O uso do movimento nas escolas de educação infantil é um daqueles consensos difíceis de se tornar prática. Mas para algumas crianças ele é uma realidade na rotina
Eu me enrolo,
me espicho,
aprendo a rolar.
Olho o tatu-bola no chão e na mão.
Espio dentro de um buraco que me parece muito
fundo e me estico para dar uma
olhadinha no coelho.
Abaixo e levanto.
Me escondo embaixo da mesa e preciso ficar
muito alto para alcançar aquela bolinha de
sabão que quer escapar.
Testo meu equilíbrio, agora já não caio mais!
Me aperto dentro das caixas, me alongo para
olhar nas janelas.
Rodo, giro e rolo, mexo o meu corpo sem parar,
e no final do dia quero um colinho gostoso para
me enroscar!
(Mariana Americano e Carmen Orofino)
Segundo Rudolf Steiner1, os primeiros anos de vida de uma criança são principalmente dedicados ao desenvolvimento da motricidade, desde a coordenação dos músculos que controlam o globo ocular e possibilitam a visão do mundo até o controle da cabeça, dos braços, das mãos, do arrastar-se, do rolar, da capacidade de se sentar, seguidos pelo deslocamento no engatinhar e culminando com a posição vertical e o andar.
Na Escola Viva, muitas crianças, assim que aprendem a andar, passam a fazer parte da nossa escola, num momento em que seu corpo fala muito mais alto do que a comunicação oral. A curiosidade faz com que as crianças queiram conhecer o mundo, explorando cada possibilidade de movimento com o corpo. Para ajudá-las nesse processo de crescimento, proporcionamos muito mais do que apenas a exploração natural do espaço. Fazemos um planeja mento das atividades, uma organização intencional do espaço e um preparo do olhar voltado ao corpo des sas crianças, oferecendo desafios e também apoio para que se descubram e desenvolvam as habilidades motoras esperadas.
Nessa idade, elas já apresentam algumas movimentações naturais e outras que vão aprendendo e desenvolvendo. Pensando nisto, trabalhamos alguns pontos, como a exploração de cada uma das partes do nosso corpo, que as ajudam nessa pesquisa corporal. Neste artigo, apresentaremos duas atividades diferentes: uma, preparada num ambiente interno: sala bastante ampla com um grande tapete no chão; outra, realizada nos quintais e demais espaços abertos da escola.
1ª atividade: Percepção corporal com enrolamentos, rolamentos e torções
Essa atividade era desenvolvida uma vez por semana, no período de mais ou menos 40 minutos. Nosso primeiro ritual era ir para a sala preparada e tirar os sapatos. Iniciávamos sensibilizando as crianças para cada uma das partes do próprio corpo: deitadas no chão, em cima de um grande tapete, colocávamos uma música e começávamos a nos movimentar, geralmente pelos nossos pés e pernas; depois, as mãos, os braços e demais partes do corpo. Dependendo do envolvimento das crianças, nomeávamos também calcanhar, tornozelo, joelho, pulso, cotovelo, descobrindo juntos as articulações e suas possibilidades de movimentos.
Dando continuidade a cada movimento, percebíamos que o nosso corpo era impulsionado para os lados, e assim começávamos a trabalhar com os enrolamentos e estiramentos. Íamos arrastando, encolhendo e esticando o corpo, rolando para um lado e para outro, experimentando torcê-lo, endireitando-o. Enfim, rolávamos pelo chão descobrindo o movimento e aproveitando as sensações proporcionadas por essas brincadeiras.
Aos poucos, íamos testando outros planos, andando, dançando, girando, correndo agachados, apoiando as mãos no chão, engatinhando, levantando, até que ficávamos eretos e começávamos tudo de novo. Assim, trabalhávamos com as crianças conceitos como rolamentos, enrolamentos e torções, que são movimentações naturais no desenvolvimento do recém-nascido. Explorá-los com as crianças dessa idade ajuda em sua conscientização corporal e em esquemas corporais necessários ao seu desenvolvimento.
Durante a atividade, nós, professoras, servíamos de modelo, deitando no chão e nos movimentando, não para que as crianças fizessem exata mente o que fazíamos, mas para que elas construíssem um repertório de movimentos. Íamos descobrindo diversas possibilidades, compartilhando o que fazíamos e ressaltando o que as próprias crianças estavam descobrindo.
Outra interferência nossa era quando demonstrávamos relações entre o que estávamos fazendo e a movimentação dos animais. Rastejar como as cobras, se enrolar como um tatu-bola, engatinhar e rolar como um gatinho, andar pesado feito um elefante. Cada bicho nos trazia uma nova amplitude de movimentações e intensidades.
Uma experiência muito agradável com crianças dessa idade era a de testar os movimentos circulares. A sensação de rodar em torno de um eixo enchia a carinha delas de felicidade, e as gargalhadas nos mostravam o prazer que elas sentiam. Depois de rodarem em torno de si próprias, elas experimentavam também rodar junto com os amigos. Com um, dois, três, ou mesmo todos numa grande roda.
Nessas brincadeiras, cada criança explorava o próprio corpo e, com a ajuda das educadoras provocando certos movimentos em cada uma delas, conseguiam flexionar as pernas, esticá-las, torcer o corpo para um lado e para o outro, por exemplo.
Com o intuito de aprofundar o conhecimento do próprio corpo utilizávamos vários materiais e, a cada dia, lhes apresentávamos um deles: penas, esponjas, pincéis, bolinhas, fitas. Com cada material experimentávamos as sensações provocadas depois de passá-lo pelo próprio corpo e pelo corpo do amigo. Eram sensações diferentes: algumas faziam cócegas, outras davam aflição… Cada um reagia de um jeito ao entrar em contato com os materiais oferecidos. Havia os que queriam compartilhar o que sentiam conosco e com as demais crianças; outros não. Muitas vezes, esses materiais se transformavam em objetos de brincadeira. Como era gostoso se enrolar naquele monte de fitas! Ou mesmo jogar todas as bolinhas para o alto e sair correndo para procurá-las. Ops! Caiu embaixo do armário! Será que eu consigo me esticar para pegá-la?
2ª atividade: Espiar
As crianças são curiosas naturalmente e gostam de observar entre as frestas, por cima e por debaixo das coisas. Aproveitando esse interesse, começamos a trabalhar com o espiar através, entre, embaixo e em cima dos objetos, móveis, elementos da natureza, e tudo o mais que pudesse nos interessar. Diferentemente da atividade anterior, que tinha uma hora marcada para acontecer, esta acontecia o tempo todo, de modo planejado ou não. Em geral, era no meio da brincadeira que as surpresas apareciam e, assim, conseguíamos todos os corpos em atividade.
Começamos a observar a vontade das crianças em espiar e prestar atenção aos tipos de objetos que eles escolhiam para isso. Alguns materiais encontrados no nosso dia a dia passaram a servir como objetos de observação. Pneus, por exemplo. Com a carinha dentro deles, as crianças exploravam os espaços da escola, olhando tudo por dentro desse novo foco.
Nessa mesma proposta, sucatas, brinquedos, peças de jogos, tudo podia se transformar em binóculos e nos auxiliar a desbravar o mundo. O mundo que queríamos olhar, recortado pelas formas dos objetos. Desse modo, prestávamos atenção em coisas que não tínhamos reparado antes: detalhes do chão, cantinhos da parede, plantas, bichos e até mesmo os amigos! Outra forma de conhecer o mundo era espiar por frestas, buracos, janelas, espaços entre as coisas e descobrir o que havia do outro lado. Esticar o corpo para olhar, se encolher para prestar atenção em algo que estava lá embaixo. O mundo era revelado à medida que saciávamos a nossa curiosidade. Curiosidade e encantamento em conhecê-lo. Para isso, o nosso corpo estava em ação, se movimentando com base em um repertório já adquirido e, ao mesmo tempo, experimentando novos movimentos.
Nessa proposta de espiar o mundo, a natureza foi uma grande aliada. A vontade de ver os animais da escola e a admiração ao se deparar com um animal visitante moviam o nosso corpo, olhos, mãos, tudo, em busca de um contato. Podia ser uma espiadinha nos marrecos que nadavam no lago, procurar o esconderijo da tartaruga, sair correndo atrás dos coelhinhos que fugiram de sua casinha, ou mesmo experimentar a sensação gelada de segurar uma minhoca achada num dos canteiros.
E assim, por meio de brincadeiras e atividades cotidianas, podíamos observar os nossos alunos adquirindo cada vez mais habilidades de subir, descer, abaixar, se esticar, de testar os limites do corpo e, a cada momento, adquirir mais confiança em suas ações.
Segundo Wallon2, as crianças falam com o corpo. A atividade muscular possui duas funções: a função tônica, que regula o grau de tensão dos músculos (tônus) e se relaciona ao controle e ajustamento postural, e a função cinética, responsável pelo controle do estiramento e encurtamento das fibras musculares em coordenação com os impulsos do sistema nervoso central, que produz o deslocamento do corpo ou partes dele.
Dessa forma, esse trabalho foi se desenvolvendo a partir de situações provocadas e de situações corriqueiras, sem perder de vista que o que estava planejado era o nosso olhar de educadoras em acompanhar o movimento de cada um dos nossos alunos.
Assistindo a uma palestra da São Paulo Companhia de Dança3, ouvi a seguinte frase: “Eu imprimo no mundo a minha marca através do movimento do meu corpo”. E era exatamente isso que estávamos observando nos nossos alunos. Cada um tinha a sua marca própria!
Ainda em relação ao nosso olhar, não planejado, mas prestando atenção aos corpos dos alunos, começamos a observar os momentos rotineiros nos quais as crianças naturalmente movimentavam o corpo: tentar alcançar uma barra de ferro e nela se pendurar, equilibrar várias peças empilhadas até os braços não alcançarem mais o topo da pilha criada, esticar os braços para conseguir abrir a porta da sala, entrar embaixo da mesa para pegar uma peça de brinquedo etc. Foram muitas as conquistas de cada um do grupo em relação ao domínio do próprio corpo e a capacidade de comandarem os seus movimentos.
Para esse trabalho, as intervenções no espaço foram nossas grandes aliadas. Mudávamos as posições dos móveis, utilizávamos tecidos, fitas, fios e o que mais fosse interessante para provocar um novo tipo de movimento.
Na maioria das vezes, as crianças sentavam-se nos banquinhos para desenhar com o papel apoiado na mesa. Passamos, então, a propor desenhos em papéis esticados na parede, no chão e até mesmo espalhados pelo quintal. Dessa forma, a atividade plástica de desenhar ganhava também um novo desafio, ou seja, manter o corpo em uma nova posição. Como diz Isabel Filgueiras:
Nós não temos um corpo: nosso corpo somos nós. O corpo não é separado, nem muito menos oposto à inteligência, aos sentimentos. Ele nos abriga por inteiro. O corpo guarda nossa memória, nossos desejos, pensamentos e sentimentos. Ele não é um instrumento, uma máquina de ossos, articulações, músculos e sistemas de distribuição de energia. Nesta concepção, o exercício não é atividade física, mas corporal, porque envolve o indivíduo como um todo4.
Não trabalhamos apenas com o corpo dos alunos, mas com toda a sua integralidade, utilizando a linguagem corporal como impulsionadora do processo de desenvolvimento. Descobrindo e brincando com a própria imagem, cada criança constrói sua maneira de deixar a própria marca no mundo.
(Mariana Americano, professora de Educação Infantil na Escola Viva, em São Paulo–SP)
1Filósofo austríaco responsável pelo desenvolvimento da Pedagogia Waldorf no início do século XIX
2Henri Paul Hyacinthe Wallon (1879-1962) foi filósofo, médico, psicólogo e político francês. Tornou-se conhecido por seu trabalho sobre Psicologia do Desenvolvimento.
3Companhia de dança criada em janeiro de 2008 pela Secretaria de Estado da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, cuja difusão da dança é um dos núcleos principais de seu trabalho.
4Movimentar-se é preciso, de Isabel Porto Filgueiras. In: Edição Especial Nutrir – Revista Avisa lá, nov./2005.
Ficha Técnica
- Escola Viva
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Direção pedagógica: Heloisa Pavan
E-mail: helo@escolaviva.com.br
Coordenação: Katia Keiko
E-mail: katiakeiko@escolaviva.com.br
Professora: Mariana Americano
E-mail: americano.mariana@gmail.com
Para saber mais
Livros
- O bebê e a coordenação motora, de Marie-Madeleine Béziers e Yva Hunsinger. Editora Summus. Tel.: (11) 3872-3322. Site: www.gruposummus.com.br
- A questão do movimento no cotidiano de uma pré-escola, de Izabel Galvão. In: Cadernos de Pesquisa, n. 98, p. 37-49, ago. 1996. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1996. Tel.: (11) 3723-3000. Site: www.scielo.br