Investigando contextos de formação do leitor

Crianças de quinto ano revelam sua trajetória como leitoras e a importância de alguns influenciadores: escola e família
Desenho: Pedro Melo Valim de Camargo

Desenho: Pedro Melo Valim de Camargo

Os resultados da mais recente pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”1 confirmam que os leitores mais experientes que convivem com crianças têm papel fundamental no ensino de comportamentos leitores, promovendo o contato com livros e a formação do repertório cultural dos leitores em formação. É deles a responsabilidade de mostrar às novas gerações o sentido e as características da linguagem escrita, e isso acontece de diversas maneiras. Por exemplo, servindo como modelo e inserindo-as em práticas de leitura. Assim, fica evidente a importância da participação da família e da escola nesse processo, que começa mesmo antes de a criança ler convencionalmente.

Para investigar o papel que a família e a escola exercem na formação de leitores, crianças do quinto ano de uma escola particular da zona sul de São Paulo participaram de uma pesquisa por meio de entrevistas semiabertas, nas quais responderam perguntas a respeito de sua trajetória como leitoras e de suas principais influências, tanto em casa como na escola. Essa pesquisa, da qual apresentaremos alguns resultados e conclusões nesse artigo, integrou o trabalho de conclusão de curso de pós-graduação “Alfabetização: relações entre ensino e aprendizagem” no Instituto Superior de Educação Vera Cruz (ISEVEC), em São Paulo (SP).

Segundo a pesquisadora Delia Lerner, ler significa atribuir significado à escrita, e isso acontece como resultado de um longo processo. “Ler é entrar em outros mundos possíveis. É indagar a realidade para compreendê-la melhor”.2 Frank Smith, outro estudioso que pesquisou os processos de leitura, afirma, inclusive, que o aprendizado começa a partir do momento em que o indivíduo tem qual quer ideia de escrita, e o seu desenvolvimento conta com toda a experiência acerca da linguagem escrita vivenciada por ele.

Para que uma pessoa se torne boa leitora, é necessário que passe por um longo processo de formação, envolvendo todas as suas vivências acerca da linguagem escrita. Nesse processo, no qual tudo o que acontece pode ser relevante, a presença de leitores mais experientes tem grande importância, pois eles podem proporcionar o contato com textos e a inserção em práticas de leitura: aspectos fundamentais para que a formação aconteça.

Como os leitores inexperientes se tornam familiarizados com os registros da linguagem escrita? Já indiquei uma solução óbvia – alguém precisa ler para eles até que eles possam fazê-lo sozinhos. (SMITH, 1999)3

A tarefa de mostrar às crianças as características e o sentido da escrita fica, portanto, a cargo dos leitores que convivem com elas. Cabe a eles compartilhar momentos reais de leitura com as crianças, tornando-as usuárias da linguagem escrita.

Os adultos que leem às crianças lhes oferecem tanto um modelo do processo de leitura como uma série de contextos diferentes que podem ser retomados em suas conversas com outros, ampliando assim as experiências que compartilham. Em suas interações cotidianas com os adultos, as crianças descobrem que podem falar sobre o que acontece nos livros, e também que podem aplicar sua compreensão cotidiana do mundo para interpretar o que leem. (MEEK, 2004)4

Ana Teberosky e Teresa Colomer acreditam que, pela interação com textos e com leitores em suas primeiras experiências com a linguagem escrita, a criança adquire dois tipos de conhecimento: os elaborados por ela a partir da interação com os leitores e com o material escrito e os conhecimentos socialmente transmitidos pelos adultos. Esse processo de aquisição deve começar no ambiente familiar, quando isto é possível.

Em casa, os leitores encontram diversas oportunidades de mostrar às crianças seu comportamento leitor, e isso pode acontecer naturalmente, apenas fazendo uso de textos em diferentes momentos. O simples fato de ler um conto para uma criança enquanto ela se prepara para dormir, por exemplo, além de ser um excelente momento de entretenimento e de partilha, é uma ótima oportunidade para se pôr em prática propósitos de aprendizagem, como criar familiaridade com a formalidade da linguagem escrita ou ampliar o repertório de vocabulário.

Com o objetivo de conhecer, mais de perto, os mecanismos que levam indivíduos a se tornarem bons leitores e ilustrar as teorias estudadas sobre o assunto, dez crianças consideradas boas leitoras foram entrevistadas. As crianças escolhidas cursavam o quinto ano do Ensino Fundamental em 2010 numa escola da rede particular da cidade de São Paulo. A razão da escolha dos sujeitos dessa faixa etária foi o fato de que:

“por volta dos 10 anos, ou após quatro anos de escolarização, o aluno que é bom leitor já apresenta todas as características do comportamento observável do leitor proficiente.” (KLEIMAN, 2001)5

Como o intuito da pesquisa era analisar o percurso leitor de alunos que tivessem a leitura como uma atividade valorizada, o critério de seleção dos participantes esteve relacionado ao número de livros que retiravam da biblioteca. Foram escolhidas, portanto, as dez crianças da série que mais retiravam livros da biblioteca da escola. A seleção foi feita pelas professoras da série, juntamente com a coordenadora e a bibliotecária.

Durante a pesquisa, foi possível perceber as principais influências que tiveram para que pudessem se tornar boas leitoras. Foi também perceptível o modo como construíram, ao longo de suas trajetórias, o comportamento leitor.

No ambiente familiar, essas crianças encontraram bons modelos de leitores, além de terem sido inseridas em práticas de leitura nas quais puderam participar, com leitores mais experientes, de situações reais em que a leitura é utilizada para diversos fins.

E., de 10 anos, por exemplo, contou-nos sobre a relação que ela e o pai têm com a literatura e como eles conversam sobre os livros que leem, e ressaltou o fato de o pai não contar, propositadamente, alguns desfechos de histórias que leu, para que a filha possa se divertir com elas posteriormente, instigando a curiosidade e incentivando-a a ler:

E.: Eu acho que eu gosto mais dos livros que o meu pai lê.
P.: O que seu pai lê? Seu pai também gosta desse tipo de suspense, assim, do Crepúsculo?
E.: É!
P.: Ele já leu, também, esse livro que você leu?
E.: Não, mas ele lê uns livros um pouco maiores, assim.
P.: E você fica com vontade de ler esses livros?
E.: Ahã. Quando ele termina, assim, às vezes, eu peço pra ele me contar a história do livro…
P.: E ele conta?
E.: Alguns sim, alguns ele fala: ah não, quando você crescer você lê, porque não posso te contar o final.

L., de 10 anos, também afi rma saber a preferência de sua mãe para livros e, num segundo momento, demonstra que conversam bastante sobre os livros lidos, exercendo, assim, um aspecto importante do comportamento leitor:

L.: Minha mãe gosta de ler livros mais sobre essas culturas diferentes, tipo indiana, chinesa, assim: livros sobre lugares.
L.: Eu acho assim: a minha mãe, sempre que eu peço, ela me conta as histórias. Ela não me deixa ler porque tem detalhes, tudo. Mas eu lembro que eu li um livro da época da segunda guerra mundial que eu gostei muito, assim. Li com ela, porque ela já tinha lido e eu fiquei muito curiosa e a gente tinha amizade com um escritor e que recomendou muito, assim. Aí ela me deixou ler junto com ela. Chama O pijama listrado.

Em outro depoimento, M., de 11 anos, conta, com entusiasmo, que leu um livro porque a mãe já havia lido e recomendado:

M.: Minha mãe também estava lendo Crepúsculo. Meu pai, como é advogado, ele lê mais esse tipo de coisa…
P.: Entendi. Você acha que a sua mãe leu Crepúsculo por que você leu, ou você leu por que ela leu?
M.: Eu li porque ela leu.
P.: Então ela que leu primeiro?
M.: É, daí eu vi que ela leu, e daí oba! Eu peguei e comecei a ler!

Além disso, grande parte da formação dessas crianças aconteceu também na escola, onde elas encontraram, nos professores, modelos e referências de comportamentos típicos do leitor, além de terem sido inseridas, constantemente, em práticas que envolviam leitura e escrita.

P. E., de 10 anos, recorda-se de como as professoras apresentavam livros de literatura durante a Educação Infantil, e consegue, inclusive, se lembrar de um título que foi marcante para ela. Depois revela como a escola ainda fornece elementos importantes para a sua formação:

P. E.: Eu lembro que tinha vezes que as professoras… elas pegavam um tempo só pra ler livros, só pra ler pra gente. Daí elas pegavam uns livros maiores e liam um pouco a cada dia…
Eu lembro que um dos livros que as professoras leram que eu mais gostei era aquele Os Mimpins. (…) Ah, as professoras leem ainda, é que, assim: as professoras incentivam a gente a ler… Na Antologia6, por exemplo, eu lembro que teve uma época que a gente leu um trecho de uma história da Agatha Christie, na Antologia. Daí todo mundo ficou curioso para saber como era o final, e não tinha na Antologia, daí a gente foi na biblioteca pesquisar o livro e a gente encontrou… Aí a professora terminou lendo pra gente!

Na sequência, L. S. mostra que, por meio de uma atividade proposta pela professora, ele foi apresentado a um gênero e, com isso, teve a oportunidade de expandir seu horizonte de leitura:

P.: E aí você quis mais livros da Agatha Christi, depois disso?
L. S.: Ahã. Daí eu comprei vários, eu lembro! Na verdade eu comprei um que era uma coletânea, daí eu lia as histórias, assim, uma por dia… E eram bem legais! Eu também comprei Sherlock Holmes, é bem legal! Daí, no começo desse semestre, a professora, a A. L., ela começou a ler um do Pedro Bandeira, de mistério, que é Os karas, já ouviu falar?

Desenho: Fernanda Ruivo Marques Domiciano

Desenho: Fernanda Ruivo Marques Domiciano

As crianças mencionadas, bem como as outras entrevistadas, que têm contato com bons modelos de leitores e participação em práticas de leitura, tendem a se tornar boas leitoras, com traços marcantes do comportamento leitor, como a escolha de um gênero preferido, de momentos de leitura, capacidade de compartilhar a leitura e de discutir o que leem, de seguir e fazer indicações, de explicitar os motivos pelos quais leem.

Nos depoimentos contidos na pesquisa, foi perceptível a maneira como todas as vivências acerca da língua escrita que as crianças tiveram, como as diversas influências provenientes família e da escola, possibilitaram a formação teia de características e habilidades que culminam no comportamento leitor.

Nesse sentido, cabe dizer que, em ambos contextos, o familiar e o escolar, as práticas alfabetizadoras que neles se desenvolvem e as expectativas postas nos meninos e nas meninas, por parte de familiares e professores, são fatores centrais de motivação para a aprendizagem.(TEBEROSKY e SOLER, 2004)7

Para garantir que formemos bons leitores, portanto, é imprescindível que as crianças sejam estimuladas e tenham as referências de que necessitam. Nesse processo, família e escola deveriam caminhar juntas. Mas sabemos que em nosso País nem sempre as famílias são leitoras. Por esse motivo, mais importante torna-se o papel da escola.

Por isso, é indispensável que esteja preparada para isso: é necessário que os professores sejam capacitados adequadamente e que sejam inseridas nos currículos práticas de leitura. Podem inclusive trazer as famílias para a escola, criando, como propõe Delia Lerner, microssociedades de leitores, envolvendo crianças, professores, pais e funcionários em práticas de leitura. Assim, é possível garantir que todas as crianças que frequentam as escolas tenham influências e estímulos para que possam se tornar leitoras proficientes.

(Paula Carrascosa Von Glehn Strano, professora do Ensino Fundamental na rede particular de São Paulo–SP)

1Pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, com apoio da Abrelivros, CBL e SNEL, cujo objetivo principal é avaliar o comportamento leitor do brasileiro, estimulando novas reflexões e decisões em torno de possíveis intervenções para melhorar os atuais indicadores sobre o tema.

2Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Delia Lerner. Porto Alegre: Artmed, 2002. Tel.: 0800 703 3444. Site: www.grupoa.com.br

3Leitura significativa, de Frank Smith. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. Tel.: 0800 703 3444. Site: www.grupoa.com.br

4En torno a la cultura escrita, de Margaret Meek. México: Fondo de Cultura Económica, 2004. (Tradução própria). Tel.: (0052 55) 5227-4672. Site: www.fondodeculturaeconomica.com

5Leitura: ensino e pesquisa, de Angela Kleiman. Campinas: Pontes, 2001. Tel.: (19) 3252-6011. Site: www.ponteseditores.com.br

6As crianças dessa escola têm um Caderno de Antologia (reunião de textos), com textos selecionados pelas professoras da série.

7Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004. Tel.: 0800 703 3444. Site: www.grupoa.com.br

Ficha Técnica

  • Paula Carrascosa Von Glehn Strano
    E-mail: paulastrano@hotmail.com

Para saber mais

Livros

  • Leitura: ensino e pesquisa, de Angela Kleiman. Campinas: Pontes, 2001. Tel.: (19) 3252-6011. Site: www.ponteseditores.com.br
  • Aprender a ler e a escrever: uma proposta construtivista, de Ana Teberosky e Teresa Colomer. Porto Alegre: Artmed, 2003. Tel.: 0800 703 3444. Site: www.grupoa.com.br
Posted in Aprendendo com a criança, Revista Avisa lá #51 and tagged , , , , , .