Solange Oliveira (EMEI Profa. Laura da Conceição Pereira Quintaes) elaboraram com muito capricho o book de sínteses dos dois anos do projeto Capacitar-EI, com fotos das diferentes creches e EMEIS participantes do processo, comprovando o compromisso de todos com o processo da formação.
(Simone Alcântara, formadora do Instituto Avisa lá, Coordenadora de Projetos do Museu da Pessoa e Consultora de Dança e Movimento)
2Projeto Capacitar – EI do Instituto Avisa lá, tem parceria com Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo, Instituto C&A e Gerdau
3Pedagoga, autora do livro A paixão de conhecer o mundo. Ed. Paz e Terra.
Uma síntese bem humorada
Era treze de agosto, não bastava treze… era agosto. Não que eu seja supersticioso… Talvez tenha saudade do treze verdadeiro que se foi… bom… Mas isso é outra história. O dia estava quente. Solange (EMEI Profa Laura da Conceição Pereira Quintaes) iniciou a leitura da síntese do encontro passado. Após leitura, Simone elogiou dizendo que cada síntese traz uma novidade… Melhor eu não decepcionar! (rs)…
…Iniciamos o encontro. Simone solicitou alguém para o próximo registro. Era possível ouvir uma mosca voar… Como ninguém se oferecia, ela falou em sorteio… Pensei comigo “sorteio é demais!” Me prontifiquei a fazer o registro do encontro. Dessa vez, Simone trouxe “o bolo da festa”. Apresentou um livro de cultura brasileira. Contextualizando a lenda do Saci, perguntou se alguém já havia lido. Falou sobre o autor, ilustrador, editora, glossário com várias figuras do nosso folclore. Escolheu a história do casamento da Cuca com o Saci-Pererê… Percebi que todas as histórias eram muito interessantes… As crianças adorariam ouvir e contar essas histórias…
(Coordenador Lauro Cornélio da Rocha, do CEUEMEI Dr. Carlos Olivaldo de Souza Lopes Muniz)
Ficha técnica
Programa: Capacitar Educadores
Iniciativa: Instituto C&A e Grupo Gerdau
Responsabilidade técnica: Instituto Avisa Lá
Formadoras: Damaris Gomes Maranhão, Elza Corsi de Oliveira, Simone Mattos de Alcântara Pinto e Débora Perillo Samori
Coordenadoras: Ana B. G. Brentano e Maria Virgínia Gastaldi
Realização: Coordenadorias Municipais de Educação de São Mateus, São Miguel e Itaquera – Cidade de São Paulo – SP
Equipe: Equipes Pedagógicas dos CEIs e EMEIs.
Confira no site www.avisala.org.br a relação completa dos participantes.
Para saber mais
- Bem-vindo, Mundo! Criança, cultura e formação de educadores, Silvia Pereira de Carvalho, Silvana Augusto e Adriana Klisys (org.). Instituto C&A, Instituto Avisa Lá e Editora Peirópolis. Tel.: (11) 3816-0699.
- Observação, registro, reflexão. Instrumentos metodológicos I, Madalena Freire, com contribuição de Fátima Camargo, Juliana Davini e Mirian Celeste Martins. Espaço Pedagógico, Instituto Paulo Freire. Tel.: (11) 3021-1168.
- Observação, registro e reflexão. Instrumentos metodológicos I – série seminários, Madalena Freire e equipe do Espaço Pedagógico, Instituto Paulo Freire. Tel.: (11) 3021-1168.
- A paixão de conhecer o mundo, Madalena Freire. Ed. Paz e Terra. Tel.: (11) 3337-8399.
- A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica, Philippe Perrenoud. Ed. Artmed. Tel.: 0800.703.3444.
- Era assim, agora não…: uma proposta de formação de professores leigos, Regina Scarpa, Ed. casa do Psicólogo. Ed. (11) 3034-3600.
- O diálogo entre o ensino e a aprendizagem, Telma Weisz e Ana Sanchez. Ed. Ática. Tel.: 3990-1616.