Faz parte da profissão de educador acolher a diferença e, ao mesmo tempo, incentivar sua turma de crianças a ser um grupo de verdade
Este ano aconteceu. G., 3 anos, constava na lista da minha sala com um asterisco. Ele chegou risonho. Antes dele, vieram os pais, ansiosos e amedrontados, mas firmes no propósito de oferecer ao filho o melhor que pudessem – inclusive a experiência de ir à escola. Eu já sabia qual era o diagnóstico do menino pela minha coordenadora, parceira de verdade: transtorno de desenvolvimento global (termo que diz tudo e, ao mesmo tempo, nada). O fato é que o garoto não pode andar sozinho e, por isso, tem todas as complicações decorrentes dessa dependência. O primeiro gesto de G. para mim foi estender os braços para que eu o abraçasse, ao retirá-lo do colo da mãe. Uma proposta de abraço acompanhada de um sorriso imenso. Ali, perdi o medo e o envolvi. Não abracei só seu corpo, mas também a ideia de estarmos juntos durante esse período, aprendendo tudo o que pudéssemos um com o outro. Só então soube que, na verdade, estava abraçando um igual.
G. faz tratamento na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD)1 uma vez por semana e há possibilidades, com muito treino, estimulação e, principalmente, fé, que um dia possa andar sem precisar da ajuda de ninguém. Por isso, fiz a opção de usar o mínimo possível a cadeira de rodas com ele. Para ir de um lado para outro, ele engatinha e também vai no meu colo, ou tentando andar enquanto eu o apoio pelos braços, impulsionando-o com minhas pernas. Embora isso tome um tempo a mais, e eu tenha outras 26 crianças sob minha supervisão, que nem sempre têm paciência de esperar, além das recentes dores nas costas bem fortes à noite, tem valido a pena estimulá-lo assim.
Rede de apoio
Outro dia, ao irmos caminhando até a mesa do lanche, pelo corredor da escola, comentei que o achava muito mais durinho, que suas pernas pareciam mais firmes e que os passos também estavam mais rápidos. Ele me disse: “Você não tem medo que eu caia?” Respondi: “Não. Você não tem medo de cair?”. E ele, como sempre, tirando-me o rebolado: “Não. Sei que você tá atrás de mim para me segurar, oras.” Na hora, não disse nada, mas depois fiquei pensando que devia ter dito a ele que eu também era passível de queda, que minhas pernas também fraquejam, que meu ânimo também cai de vez em quando, que minhas soluções e minhas ideias nem sempre funcionam, que minha saúde quase nunca está 100%, mas que, como ele, continuo caminhando porque atrás de mim também tem gente me segurando, e que por causa desse povo todo, não tenho medo de cair.
Aninha – assistente técnico-escolar – por exemplo, me ajuda a levar G. de um lado a outro, trocá-lo, além de conversar com ele e trocar ideias comigo sobre as coisas que observa e que ele diz. Ela não deve ter ideia de quanto é precioso todo o amor que coloca no trabalho. Sem ela, certamente, eu não conseguiria. Também tem a Marilene – professora auxiliar –, que me ajuda nesse contato mais próximo sempre que preciso, como levar o garoto no alto da casinha e no escorregador e ensaiar para a festa junina. Trata-se de uma pessoa absolutamente confiável, que me substitui com muita eficiência quando estou ausente. Elis, Lúcia e Geni são as meninas da limpeza, que estão sempre por perto para me dar uma força quando grito por socorro e, acima de tudo, mostram-se simpáticas e carinhosas com ele e comigo. Tem a Rojane, que sorri sempre que nos vê passar pelo corredor e faz o lanche das crianças com carinho. Tem também a Meire, uma coordenadora incrível, que sempre me apoia, incentiva, procura ajuda especializada, segura a onda quando fico indignada com essa estrutura da prefeitura, traz informações e sempre transmite uma segurança imensa para os pais ao mostrar que confia no grupo de educadoras. Regina e Valéria cuidam da gestão da escola com sensibilidade, firmeza e segurança. As amigas e colegas Valéria e Dani sempre me ajudam a cuidar das crianças e a dividir as coisas pedagógicas e afetivas do dia a dia. Elas me puxam para cima sempre. Roseli e Karina já me ensinaram muito quando foram professoras de outros alunos portadores de deficiência, pois dividiram comigo esse momento, que tanto me ensinou e me preparou. Sem falar de todas as demais professoras da escola, que também têm histórias emocionantes para contar. As motoristas dos transportes escolares, Mônica e Ana, sempre levam e trazem G. em segurança e compartilham e se interessam por seus avanços. Tem a Paula, que é uma eficiente e disposta secretária.
O pai e a mãe do pequeno, apesar de tanta angústia e insegurança, confiam em todas nós e me dão força diariamente ao valorizar a escola e o trabalho realizado. A.V., H., L., A. B., A., o outro G. e todas as demais crianças que estão sempre me ajudando a pegar mochila, a limpar o nariz, a recolher o agasalho, a amarrar o tênis, a pegar a cadeirinha e, principalmente, a cuidar de G. de um jeito amoroso e natural. Como é possível perceber, há uma equipe me segurando. Pessoas bem intencionadas, que me sustentam, que me apoiam do mesmo jeito que faço com G.. Essas pessoas não são como uma cadeira de rodas, nem como uma muleta, equipamentos frios, sempre iguais. Elas se envolvem comigo e com ele. Sem esse time maravilhoso, do qual tenho orgulho e com quem tenho enorme prazer e tranquilidade de trabalhar, nós dois estaríamos mais lentos, mais tristes e menos motivados. Agradeço a todos os profissionais pela força e pelo carinho. Sei que se G. pudesse ler o que escrevo agora, agradeceria também. Por causa de todos eles, nós não caímos, e vamos andar cada vez mais rápido.
Todos são incluídos
Toda vez que a palavra inclusão é mencionada no ambiente escolar, logo imaginamos incluir alguém com uma deficiência explícita. Pensamos em alguém com cadeiras de rodas, com transtorno mental ou psíquico, que não ouve, que não fala ou não escuta bem, e que precisará de ajuda para conviver e aprender em um ambiente com outras pessoas ditas normais. Essa fantasia em torno da deficiência torna mais difícil a discussão e o amadurecimento de educadores e famílias. Minha experiência com G. me fez acordar para uma realidade – a diferença (seja ela uma deficiência, uma qualidade ou simplesmente uma característica) faz parte do ser humano. Por isso, todos, em algum momento da vida, precisam ser incluídos.
Fiquei pensando nas centenas de crianças que cruzaram comigo nesta vida. Cada um era de um jeito e me via de um jeito. Para cada um dei e recebi coisas diferentes. Tímidos, agressivos, falantes, inteligentes, arredios, desconcentrados, lunáticos, medrosos, gordinhos, magérrimos, crianças com alguma necessidade alimentar ou de saúde sutil, carentes, mimados, agitados, terríveis, abandonados, chatos, malvados, tristinhos ou alegrinhos, com famílias complicadas… Cada um deles mereceu de mim um olhar especial, momentos de dedicação, uma conversa individual, um carinho diferente. G. é apenas mais um deles. Faz parte da profissão de professor acolher a diferença e, ao mesmo tempo, incentivar a turma a ser um grupo de verdade.
Muitas vezes, tive alguma deficiência; aliás, tenho até hoje. Quando torci o pé e precisei de uma rampa no local de trabalho, pensei na vida das pessoas que usam cadeiras de roda e muletas todos os dias. Não faz muito tempo, peguei uma conjuntivite fortíssima e pensei como é horrível letras tão pequenas para indicar as coisas em quase todos os lugares, quando a gente mal consegue enxergar. Penso nas minhas dificuldades que não consigo resolver, nas minhas incapacidades, nas coisas que não consegui aprender. Reflito sobre as vezes que não fui aceita em um grupo ou lugar por não corresponder às expectativas alheias, quando fui pré-julgada. Tudo isso doeu, mas passou. Imagino como deve ser reviver essa situação em todos os momentos. Ao conviver com G., percebo que mais do que a consciência racional de uma deficiência, seja ela qual for, é preciso sensibilidade e firmeza para encará-la e transpô-la. A verdade é que todos precisamos ser incluídos. Aí está o bonito e o difícil: se é pelo outro que percebemos nossas diferenças, é também na empatia do que nos faz iguais que encontramos o conforto e a superação. Somos iguais por sermos humanos. Isso não é diferente a nenhum de nós.
(Karina Cabral, psicóloga e professora da EMEI Jardim Monte Belo, em São Paulo-SP)
1Entidade privada, sem fi ns lucrativos, fundada em 1963, que trabalha o bem-estar de pessoas com defi ciência física. Além da unidade de São Paulo, há oito espalhadas pelo Brasil. Site: http://comunidadeaacd.ning.com
Como um abraço
Como todo abraço, inclusão envolve duas pessoas, disposição de corpo, mente e alma, causa medo e prazer, traz conforto e aprendizado, é necessária para se continuar crescendo como ser humano, é desejável e importante, exige um olhar para o outro com base em si. Desde que comecei a ouvir mais sobre a proposta ousada de trazer para a sala crianças com algum tipo de deficiência – física, intelectual, psicológica – sabia que uma hora chegaria a minha vez. Acompanhei de perto e de longe amigas que receberam crianças e adolescentes com deficiências auditivas, visuais, motoras, cognitivas, afetivas. Vi o quanto todas elas sofreram para conseguir compreender a deficiência explícita de seus alunos.
Acompanhei o descaso das instituições – públicas e privadas – com essa situação, deixando para as professoras e familiares a árdua tarefa de dar um jeito de praticar a inclusão a todo custo. Acompanhei também famílias inseguras, educadores despreparados, crianças assustadas, infraestrutura precária, muito choro, muita revolta, muito estranhamento. Por tudo isso, eu me assustava só de pensar no momento em que eu teria de receber uma criança assim. A questão da inclusão é de difícil entendimento prático e teórico para qualquer educador, mas não precisa ser solitária. Juntos, na troca de ideias, podemos aprender mais, sentir mais apoio, consolo por nossas dificuldades e alegrias, por nossos sucessos. Nessa intenção, de troca, surgiu a ideia do blog Abraçando, que traz relatos e reflexões sobre a experiência de ter um aluno com inclusão: http://abracando.wordpress.com
Ficha técnica
Karina Cabral
E-mail: karinacabral@hotmail.com
EMEI Jardim Monte Belo.
Endereço: Rua Palmeirópolis, s/no – Jardim Monte Belo, Morro Doce – São Paulo – SP. CEP: 05272-005 – Tel.: (11) 3911-7589
Diretora: Regina Célia Soares Bortoto
E-mail: emeijmbelo@prefeitura.sp.gov.br
Coordenadora Pedagógica: Meire Festa
E-mail: kifesta@uol.com.br
Para saber mais
- Educação Inclusiva – Realidade ou Utopia? de Leny Magalhães Mrech. Disponível no site: http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=97:educacao-inclusiva- realidade-ou-utopia-&catid=6:educacaoinclusiva&Itemid=17
- Educação Inclusiva. Um meio de construir escolas para todos no século 21. Revista Inclusão no 1, Secretaria de Educação Especial. Ministério da Educação (MEC): Outubro de 2005. Disponível para download: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content& view=article&id=12626%3Arevista-inclusao-nd1&catid=192%3Aseesp- esducacaoespecial&Itemid=860