Ana Carolina Carvalho -Outra escola é possível?

O que o distanciamento social durante a pandemia pode nos ensinar?

Ana Carolina Carvalho

Em um recente seminário online, o educador e cartunista italiano Francesco Tonucci afirma que se o corona vírus está mudando o mundo, não há como a escola passar ilesa por esse processo. De fato. Estamos observando mudanças nos modos de nos relacionarmos, nos cuidados cotidianos com a higiene, nas atividades culturais, nos formatos dos encontros com as pessoas e nos usos das redes e atividades online. Mudanças que deverão estar presentes por um bom tempo ainda, pelo que estamos acompanhando.

E a escola? Como reage ou como pode reagir diante de todas essas novidades?

A necessidade de mudança bate às portas da escola faz um bom tempo. Quantas vezes já não ouvimos, aqui e ali, quantas vezes já não lemos reflexões sobre como o dispositivo escolar está defasado em relação aos jovens, aos modos de ser e estar na contemporaneidade?

Certa vez, ouvi uma anedota que dizia o seguinte: uma pessoa veio direto do século XIX para a atualidade. Ela estranharia uma série de coisas: os computadores, os celulares, as nossas roupas… Mas se sentiria em casa na escola: esse lugar ela reconheceria sem crises. Não é estranho que o mundo tenha mudado tanto e a escola permaneça praticamente da mesma maneira? Cadeiras enfileiradas, um quadro negro, o professor à frente da turma.

A antropóloga argentina radicada no Rio de Janeiro, Paula Sibilia, em seu interessante livro Redes ou Paredes, a escola em tempos de dispersão[1], aponta que a tecnologia escolar que conhecemos concebida na época moderna como projeto fundamental dos Estados, que deveriam preparar seus cidadãos para o mundo, mas fora do mundo, se traduz numa “aparelhagem incompatível com os corpos e subjetividades das crianças de hoje”, e que, portanto, a escola seria então, uma “máquina antiquada”.

A tecnologia rege grande parte do que acontece no mundo, ou ao menos está presente em grande parte daquilo que acontece no mundo. Basta pensar naquilo que muitos de nós fazemos todos os dias – e ainda mais agora: quantos dias somos capazes de não olhar e-mail, não acessar um vídeo ou texto na internet, não nos comunicarmos por aplicativos como o whatsApp, por exemplo? Quanto de nossos conhecimentos não são construídos por meio do mundo digital?

A BNCC[2], documento normativo que rege os currículos de todas as escolas do país, sejam elas públicas ou particulares, é bem claro ao afirmar que é preciso que os estudantes brasileiros possam:

“Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.” (BNCC, 2018)

Embora prevista em um documento normativo, observamos que a tecnologia, visando à formação desses cidadãos que acessam conteúdos da rede ou sabem produzir conteúdos para a rede, expressando-se por meio das ferramentas disponíveis no mundo virtual não está realmente presente na escola.

E como a atual situação pode nos ajudar a avançar nessa seara?  A primeira coisa é nos darmos conta que, de modo geral – sempre há exceções, claro! – a escola ainda não sabe muito bem como incluir a tecnologia. Trabalhar com a tecnologia no contexto escolar não significa transpor conteúdos presenciais para o formato online, por exemplo. Significa realmente construir conhecimento por meio das redes, produzir conteúdo para as redes, dominar as ferramentas disponíveis na internet.

Outra constatação que a necessidade do ensino remoto nos escancarou diz respeito à desigualdade de acesso à internet. Nesta semana, uma matéria do Jornal A folha de São Paulo[3] revelou que cerca de 42 milhões de pessoas no Brasil nunca acessaram a internet. É estarrecedor. E outra reportagem gravada em podcast[4] também nos trouxe um panorama assustador: cerca de 70 milhões têm acesso precário à internet ou não tem nenhum acesso, apesar de já ter acessado alguma vez na vida. O que isso significa? Que boa parte de nossa população acessa a internet por meio de pacotes de dados, que incluem apenas whatsApp e facebook. O restante que está disponível na rede, como vídeos do youtube, por exemplo, é rapidamente consumido e portanto, pouco acessado.

Bem, aqui tocamos num ponto: se a escola é pública e se ela precisa formar cidadão para o mundo digital, então não teríamos, como sociedade, que fornecer meios para isso. Não é uma questão para este momento, simplesmente. É uma questão que diz respeito a garantir igualdade de direitos a todos os estudantes do Brasil. É preciso que essas oportunidades e experiências sejam vividas na escola e fora dela, já participar de uma rede é poder acessar da escola, de casa, em outros locais,

Outro aspecto que nos chamou à atenção: a formação dos professores em relação à tecnologia. Estamos cuidando da defasagem da formação de nossos professores em relação à tecnologia, já que a grande parte de nossos docentes não são nativos digitais? O quanto isso tem sido pensado nos programas de formação, nos horários de trabalho pedagógico coletivo nas escolas, o quanto as redes têm amparado os educadores e olhado para essa necessidade urgente das escolas?

Precisamos de uma pandemia para que essas questões viessem à tona de modo mais contundente. E se as mudanças estavam batendo à porta da educação há tanto tempo, que tal abrirmos para que a tecnologia deixe de ser visita e habite de verdade as escolas?

Encerro essas breves reflexões com um trecho do livro de Paula Sibilia[5], que curiosamente parece ter sido escrito para este nosso momento: “o futuro ainda nos reserva muitas surpresas, inclusive em suas vertentes mais imediatas, e nesse turbilhão, todas as previsões são arredias. Se há algo que não deixa dúvida, porém, é que as novas gerações falam uma língua bem diferente daquela que servia para comunicar os que se educaram tendo a escola como seu principal meio de socialização e a “cultura letrada” como seu horizonte universal, com o firme respaldo institucional do projeto moderno abrigado por cada Estado nacional. E desses jovens do século XXI depende, em boa medida, o desenvolvimento dos próximos atos desse drama”.

[1] Sibilia, Paula. Redes ou paredes – a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. P.13

[2] http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

[3] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/cerca-de-70-milhoes-no-brasil-tem-acesso-precario-a-internet-na-pandemia.shtml

[4] https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2020/05/podcast-discute-a-desigualdade-no-acesso-a-internet-no-brasil-ouca.shtml

[5] Op. Citi, P. 207.

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