No lugar dos berços, organizamos cantos de brinquedos, de leitura, de descanso. Investir na qualidade do espaço foi o primeiro grande passo para melhorar o trabalho no berçário e mudar completamente a concepção que tínhamos sobre as crianças pequenas. Aproveite nossas dicas e veja como você também pode melhorar o espaço de sua instituição
A organização do espaço educativo reflete as concepções de criança, ensino e aprendizagem das instituições. A forma como as salas estão organizadas a disposição dos móveis, a acessibilidade aos brinquedos, aos livros, a exposição ou não das produções infantis, a “decoração” são indícios reveladores sobre como as crianças são vistas e consideradas.
Um breve olhar sobre os espaços dos berçários, algumas recentes e outras com mais de 50 anos, nos leva a pensar porquê é tão difícil levar em consideração as reais necessidades das crianças ao planejar os espaços aonde vão crescer e aprender. Por que isso ocorria e ainda ocorre?
As creches criadas em função da crescente urbanização das populações européias no século XIX nasceram como uma das estratégias para aliviar a pobreza e controlar as condições de vida da população de baixa renda.
No Brasil não foi diferente, essas instituições surgem como parte de uma política assistencialista, no bojo do que se chama de assistência científica.
Os objetivos variavam em torno de guardar, controlar, higienizar e moralizar os pobres. A educação para crianças dessa classe social baseava-se nessas palavras de ordem e foi a responsável pela criação de ambientes tidos como “higiênicos” dentro das normas e regras vigentes. Quanto menor as crianças, maiores as preocupações com as questões de higiene.
Isso justificou a criação de espaços estéreis – os berçários que eram (e muitos ainda o são) lotados de berços onde as crianças passavam a maior parte do tempo, sem interação com seus pares e muitas vezes sem nenhum brinquedo. Somava-se a isso o número reduzido de profissionais, seu despreparo, a falta de conhecimento sobre como a criança pequena se desenvolvia e estava criado o quadro de confinamento que tantos prejuízos causaram aos bebês.
Essa organização do espaço apoiava-se na concepção de uma criança pobre, passiva, frágil, incapaz de interagir com o ambiente e com as pessoas. O adulto não abria mão do controle dos movimentos e desejos infantis. No entanto, para as crianças ricas a situação era muito diferente.
Os jardins da infância foram criados com o propósito de desenvolver as diferentes potencialidades infantis, com ênfase em um ambiente rico de estímulos. Portanto as condições físicas, os materiais e brinquedos desses espaços educativos foram planejados para possibilitar diferentes âmbitos de experiências para os pequenos.
A crença nas competências dessas crianças permitia-lhes uma movimentação mais autônoma e pessoal. Até hoje, infelizmente, muitas instituições destinadas às crianças de baixa renda continuam organizando espaços impróprios ao desenvolvimento e aprendizagem. Mas isso pode mudar, não é impossível, nem tão difícil, como atesta a experiência real e bem-sucedida de Vânia e Emilian.
Parece mágica mas não é
Nosso berçário contava com um espaço grande, mas parecia pequeno porque era todo preenchido por berços, o que dificultava até mesmo a nossa circulação dentro da sala.
O pouco espaço que sobrava não era suficiente para que as crianças pudessem brincar. Assim, permaneciam o dia inteiro dentro dos berços. Na parede pendurávamos alguns desenhos feitos por nós mesmas e no teto alguns móbiles comprados prontos, bem no alto para os bebês não quebrarem.
O trabalho no berçário era voltado totalmente para os cuidados de higiene. Havia uma preocupação muito grande em “preservar” as crianças para que não adoecessem. Por isso não os tirávamos muito dos berços. Tínhamos medo do que os pais pudessem pensar se vissem seus filhos no chão engatinhando.
Além do mais, todos pareciam bastante satisfeitos com os cuidados que seus filhos recebiam na creche. Confinados no berço sem ter nada para fazer, os bebês choravam bastante, queriam atenção, pareciam tristes.A maioria passava para o berçário maior sem ter aprendido a andar.
O trabalho pedagógico ficava em segundo plano, só acontecia nos momentos de estimulação, se sobrasse tempo. Excluíamos os bebês de diversas atividades e muitas vezes fazíamos coisas por eles. O educador de berçário sentia-se desvalorizado, suas atividades resumiam-se em trocar, alimentar e dar colo. Apesar disso, não nos parecia nada estranha essa organização, porque a orientação recebida era essa, e não tínhamos informações sobre como deveria ser um trabalho diferente no berçário.
Mas o projeto de formação que implementamos em nossa creche significou uma mudança radical nessa realidade: tivemos acesso a informações, pudemos desenvolver novas idéias, modificando a visão que tínhamos sobre o trabalho com bebês. O conhecimento que construímos a partir daí foi o que nos deu força e argumentos para iniciar a transformação do berçário.
A idéia de promover algumas mudanças no espaço passou a fazer sentido para nós, educadoras, por isso empreendemos tantos esforços, com tanta rapidez. Lemos vários textos sobre espaços físicos e visitamos outras creches para buscar referências e modelos que pudéssemos aproveitar no nosso berçário.
As primeiras mudanças
A primeira mudança foi a retirada de alguns dos berços.Tivemos de fazer acordos com a auxiliar de enfermagem e provar para os pais o quanto essa ação era favorável aos bebês. No lugar dos berços montamos cantos de brinquedos e de leitura, delimitamos no chão um espaço para a hora da história e penduramos móbiles com os quais as crianças pudessem interagir.
Junto com essas primeiras investidas veio também a reorganização da nossa rotina e a criação de seqüências de atividades de acordo com a nova proposta de trabalho. O trabalho pedagógico ganhou força no berçário e percebemos que a nossa função também tinha caráter educativo, não éramos meras “cuidadoras de crianças”, mas educadoras de verdade. Passamos a nos valorizar como profissionais e a buscar cada vez mais recursos e instrumentos para investir no nosso espaço.
Um dia, nossa formadora, Débora Rana, nos trouxe umas fotos de uma creche que ficava na Itália, na Reggio Emilia. As salas eram totalmente adaptadas para as crianças, o ambiente era confortável e agradável, com muitos brinquedos coloridos e cantinhos aconchegantes. As crianças pareciam estar muito bem ali. Ficamos encantadas e pensamos que queríamos viver num espaço parecido com aquele.
Daquelas fotos tiramos muitas idéias que deixaram o espaço ainda mais interessante e aconchegante para as crianças e para nós. Muito mais que decoração Reduzimos o número de berços à metade, para sobrar espaço.
Nossa agente de saúde não entendeu muito bem e fez algumas ressalvas. Tentamos mesmo assim. Compramos tecidos coloridos e nós mesmas confeccionamos capas para almofadas e algumas “minhocas” para que os menores pudessem se recostar e para ficar sentados por mais tempo.
Com o que sobrou encapamos pneus e com alguns lençóis e colchonetes fizemos os rolos. Montamos uma instalação – um conjunto de interferências com foco no espaço para provocar impacto, estranheza – com véus, um cantinho para descanso, colocamos uma barra de ferro forrada com espuma na parede e um quadro de rotina na altura das crianças.
Criamos um mural para exposição das produções das crianças e montamos um espaço permanente de desenho. Não tínhamos dinheiro, mas batalhamos pela doação de espelhos. Colocamos todos os berços em um só lado da sala e sobrou um espaço onde montamos um cantinho aconchegante com colchonetes forrados com lençóis e almofadas encostadas na parede.
Cercamos esse espaço com as minhocas e, ao lado desse cantinho, colocamos pneus, rolos e banquinhos. Ficou um lugar bem gostoso, quase igual ao da foto. Resumindo: transformamos radicalmente aquele antigo berçário.
Quando a agente de saúde da Prefeitura entrou na creche, gostou do que viu e pediu ao sr. Adailson José do Nascimento – nosso zelador – para desmontar mais cinco berços! Ela chamou o apoio técnico, que avaliou o ambiente e nos orientou quanto à manutenção do espaço, que deveria ter o chão sempre limpo.
As reações de cada um
No primeiro dia as mães chegaram no final da tarde, para pegar seus filhos, e tiveram uma surpresa. Muitas ficaram contentes e disseram:“Olha, que gostoso! Que bonito!” Outras perguntaram: “Mas onde eles vão dormir?” Nós explicamos que apenas os pequenos, de até 4 meses, dormiriam nos berços, os demais ficariam nos colchonetes, no chão.
E a melhor parte de tudo isso é ver a resposta das crianças frente a tantas mudanças. Os bebês gostam das novidades, principalmente dos cantinhos mais aconchegantes, mas expressam também outras preferências: Kevin, por exemplo, gosta de ficar no pneu, Felipe na frente do espelho. Todos se movimentam, brincam, rolam muito mais no espaço que conseguimos abrir no centro da sala.
Percebemos que as crianças estão mais felizes e mais autônomas, pois têm a possibilidade de escolher com o que vão brincar, são chamadas a desenvolver atividades desafiadoras, têm a oportunidade de vivenciar experiências novas. O choro diminuiu consideravelmente e a grande maioria das crianças passa para o berçário maior andando, mamando sozinhas, já tentando alimentar-se com autonomia, e isso facilita sua adaptação ao novo ambiente.
Trabalhamos assim, de forma integrada, visando o melhor para as crianças. Todos estão muito satisfeitos com os resultados obtidos, inclusive os pais, que também têm percebido mudanças em seus filhos e agora participam muito mais das reuniões. Foi um trabalho duro, exigiu de nós coragem e perseverança mas valeu a pena.
Hoje o berçário é o lugar mais visitado da creche e desperta elogios de todos os que passam por ele. Serve inclusive de modelo para outras creches, cujos responsáveis vêm nos visitar, e os recebemos com respeito, pois já passamos por isso.
Ficamos muito felizes em ver que o nosso trabalho está sendo bem-aceito e reconhecido por todos. Isso nos anima e motiva a nos dedicarmos cada vez mais, a melhorar sempre o ambiente para as crianças e para nós, adultos educadores, também.
(Vânia Aparecida Valenti Marques e Emilian F. C. Santos)
Ficha técnica:
Projeto Capacitar 7. Iniciativa: Instituto C&A, Instituto Avisa lá e Centro de Educação Infantil Municipal Aníbal Di Frância – Tel.: (11) 3611-5778. Equipe: Débora Rana,Ana Maria P. Santos, Maria de Lourdes da Silva, Eliete Lino dos Santos, Neusa N. F. da Silva,Vânia Aparecida V. Marques e Emilian Fátima da C. Santos
Para Saber Mais
- Educação Infantil: muitos olhares. Zilma Moraes Ramos de Oliveira (org.). Ed. Cortez.Tel.: (11) 3864-0111
- Quem educa quem? Fanny Abramovich. Ed. Sumus. Tel.: (11) 3872-3322
- Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Vol. I. MEC.Tel: (61) 410-8640
- As cem linguagens da criança. Carolyn Edwards e outros Ed. Artmed. Tel.: (21) 3813-4469
- As creches Françoise Davidson e Paulette Mageim. Ed. Portuguesa de Livros Técnicos e Científicos