Lobo Mau conta a história de Chapeuzinho

CAROLINA CHERUBINI S. HONORATO E DANIELA VENTURI DE ABREU¹


REESCREVER UM CONTO CLÁSSICO MUDANDO A PERSPECTIVA DO NARRADOR, ALÉM DE SER UM GRANDE DESAFIO E UMA ÓTIMA ESTRATÉGIA PARA DESENVOLVER COMPETÊNCIAS ESCRITORAS


Iniciamos o projeto nas turmas de 5o ano, com o propósito de reescrever um conto já conhecido pelos alunos, propondo um novo problema para cada versão. Dessa vez, ter um narrador-personagem em lugar de um narrador onisciente. Essa mudança parece simples, mas envolve uma aprendizagem extremamente importante e rica, que certamente acrescenta muitos conhecimentos na vida de “escritor” desses alunos de 5o ano. A ideia de mudar o foco narrativo implica manter a focalização (foco do narrador) e fazer a modalização (o conteúdo do texto e as características dos personagens não podem ser modificados).² Para conseguir produzir esse texto, são realizadas diversas etapas, considerando que os alunos devem ir se conscientizando ao longo do projeto que as alterações devem fazer parte de sua produção.

Para que avancem, são feitas discussões coletivas ou em pequenos grupos, nas quais trocam informações sobre seus personagens. São realizadas também revisões em duplas para que, a partir da leitura, consigam perceber as possíveis falhas do texto produzido pelos colegas e, com isso, possam criar um repertório de como revisar essas falhas e, portanto, consigam estabelecer estratégias para a escrita.


1 Professoras do 5o ano da Escola Santi de São Paulo (SP), em 2012.
2 Narrar por escrito do ponto de vista de um personagem, de Emilia Ferreiro e Ana Siro. São Paulo: Ática, 2010.

Definição do contexto de produção

Para iniciar o projeto, apresentamos para os alunos o livro produzido pelos estudantes do ano anterior, que serviu como modelo para o início dos trabalhos. Assim, tinham em mente o que deveriam produzir. Contamos para os alunos que faríamos a coletânea dos contos e que cada um produziria a sua história e as ilustrações, sendo necessário partilhar e desenvolver um projeto com os colegas do grupo. Compartilhar quem seria o destinatário, onde os contos seriam publicados e que qualidade essa publicação deveria ter, tornando-os, assim, verdadeiros protagonistas dessa produção.

Foi nesse momento também que apresentamos o grande desafio: produzir sob a perspectiva de um personagem da história. Os alunos ficaram bastante empolgados e foram em busca do que havia sido combinado.

Como primeira etapa, relemos duas versões do conto da Chapeuzinho: Contos de Grimm e Contos de Perrault³, para que pudessem comparar as características do conto e perceber as similaridades. Assim, eles conseguiram perceber o que deveria se manter na produção pessoal, pois, independente do autor, de diferenças em relação à linguagem, o perfil se mantém. Depois de conhecer e discutir a personalidade dos personagens e conseguir caracterizá-los na produção individual, eles fizeram uma coletiva sobre
cada um deles.

Análise do texto

Além de destacar os personagens, as leituras iniciais suscitaram uma discussão sobre o que caracteriza
o gênero contos clássicos.
– Qual a linguagem utilizada nesse gênero?
– Qual é o conflito?
– Como o conflito é solucionado?
– Quem é o vilão?
– Quem é o mocinho?

Esse gênero também apresenta um vocabulário específico que deve ser respeitado e cuidado. Por esse motivo uma das etapas do projeto é verificar no texto palavras que os alunos escrevem de maneira inadequada e que não apresentam a riqueza da linguagem dos contos clássicos, sendo esse um dos aspectos a serem revisados por eles.

Outra questão importante desse gênero, que não pode passar despercebida, é a estrutura gramatical relacionada ao uso de pronomes para evitar repetição de palavras. Ou seja, a gramática aqui aparece contextualizada, a serviço da qualidade do texto. Portanto, é trabalhada paralelamente, mas sempre sendo recontextualizada na produção. Os alunos aprendem a usar os pronomes do caso reto, oblíquos, possessivos, demonstrativos e de tratamento, e devem revisar suas produções considerando essas aprendizagens, qualificando-as.


3 Contos de Fadas de Perrault, Grimm, Andersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010 (Coleção Clássicos Zahar).

Assim como os pronomes, o uso do tempo verbal adequado é fundamental para interpretar a história, saber quais fatos vieram antes ou depois, sendo também objeto de análise e de reflexão pelos alunos, que passam a notar a diferença e importância de usar esses recursos da língua na produção textual.

Outro momento de análise foi identificar e grifar, no conto clássico, os marcadores temporais (advérbios de tempo). Eles elaboraram uma lista dos recursos que poderiam ser utilizados. Essa etapa é muito importante porque os alunos, depois disso, têm mais condição de usar autonomamente esse conteúdo.

Por fim, a última etapa da análise do texto foi registrar coletivamente os principais episódios. A finalidade era orientar os alunos a escrever considerando os principais momentos do conto, porém não necessariamente na mesma sequência, uma vez que, ao mudar o foco narrativo, os episódios também poderão ter outra ordem.

Produção textual

Como etapa seguinte, os alunos escolheram um personagem para ser o narrador do conto e produziram a primeira versão eletronicamente. Nesse momento, os alunos apresentaram algumas dúvidas:

“Como escrevo a parte que a mãe pede para Chapeuzinho ir à casa da vovó se meu personagem será o caçador?”
“Meu personagem é a Chapeuzinho. Posso colocar travessão quando ela falar?”
“Como escrevo a história pelo foco do Lobo se ele morre no final?”
“O Lobo pode saber o que a Chapeuzinho estava pensando?”
“A Chapeuzinho pode saber a intenção do Lobo?”
“Posso mudar o final?”
“Minha Chapeuzinho pode ser astuta?”

As respostas não foram dadas imediatamente, mas anotadas e retomadas durante o processo de análise e revisão. Esse momento é muito importante para ver o que os alunos pensam dessa proposta e fazer com que eles consigam avançar em seus conhecimentos durante o projeto, tendo por norte as investigações sobre o texto.

Assim, iniciaram-se as análises que ajudaram os alunos a esclarecer dúvidas:
“Quem está contando a história?”
“O que ele sabe sobre a vida, os pensamentos e os sentimentos dos personagens?”
“Que tipo de narrador é este (onisciente)?”
“Em nossa produção, é possível termos este narrador?”
“O que mudará no conto quando o narrador é personagem?”
“O que ele pode ou não contar e saber?”

A fim de sistematizar essas ideias, os alunos registraram no caderno definições sobre o que é narrador-personagem e narrador onisciente e que marcas podem ser identificadas no texto em cada um dos casos. Ainda nesse momento, foi possível perceber que apesar de entenderem quais as características de cada tipo de narrador, eles ainda não compreendiam quais recursos poderiam utilizar para narrar sob o ponto de vista dos personagens. A etapa seguinte, composta da análise de focalização e modalização, se fez necessária.

Atividades descontextualizadas com recontextualização imediata

Tínhamos como objetivo nesta etapa:
♦ Identificar o tipo de narrador e seu ponto de vista através de trechos dos contos.
♦ Verificar se o narrador se mantém ao longo do trecho.
♦ Fazer uso de diferentes recursos, omitindo ou acrescentando trechos, para que essa focalização ocorra.
♦ Analisar os recursos possíveis para que o narrador-personagem relate episódios sem vivê-los.
♦ Analisar o perfil psicológico dos personagens, verificando se continuam com a mesma característica da versão original. Por exemplo, Chapeuzinho é ingênua e incapaz de descobrir as maldades do Lobo sem que ele as revele.

Exemplo de atividade dessa etapa:

Análise de reescrita com mudança de foco narrativo

Ao escrever estes trechos, o autor considerou que o Lobo deveria ser o narrador. Porém, ele cometeu equívocos. Identifique esses equívocos e destaque-os com caneta marca-texto. Reescreva os trechos, fazendo as correções necessárias.

Quando entrei na casa da vovó, a velha quase teve um infarto, mas sem dó eu a comi. Quando Chapeuzinho chegou, eu tive que imitar a vovó e disse:
– Entre, minha neta, é só rolar a chave.

Quando Chapeuzinho entrou, ele falou:
(…)

Quando o lobo comeu, um caçador entrou na porta e falou:
– Nossa, a vovó parece um lobo. Espere um pouco, é o lobo! Vou matar você, vou cortar sua barriga…

Quando o lobo desmaiou, o caçador cortou sua barriga e apareceram duas coisas: um capuz branco e um capuz vermelho.

Revisão em vários tempos

Fizemos a revisão coletiva de trechos do texto de um dos alunos no data show, para direcionar a atenção da classe sobre a focalização e a modalização. Nesse processo, enfatizamos os problemas discursivos: deslizamento de ponto de vista (mudança de primeira para terceira pessoa), caracterização precária dos personagens ou passagens mal explicadas, presença de todos os episódios.

Num segundo momento, retomamos a produção individual para verificar quais os ajustes precisavam ser feitos. É importante, nessa etapa, o professor priorizar o foco narrativo e a modalização.

Em seguida, os estudantes fizeram a revisão em dupla. Cada aluno leu o texto do colega e fez indicações do que poderia ser melhorado, devolvendo para o autor verificar e, se procedente, fazer as alterações necessárias. Essas anotações de revisão foram feitas utilizando recursos de revisão do editor de texto Word.

Depois disso, os alunos foram agrupados de acordo com o personagem escolhido, de modo que eles pudessem compartilhar as estratégias utilizadas para manter o foco e os recursos selecionados para contar trechos não vivenciados pelo personagem. Voltaram novamente ao texto para verificar a possibilidade de usar algum recurso partilhado em sua própria produção.

A última etapa da revisão foi realizada pela professora, que fez apontamentos nas produções dos alunos a partir do olhar sobre o foco narrativo e a modalização. Tomou-se o cuidado de não dar respostas, e sim problematizar a maneira que o texto foi escrito, estimulando o aluno a buscar estratégias para solucionar os problemas observados no texto produzido.

Durante essas atividades, os alunos depararam-se com problemas de foco narrativo e possíveis resoluções. Essa proposta possibilitou que eles entrassem em contato com maneiras de solucionar os problemas textuais a partir de alguns modelos. Depois disso, iniciou-se outro momento da produção: a revisão e modificação das ideias iniciais para qualificação da produção de acordo com as características desse gênero.

As experiências vivenciadas pelas crianças são diversas nesse momento. Algumas querem reconstruir o texto e modificar as características dos personagens, transformando o Lobo em bom menino ou a Chapeuzinho em esperta. Outras querem adicionar elementos modernos, que não combinam com o conto. Outras ainda acabam por contar somente a parte da narrativa em que o narrador está presente, evitando problemas, deixando de contar a história. Dessa forma, as dúvidas estão presentes e é preciso que analisem com calma e tenham diversos modelos que os auxiliem nessa revisão. Portanto, as atividades anteriores são fundamentais. Além disso, revisões em dupla, cujo papel é verificar o que está de acordo ou não com a proposta, possibilitam ao aluno um olhar investigativo e distante de sua produção, ampliando as ideias e o repertório para a revisão do próprio texto.

Outra proposta bastante significativa foi analisar em grupo, por personagens escolhidos, as possibilidades de narração e de reconstrução desse texto a partir da problemática envolvida.

Esse foi um dos momentos mais importantes do projeto, em que os alunos enfrentaram as dificuldades. Ao mesmo tempo, estiveram muito próximos dos colegas, auxiliando-os no processo de construção do texto, gerando aprendizagem. Após essas propostas, tinham mais experiência e repertório, fundamentais para a revisão e ampliação de suas histórias, evitando os erros de foco narrativo.

Após todo esse processo de revisão, os alunos passaram a lidar, em seus textos, com outras questões,
como a linguagem adequada aos contos. Eles tiveram de:

♦ analisar, no texto original, palavras ou expressões que caracterizam o gênero, conferindo-lhe qualidade;
♦ analisar, em atividades, as palavras adequadas ou não, como “tá bom” / “está bem”;
♦ compartilhar trechos muito bem escritos do ponto de vista literário para que pudessem comparar com trechos mal elaborados;
♦ perceber a qualidade de descrição, de preocupação com expressões, detalhamentos, cenários etc.;
♦ recontextualizar de forma imediata – retomaram o texto, agora com foco na linguagem utilizada.

Exemplo de atividade dessa etapa:

Análise de vocabulário

Leia o trecho selecionado das reescritas do conto da Chapeuzinho Vermelho e justifique se a expressão em negrito é adequada aos contos de fadas. Caso não seja, reescreva o trecho, trocando-a por uma que corresponda ao gênero.

“O caçador entrou na casa, viu o Lobo deitado na cama e disse:

– Eu estava te procurando há um tempão.”

Produção das ilustrações

A ilustração é uma parte muito importante ao longo desses processos de estudo, pois ilustrar o  texto é fundamental na produção de um livro como este. As ilustrações devem estar coerentes com o texto, devem ser parte desse projeto. Por isso os alunos foram instigados a pensar sobre o formato, decidindo-se pelas ilustrações por grupos de personagem, e que o livro seria dividido de acordo com o narrador escolhido.

Decisão tomada, iniciaram as produções dos desenhos, realizados com diversos materiais e técnicas variadas, tendo a professora de Artes como parceira nessa etapa. Foi importante que eles trabalhassem em grupo, especialmente porque, como autocríticos que são, tiveram de fazer e refazer desenhos em busca da qualidade. E não foi menor o trabalho de selecionar a imagem adequada ao texto. Juntos, nós e os alunos, ajustamos cada ilustração na página, sempre buscando pertinência e adequação entre o código verbal e o visual.

Para finalizar essa etapa, os alunos definiram a capa, decidiram como as histórias seriam dispostas nos livros e de que maneira os autores seriam apresentados. Depois disso, fizeram a última revisão de texto, considerando os aspectos gramaticais:

• Tempo verbal (presente e pretérito)
• Marcadores temporais (advérbio e adjunto adverbial)
• Pontuação do discurso direto e vírgula (enumeração, aposto, marcador temporal, vocativo)
• Descrição de personagens e cenários (adjetivo e locução adjetiva)
• Pronomes do caso reto, oblíquos, possessivos e demonstrativos

Exemplo de atividade dessa etapa:

Pronomes oblíquos

1. Observe o uso dos pronomes nos trechos a seguir, analise-os e registre a quem o pronome se refere em cada situação.

a) “O que é isso debaixo do seu avental?”
“Uns bolinhos e uma garrafa de vinho, assamos ontem, e a vovó, que está doente e fraquinha, precisa de alguma coisa para reanimá-la”, ela respondeu. (Chapeuzinho Vermelho)
b) Cinderela então trouxe a ratoeira, onde havia três ratos graúdos. A fada escolheu um dos três, por causa dos seus bigodes, e, tocando-o, transformou-o num lento cocheiro, bigodudo como nunca se viu. (Cinderela)
c) “Não posso fazer isso. Quem teria coragem de deixar essas crianças sozinhas na mata quando animais selvagens vão, com certeza, encontrá-las e estraçalhá-las?” (João e Maria)
d) Como suas pernas estavam bambas de tanto cansaço, deitaram-se embaixo de uma árvore e adormeceram. (João e Maria)
e) “Não, minha irmã”, responderam-lhe seus três irmãos. “Você não vai morrer. Vamos encontrar esse monstro e perecer em suas garras se não conseguirmos matá-lo”. (A Bela e a Fera)

2. Faça uma lista dos pronomes oblíquos utilizados nesses trechos.

Análise de tempo verbal

Um dos trechos a seguir apresenta problemas com relação ao tempo dos verbos. Identifique qual deles está errado e justifique, explicando em qual tempo o verbo deveria estar e por quê.

TEXTO 1

– Verdade, elas são lindas e cheirosas. Obrigada por me lembrar de pegar flores para a minha vovó! – respondeu a menina. Ela vai caminhando, vendo muitas flores e pegando-as e, enquanto isso, o Lobo começa a sair de fininho.
Então, tento pegá-lo, mas mesmo assim ele consegue escapar e vai em direção à casa da vovó.

TEXTO 2

– Verdade, elas são lindas e cheirosas. Obrigada por me lembrar de pegar flores para a minha vovó! –respondeu a menina. Ela foi caminhando, vendo muitas flores e pegando-as e, enquanto isso, o Lobo começou a sair de fininho.
Então, tentei pegá-lo, mas mesmo assim ele conseguiu escapar e foi em direção à casa da vovó.

Enfim… escritores

A história se conclui e chega à sua versão final. O desafio foi grande, mas o resultado valeu, com muito crescimento individual e grandes aprendizagens para todos.

A produção, por si só, foi um sucesso, e os recursos utilizados pelos alunos para a solução dos problemas de foco narrativo foram os mais diversos: histórias contadas a partir de diálogos entre caçadores que contavam suas aventuras anteriores, lobos famintos caminhando pela floresta e ouvindo histórias de menininhas, Chapeuzinho preocupada com sua vovó que não percebe problemas em falar com lobos…

No lançamento do livro, os alunos apresentaram o projeto aos pais, explicando detalhadamente o que haviam vivenciado em cada etapa, as dificuldades enfrentadas, e autografaram seus livros e os dos colegas, como verdadeiros autores.

Ficou claro, naquele momento, o quanto eles se sentiram qualificados e importantes por verem valorizado o que haviam feito. Sentiram-se verdadeiramente escritores.

Chapeuzinho Vermelho

Acordei um dia e estava com muita fome, mas muita fome. Parecia que não tinha comido por um mês! E no dia anterior eu tinha comido um prato e tanto: dois porquinhos no almoço e um cabrito no jantar. Mas a floresta estava desabitada nesse dia, não sei por quê.

Fui andando mais adentro da floresta para ver se encontrava alguma coisa apetitosa para comer e não tão longe de onde eu estava ouvi uma musiquinha que era assim:

– Pela estrada afora eu vou bem sozinha, levando comida para a vovozinha…

Escutei mais um pouco. A pessoa que estava cantando tinha voz fina, certamente uma menina. Quando ela cantou alguma coisa “Lobo”, fiquei curioso: Por que ela falou meu nome?

Fui seguindo a voz até que encontrei uma menina de capuz vermelho, com uma cestinha de onde vinha um cheiro delicioso! Então perguntei:
– Qual o seu nome, adorável garotinha?
– Chapeuzinho Vermelho.
– E o que você traz nessa sua cestinha?
– Vou levar bolo e vinho para minha vovozinha que está muito doente.

Pensei: “Ótimo! Vou comer a Chapeuzinho Vermelho e sua avó de almoço e ainda bolo e vinho para a sobremesa! Vai ser uma delícia!”.

Percebendo que tinha ficado muito tempo sem falar, comecei a dizer:
– E onde mora essa tal vovozinha?

A menina começou a falar:

– Minha mãe me aconselhou a não falar com estranhos e não dar muitas informações.

Como vou convencer essa menina de que não sou um estranho? – pensei.
– Mas eu não sou um estranho! Eu sou um lobo que não vai te fazer mal! E também não vou fazer mal à vovozinha!
– Tá bom, mas você vai ter que guardar segredo! A casa da minha vovozinha é bem no meio da floresta, uma casinha bem bonitinha, azul e amarela.

Por enquanto estava ótimo, mas como eu ia chegar à casa da avó da menina antes que ela? Então tive uma ideia e exclamei: 
– Chapeuzinho, você já parou para ouvir e apreciar o canto dos passarinhos? Você já reparou nas belas flores que existem por aqui, de tantas cores e cheiros? Já colheu tulipas, rosas e orquídeas? Já comeu as deliciosas e apetitosas frutinhas dessa floresta? Já brincou com os esquilos fofos que vivem por aqui?

A menina, pensando, falou com ar desanimado:
– Não, mas sempre tive vontade de fazer tudo isso!
Mas minha mãe fala para eu não me distrair no caminho.

Pensei um pouco e tive uma ideia. Então falei baixinho:
– Então por que você não a desrespeita só hoje?
Aproveite e pegue umas flores e frutinhas para sua avó! Ela vai adorar!

A menina ficou pensativa quando falei aquilo. Por fim ela sussurrou:
– Tudo bem, mas esse é nosso segredo.
– Prometo que não vou contar para ninguém – disse–, mas agora tenho que ir. Tchau e até logo!

Despedi-me com um aceno de mão e logo que Chapeuzinho desapareceu de minha vista, comecei a correr para o meio da floresta. Corri muito, sem encontrar a tal casinha. Mas finalmente encontrei-a. Era exatamente como a menina descreveu: Bonitinha, azul e amarela. A casinha era feita de madeira, com a tinta meio gasta, e com muitas flores coloridas. Só tinha um andar, e as cortinas das janelas eram de estampa de flores. Mas não podia ficar admirando aquela casa. Tinha que por o meu plano em prática. Então me aproximei, bati na porta e uma voz bem fraca falou:
– Quem é?
Tentando imitar a voz de sua neta, falei:
– É sua netinha. Posso entrar?
– Claro, estou com saudades.

Empurrei a porta e pulei na cama. Engoli a velhinha com uma bocada só. Tinha que me preparar para a chegada da doce menina. Então fui ao guarda-roupa, coloquei uma roupa de cama da velha, uma touca amarela e uns óculos com lentes transparentes e deitei em sua cama, esperando a sua neta.
Pouco depois a garotinha gritou, cantarolando:
–Vovó, posso entrar?

Imitando uma voz bem fraca, falei:
– Pode sim, entre logo!

Ela entrou e começou a perguntar:
– Vovozinha, por que a porta estava entre-ab… – ela me olhou. Vó, você mudou! Por que suas orelhas estão tão grandes?

Pensando numa resposta, falei com voz calma:
– É pra te ouvir melhor, minha netinha!
– E por que esses olhos tão grandes?
– É para te olhar melhor!
– E esse nariz? Pra que esse nariz tão grande?
– É pra te cheirar melhor!
– E essa boca tão grande?

Enchi minha garganta de ar e gritei com a voz mais grossa que pude:
– É PRA TE COMER!

Engoli-a em uma bocada só, e depois de ter comido a garota e a velha, precisava de um descanso. Pensei que, depois de dar um cochilo na cama confortável da vovó, pegaria a cestinha e voltaria para o meu canto. Mas não foi isso que aconteceu.

Acordei deitado no tronco de uma árvore, na frente de um rio, sem as roupas da senhora e com um peso na minha barriga. E logo notei que a velha e Chapeuzinho Vermelho tinham saído dela, pois antes de adormecer o meu corpo não estava tão pesado! Não tenho a menor ideia do que aconteceu, mas tinha que tomar uma decisão. Então vi que minha barriga estava costurada. Por sorte alguém havia deixado um facão e um barbante na árvore ao lado. Rastejei até lá, cortei minha barriga com o facão e descobri que dentro dela tinham pedras. Não me lembro como, mas consegui fechar minha barriga com o barbante, como se fosse uma linha de costura. Corri para a toca de minha mãe e ela cuidou muito bem de mim. Eu AMO minha mãe. Agora estou muito bem, só com a cicatriz. Dizem que morri, mas estou vivo e ficarei assim por um longo tempo!

Posted in Blog, Revista Avisa lá #55.