Aprender com a criança e com a formação

Ensino fundamental de nove anos desafia o educador a melhorar sua intervenção pedagógica para ensinar crianças de 6 anos e a aprender mais sobre a própria profissão

O ingresso de crianças de 6 anos ao Ensino Fundamental da rede pública municipal de São Paulo gerou nos professores expectativa de grandes mudanças na escola. Talvez por acreditarem que tivessem de reaprender a dar aula para os egressos dos espaços de Educação Infantil.

Apesar da discussão, da elaboração e da divulgação de orientações didáticas e expectativas de aprendizagem do 1o ao 9o ano do Ensino Fundamental – que teve início, em 2008, na rede de ensino paulistana –, a chegada dos pequenos à sala de aula, em 2010, em alguns casos, teve o impacto observado no relato de Sônia Gabriela Queiroz Ferreira, professora de Educação Infantil e de Ensino Fundamental (Ciclo I)1:

Pela primeira vez, em 12 anos de magistério, fui obrigada a pegar um 1º ano com crianças de 6 anos. Assustada com o que vinha pela frente, comecei a pesquisar, perguntar a colegas, rever materiais de formação. Com isso, consegui me situar melhor na classe. Agora (setembro de 2010), já tenho mais de 70% dos alunos alfabéticos e fico emocionada ao ver o progresso de cada um, a cada dia.

Ainda assim, tenho inúmeras dúvidas cotidianamente, como saber o conteúdo adequado e se posso ou não exigir mais da minha turma devido à sua crescente evolução. Enfim, estou sempre em busca de saber mais e também sempre em conflito com minha prática. Em uma da aulas, minha aluna-pesquisadora2 Luciene chegou aflita com uma atividade que a professora da faculdade havia pedido para ser entregue em dois dias.

Tratava-se de um relatório que deveria descrever e analisar a reescrita individual da classe em que ela estagiava. Imediatamente, respondi que era impossível fazer tal coisa, pois a nossa sala é de 1º ano do ciclo de nove anos, e nós ainda estávamos alfabetizando os pequenos. Além disso, em minha pouca experiência como alfabetizadora, disse que em um 1º ano não se trabalha reescrita nem produção de texto. Doce ilusão! Ela, então, pediu-me se podia tentar. Deixei. Nesse dia, fui para casa com a seguinte dúvida: será possível que crianças recém-alfabéticas podem escrever um texto?

Minha dúvida foi crescendo e aguardei ansiosa o dia de formação para perguntar isso à formadora da Diretoria Regional de Educação da Penha (DRE). No dia seguinte, Luciene propôs ao grupo a atividade. Primeiro, leu a história Os três porquinhos3. Em seguida, fez uma roda de conversa para que as crianças se expressassem sobre o texto. Depois, entregou uma folha de linguagem a cada uma para que reescrevessem a narrativa.

Inacreditável! Passados alguns minutos, boa parte da turma já havia escrito os textos. Algumas crianças, bastante centradas, usavam até mesmo o verso das folhas. Eu não acreditava no que via. Parecia uma classe de 3º ou 4º ano. Fiquei abismada e, por que não dizer, surpresa e emocionada. Havia textos curtos e longos, todos coerentes. Muitos erros ortográficos, lógico, mas com sentido.

Agora sei que posso, sim, trabalhar reescritas ou produções de texto com essa faixa etária sem ser a escriba sempre, pois eles são capazes de realizar este ato e outros tantos se forem desafiados. Vou levar essa experiência comigo para sempre! A gente aprende a cada dia nessa profissão.

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Aprendizagem docente
É importante destacar que Sônia participa do curso de educação a distância A criança de seis anos no ensino fundamental de nove anos, uma parceria da Secretaria Municipal de Educação (SME) com a Fundação Santillana4. A professora também está envolvida com a formação continuada presencial oferecida pela DRE Penha, por meio do Programa Ler e Escrever – Prioridade na Escola Municipal5, que, no primeiro semestre, privilegiou a alfabetização e as práticas de leitura na escola e, no segundo, deu continuidade aos estudos, com ênfase na alfabetização e na produção de textos.

Nesse contexto, Sônia declara que, mesmo com o susto inicial por ter de dar aula para os pequenos, planejou sua rotina de trabalho, procurando se valer do que aprende nas formações das quais participa. Ela segue a orientação recorrente de sua formadora: garantir aos alunos o contato com a cultura escrita, oferecendo-lhes bons livros, fazendo a leitura em voz alta dos textos, além de atividades diárias de reflexão sobre o sistema de escrita, de maneira contextualizada, com brincadeiras de roda organizadas na sala de aula e fora dela. Além disso, incentiva a leitura de diversos gêneros textuais, para que a turma desenvolva um comportamento leitor, aprenda a linguagem escrita e adquira repertórios com bons modelos de textos, que poderão ser utilizados para a reescrita coletiva, tendo inicialmente a professora como escriba.

Sem antes ousar permitir que as próprias crianças escrevessem, a professora analisava as sondagens de sua turma e organizava agrupamentos produtivos com vistas a encaminhar, pela primeira vez, uma escrita de contos em duplas. Entretanto, a demanda extraordinária apresentada pela estagiária Luciene – que tem todo o incentivo da SME e da universidade na qual estuda –, revela à professora o seguinte questionamento: a criança de 6 anos é capaz de escrever um texto sem que o adulto atue como escriba?

O olhar da aluna-pesquisadora, aparentemente desprovida de qualquer expectativa sobre a possibilidade de os pequenos de 6 anos produzirem um texto, colocou em xeque a concepção de Sônia a esse respeito. Prevaleceu sua generosidade em relação à estagiária, sem a qual não seria provável propor, nesse momento, tal desafio em sua sala de aula. Afinal, a partir de que idade a criança é capaz de produzir sozinha um texto escrito? A experiência aqui relatada é a prova de que as crianças conseguem escrever textos, antes do tempo esperado, graças aos contextos de leitura e de escrita coletiva proporcionados aos pequenos desde o início do ano.

A imersão dos alunos em práticas letradas foi fundamental para o desenvolvimento da competência escritora de todo o grupo. Sônia descobriu que não havia ensinado os conteúdos necessários para a construção do sistema de escrita em sala de aula e que o objeto de ensino é o comportamento leitor e escritor, que se constitui com base nas práticas de leitura e escrita realizadas na escola6. Os alunos também podem ser grandes mestres em sala de aula do 1º ano, pois ensinam muito bem o que aprendem e descobrem o que o professor pode ensinar.

Diante dos fatos, Sônia percebeu que algo havia mudado. Ao refletir profundamente sobre suas ações ela foi capaz de desmontar a concepção de que a produção de texto dos alunos somente é possível após a construção do sistema de escrita. Confundir produção de texto com a possibilidade de grafação dos alunos impediu que, até então, lhes fossem oferecidas outras possibilidades de aprendizagem. Assim, a atividade de reescrita feita pelo aluno faz parte de sua rotina de trabalho de maneira mais consciente e reflexiva.

Produção de criança de seis anos

O desenvolvimento da escrita (produções de criança de seis anos)

Como aprendem os professores?
A experiência descrita permite concluir que os professores não aprendem a ser melhores profissionais apenas com cursos, encontros de formação, leituras de guias e de livros diversos, pois, muitas vezes, é difícil identificar as situações trabalhadas nos cursos de formação e aquelas vividas no dia a dia da escola. Além disso, parece impossível abandonar de vez concepções e práticas antigas, substituindo-as por propostas diferentes das que adotam normalmente. Assim, a internalização de conceitos e de práticas recorrentes, não raras vezes, funciona como verdadeira muralha, difícil de ser demolida. O relato de Sônia também ratifica essas ideias.

Suas convicções iniciais acerca do percurso que torna possível às crianças produzirem e grafarem os próprios textos ofuscam sua visão sobre os saberes e as reais possibilidades da turma. Ainda que estivesse atenta às sondagens e às hipóteses de escrita dos pequenos, foi necessário que a aluna-pesquisadora lhe propusesse o desafio de experimentar novas práticas.

É interessante observar o avanço da turma. O fato de, em setembro, serem capazes de produzir e de grafar os próprios textos – ainda que com erros de ortografia – demonstra o importante e competente trabalho de Sônia. Mesmo que não tivesse compreendido a importância da organização de rotinas que favorecem o desenvolvimento do comportamento leitor e escritor, sua disponibilidade para experimentar e aprender foram fundamentais.

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A consciência do que fazemos nem sempre se conforma antes da prática, e tratar teoria e prática isoladamente não contribui para a construção de conhecimento sobre a complexidade do movimento que acontece em sala de aula. Segundo Sonia Penin, para que haja a construção do conhecimento, é preciso coordenar vivido e concebido. “A utilização de concepções existentes, sem reflexão, pode tornar-se meros discursos; a submissão à vivência pode acarretar uma prática alienada”7.

Assim, do ponto de vista de formadores de professores, vale destacar alguns aspectos que precisam ser mais bem investigados:

  • A recorrência dos conteúdos tratados nos cursos de formação continuada de professores em serviço, uma vez que o educador assimila o que é observável para ele no momento;
  • A participação do olhar do outro sobre a prática da sala de aula, nas tarefas realizadas;
  • A manutenção de um canal de escuta ao profissional, espaço em que ele possa revelar suas hipóteses e descobertas;
  • A importância do incentivo ao docente para que ele expresse e verifique suas hipóteses, pois é na prática da sala de aula que elas se confirmam ou não, e esse é o caminho para as aprendizagens;
  • O desenvolvimento de estratégias formativas, cujo ponto de partida seja a sala de aula, local em que o formador possa tematizar as práticas dos professores e mediar situações que lhes possibilitem a construção diária do conhecimento.

Como conclusão provisória, vale observar que esse mundo fascinante e complexo da vida escolar precisa continuamente ser desvendado pelos profissionais da educação. Para isso, o enredamento de todos pela cultura geral e pela cultura escolar, em particular, deve estimular o conhecimento, o reconhecimento e a circulação por novos caminhos com vistas à contínua construção e qualificação do saber docente.

[Maria do Socorro Ferreira Gomes, pedagoga, pós-graduada em Alfabetização pelo Instituto Superior de Educação Vera Cruz (ISE-Vera Cruz) e formadora de professores e coordenadores da Diretoria Regional de Educação da Penha (DRE), em São Paulo – SP, e Silvia Moretti Rosa Ferrari, pedagoga, Mestre em Educação, Supervisão e Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Assessora Técnico- Educacional de Ensino Fundamental e Ensino Médio na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo – SP]

1Professora do CEU EMEF Profa Rosângela Rodrigues Vieira, da Prefeitura do Município de São Paulo – SP.

2A aluna-pesquisadora faz parte de um programa para futuros professores da rede de ensino, fruto da parceria firmada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) e Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) com as instituições de ensino superior (IES) de âmbito estadual. Alunos de Pedagogia e de Letras apoiam professores-regentes, nas classes de 1º ano do Ensino Fundamental (Ciclo I), em atividades de alfabetização. Denominados alunos-pesquisadores, eles desenvolvem pesquisa de investigação didática sob a orientação de seus professores nas instituições em que estudam.

3Os três porquinhos, Coleção Contos Clássicos. Editora Ciranda Cultural: São Paulo. Tel.: (11) 3761-9500. Site: www.lojacultural.com.br/magento /index.php/contato/

4A Fundação Santillana é uma entidade privada, da qual faz parte a Editora Moderna que se dedica a incentivar a educação e a promoção cultural. O curso propõe reflexões sobre as necessidades das crianças dessa faixa etária e como proceder para planejar o trabalho em sala, de modo que elas sejam contempladas em suas especificidades.

5Este Programa tem como meta alfabetizar todos os alunos até o 2º ano do Ensino Fundamental.

6Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Délia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br

78 A aula: espaço de conhecimento, lugar de cultura, de Sonia T. de Sousa Penin. Ed. Papirus. Tel.: (19) 3272-4500. E-mail: editora@papirus.com.br. Site: www.papirus.com.br

Ficha Técnica

  • Diretoria Regional de Educação da Penha (DRE) Endereço: Avenida Apucarana, 215 – Tatuapé. CEP: 03311-000 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3397-5070 E-mail: smedrepenhaadm@prefeitura.sp.gov.br Site: www.portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Regionais/108900
  • Maria do Socorro Ferreira Gomes E-mail: mariadosocorro2001@yahoo.com.br
  • Silvia Moretti Rosa Ferrari E-mail: silviaferrari@uol.com.br

Para Saber Mais

  • Ensinar: tarefa para profissionais, de Beatriz Cardoso (org.). Ed.  Record. Tel.: (21) 2585-2000. E-mail: mdireto@record.com.br. Site: www.record.com.br
  • Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Délia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br
  • Estágio e docência, de Selma Garrido Pimenta e Maria Socorro Lucena Lima. Ed. Cortez. Tel.: (11) 3611-9616. Site: www.cortezeditora.com.br
  • A aula: espaço de conhecimento, lugar de cultura, de Sonia T. de Sousa Penin, Ed. Papirus. Tel.: (19) 3272-4500. E-mail: editora@papirus.com.br. Site: www.papirus.com.br
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