Acolhendo a criança e a família

ELIZABETH LEAL DA COSTA, LIDIANE SOUZA DA SILVA, MANOELA SOARES CRUZ E PATRICIA NUNES SILVA¹


PARA ALÉM DO AMBIENTE DE ACOLHIMENTO, NECESSÁRIO EM TODOS OS MOMENTOS DA VIDA DA CRIANÇA, A ENTRADA NA CRECHE REQUER PLANEJAMENTO PRÉVIO E O ENTENDIMENTO DE QUE A FAMÍLIA TAMBÉM ESTÁ CHEGANDO


Começar a frequentar uma creche é, muitas vezes, um tempo delicado para as crianças e suas famílias. Tudo é novo para todos: parceiros, experiências, sentimentos e descobertas. Os envolvidos estão em um período da adaptação, inclusive os profissionais da unidade educativa.

Quando as famílias chegam ao Centro de Educação Infantil (CEI) trazem na bagagem uma série de sentimentos e sensações: insegurança, medo, cobrança, ansiedade, curiosidade e expectativas, pois ainda não conhecem o ambiente nem as pessoas que irão permanecer com seus filhos no dia a dia.

É comum que os pais façam questionamentos que revelem a insegurança nos primeiros dias: os professores dão conta da quantidade de crianças? Após a despedida eles choram muito? Meu filho(a) está se alimentando bem? Os professores que “cuidam” das crianças têm filhos?


1 Coordenadoras pedagógicas dos Centros de Educação Infantil (CEIs) da Liga Solidária (SP): CEI São Cesário, CEI Pau Brasil, CEI Santo Antônio e CEI Primavera, respectivamente. As coordenadoras dos demais CEIs da Liga colaboraram com relatos de experiências para esse artigo.

Como já é sabido², este período implica oferecer à criança e à sua família um ambiente receptivo, com profissionais preparados para propiciar um acolhimento que garanta a qualidade das interações e das experiências cotidianas a serem vivenciadas. É neste sentido que nos CEIs da Liga Solidária³ as ações são pautadas em um planejamento que se inicia desde os primeiros contatos com a família.

Focar e incluir toda a equipe de funcionários nas etapas do período de adaptação inicial nos permite antecipar situações com as quais teremos de lidar. Juntos, criamos estratégias e ações para a equipe que podem tornar esse momento bem menos tenso, para que não prevaleçam apenas as dificuldades decorrentes de uma separação. Procuramos ajudar as crianças nesse processo de conhecer o novo ambiente, pois sabemos que isso pode exigir delas um grande esforço.


2 Ver artigos publicados nas edições anteriores da Revista Avisa lá: “Entre adaptar-se e ser acolhido” (No 2); “Rituais de Passagem” (No 5) e “Como receber bem a criança e sua família” (No 21).
3 Fundada em 1923 como Liga das Senhoras Católicas, coordena, entre vários serviços sociais, 8 CEIs.

Expectativas da equipe

Ao aproximar-se o fim do ano, começam os burburinhos sobre adaptação. As professoras ficam ansiosas: como serão as novas crianças? E as famílias? Isso é contagiante. Os professores, a equipe da limpeza, a equipe da cozinha, os gestores, todos enfrentam as mesmas questões.

Ainda que passando por essa situação todo ano, muita coisa muda. Criança vai, criança vem, criança fica, muda de sala, muda de professor. São vivências novas para todos! A instituição também muda: equipe mais entrosada ou enfrentando alterações, novos conhecimentos sobre a infância e suas necessidades, novos recursos para receber as famílias.

O planejamento é elaborado minuciosamente. Cada um em sua função específica. Porém, antes de planejarmos, vivenciamos um período de estudo, de reflexão sobre a prática, de avaliação com ênfase no que deu certo e no que não deu, o que podemos melhorar, quais estratégias podemos repetir, excluir, inovar… Esse planejamento é uma das etapas do Projeto Pedagógico, cujo objetivo é favorecer um ambiente afetivo, tranquilo, com assuntos relevantes e atividades significativas, de modo que responsáveis, crianças e familiares possam conhecer, vivenciar, experimentar atividades e situações e, gradativamente, construir bons vínculos.

Os primeiros encontros

Como diz o dito popular: a primeira impressão é a que fica. Sendo assim, procuramos fazer o primeiro contato após a matrícula, que acontece em uma entrevista agendada com cada família. Ouvi-los, interessar-se por suas histórias, mais do que um momento de troca de informações, é uma oportunidade de começarmos a construir um vínculo de confiança. Elas nos dizem quem são seus filhos e nós apresentamos o novo espaço e seus procedimentos. Entre uma conversa e outra, colhemos algumas informações mais específicas, como dados de saúde, história e hábitos da criança.

Outro encontro é combinado. Reunimos os novos pais em um único espaço, de modo que novamente se sintam bem acolhidos. Procuramos compartilhar a pauta (rotina, alimentação, normas de funcionamentos etc.) dessa conversa e, assim, todos têm a possibilidade de conhecer melhor o espaço e o grupo de professores, como também esclarecer algumas dúvidas que acabam sendo comuns. Apresentamos alguns vídeos, fotos e relatos. Desse modo, todos podem ter uma noção melhor das experiências que seus pequenos vivenciarão: o contato com água, tinta, terra, areia.

Ao longo da projeção das imagens, percebemos que alguns deles ficam impressionados com as inúmeras experiências: nossa, eles passeiam pelo Educandário?4. Olha isso, se melecando de  tinta. É nesse momento que enfatizamos que, além dos cuidados, seus filhos estarão em um espaço de pleno desenvolvimento. É importante que os pais percebam o quanto o contato com a água é importante para a criança pequena, o quanto se divertem e quantas descobertas fazem enquanto misturam as cores de tintas, andam, cor rem e se movimentam. Costumamos dizer que quanto mais as roupas estiverem sujas, mais certezas poderão ter do quanto seus pequenos trabalharam e quantas descobertas fizeram durante
o dia. Ao longo do ano, as queixas sobre as roupas sujas de tintas, de barro ou molhadas dão espaço à compreensão do que uma criança peque na necessita para se desenvolver de forma prazerosa.


4 Complexo da Liga Solidária formado por várias instituições, entre elas os CEIs. Trata-se de uma antiga fazenda, cujo espaço é amplo e bem arborizado.

Pra que canto eu vou?

Planejamos e organizamos cantos de atividades para pais e filhos no período de adaptação, com propostas que possam atender a diferentes interesses. Assim, logo que chegam à sala de seu agrupamento, crianças e adultos encontram algo convidativo à participação e rapidamente as brincadeiras se iniciam.

Percebemos que são os pais que iniciam as brincadeiras, chamando os filhos para escolher alguns brinquedos e circular pela sala – Olha, filha, vamos fazer uma chapinha no cabelo? Pega pra mamãe a prancha! –, fazendo com que a criança se desloque pelo espaço.

As professoras precisam prever, na organização dos cantos, a quantidade de crianças do agrupamento e os materiais que realmente possam despertar nelas a vontade de brincar, como panelinhas, talheres, pratos, fogões, motos, carrinhos, garrafas com água colorida. No canto da beleza, kits com prancha, secador, espelho, esmalte. Os carrinhos junto às motos compõem o canto de corrida. Assim, a brincadeira fica mais significativa e envolve as crianças. Vale ressaltar que a organização prévia do espaço físico, dos materiais e das atividades que serão oferecidas deve contar com a participação de toda a equipe que, nesse contexto, se vê envolvida em um planejamento compartilhado.

O acolhimento traz em si a dimensão do cotidiano, deve acontecer todos os dias na entrada, por exemplo, após uma temporada sem vir à escola, quando algum imprevisto acontece. Acolher porque é bom ser bem recebido e sentir-se importante para alguém.5


5 Entre adaptar-se e ser acolhido, de Cisele Ortiz, Revista Avisa lá, No 2, 1999.

Mas é no início do ano letivo que deve haver maior investimento: durante a primeira semana, a nova rotina no CEI é diferenciada em relação às demais, e a inserção das crianças é feita em um horário reduzido, de quatro horas iniciais antes de frequentarem o período integral. Essa é uma estratégia importante, pois são muitas novidades ao mesmo tempo – espaço, pessoas, separação dos pais – e, dessa forma, as crianças vão compreendendo aos poucos todas as mudanças. Para que isso aconteça com tranquilidade, os pais acompanham seus pequenos, brincam, observam as salas, se aproximam das professoras, fazem amizade com outros pais e, aos poucos, vão se sentindo mais seguros em deixar os filhos no CEI.

Um mural de sentimentos

Em 2013, uma das novidades no CEI São Cesário foi a criação de um espaço para os pais compartilharem diferentes sensações, aflições, medos e expectativas. Buscar compreender o que essas famílias querem de nós, quais são seus sentimentos, é tão importante quanto propor atividades adequadas para as crianças.

As professoras perceberam as ansiedades das famílias e, na tentativa de dar respostas a esses sentimentos, resolveram solicitar que escrevessem em filipetas quais eram suas maiores dúvidas naquele momento. As famílias escreveram e nos permitiram expor relatos em um canto denominado por nós de “Mural dos Sentimentos”. No dia seguinte, ao chegarem ao CEI e lerem relatos de outros pais, ficavam mais aliviados quando percebiam que todos compartilhavam do mesmo sentimento.

Foram comuns relatos de medo, culpa e desconfiança. Um relato marcante era de uma mãe de um aluno do berçário I (0 a 1 ano): será que vou traumatizar meu filho colocando-o na creche? Para as professoras, conhecer as expectativas dos pais foi muito importante porque permitiu compreender melhor as famílias das crianças.

Quanto mais o CEI estiver aberto para sanar as variadas dúvidas, mais rapidamente a sensação de incerteza diminuirá.

O conceito de “inserimento”: a perspectiva italiana

O conceito italiano de inserção (“inserimento”) designa o processo inicial de acolhida da criança à nova comunidade. Considerado um acontecimento dedicado à vida da família e da criança, a prática da inserção baseia-se principalmente em uma ampla variedade de estratégias que tem por objetivo encorajar o envolvimento dos pais e tem início antes mesmo do ingresso da criança na creche ou na pré-escola. (…) Anteriormente, quando os educadores preocupavam-se mais com a experiência de “separação” pela qual a criança passava ao ingressar na creche, adotavam a significativa contribuição teórica dada pela teoria do apego. (…) Entretanto, através de experiências repetidas e atenção contínua ao processo de inserção, os educadores desenvolveram outros conceitos e ideias que abordam especificamente a questão do cuidado fora de casa. Eles perceberam que o contexto da creche envolve, desde o primeiro momento realizado pela família, outros adultos e outras crianças, além dos membros da família nuclear; a creche é o lugar onde acontecem muitos intercâmbios interpessoais, todos eles relevantes para o processo de inserção (…). A experiência de ingressar no sistema de creche ou de pré-escola pode conduzir os adultos a situações que gradativamente comecem a se abrir uns com os outros e tornem-se parceiros, em vez de antagonistas. Nessa situação, podem compartilhar seus conhecimentos, em lugar de exibir competências.

(GANDINI & EDWARDS, 2002)

Novas experiências, menos choro

Aos poucos, as crianças vão se envolvendo com as atividades propostas, interessando-se pelas novas brincadeiras, pelos recursos para o faz de conta, construindo vínculos com as demais crianças do grupo e com os adultos que agora também passam a fazer parte de sua convivência. Essas pessoas podem ser tanto os pais das demais crianças quanto os funcionários do CEI, que durante esse período se envolvem com o choro das crianças, entendem quando elas querem colo ou apenas solicitam maior proximidade.

Nos CEIs da Liga, algumas propostas ganham destaque durante o período da adaptação:

♦Participação da professora de música com a apresentação de alguns instrumentos que contribuem para que as crianças se acalmem.
♦Diferentes cantos de faz de conta com brinquedos e sucatas: canto da casinha, canto da beleza, ferramentas, tablados de espuma, dispositivos para fazer bolhas de sabão.
♦Atividades de pinturas com diferentes riscantes e suportes, papéis, canetinhas, giz de cera ou lousa.
♦Para os adultos, entregamos um folheto com alguns informativos sobre o que é adaptação escolar, como as crianças reagem e qual deve ser a conduta dos pais nesses primeiros dias. Algumas dicas importantes:

– Incentive o(a) filho(a) a ir para o CEI, contando o que acontecerá durante esse período.
– Procure não demonstrar que está com dó em deixá-lo(a) no CEI, porque as crianças notam facilmente essa fragilidade e ficam inseguras.
– Não minta. Ao se despedir, diga que está indo embora, mas que, depois de um tempo, retornará para buscá-lo(a).
– Quando estiver em casa, solicite a ajuda do(a) filho(a) ao organizar a mochila e os pertences.

Desse modo, a criança vai compreendendo sua nova rotina.

Separação e experiência positiva

Adaptar-se, do ponto de vista psicológico, significa utilizar as experiências de vida de modo positivo, como uma bagagem pessoal; poder sentir medo frente ao desconhecido, porém sem ser dominado e paralisado por ele. Adaptar-se significa somar-se a um novo contexto.

Das relações em uma instituição de educação, enfatizamos a importância do momento de separação de uma criança que “parte para o mundo”, deixando para trás suas primeiras relações, e a necessidade de se construir um trabalho integrado, em equipe, dando o devido valor à bagagem individual de cada um. O espaço é coletivo, mas o momento é individual para cada criança.

“A importância do acolhimento ao iniciar a vida fora de casa”, de Cisele Ortiz e Maria Teresa Venceslau de Carvalho. In: Interações: ser professor de bebês – cuidar, educar e brincar, uma única ação.

São Paulo: Blusher, 2012

Um canto para as famílias

Uma proposta que deu certo foi a oficina com as famílias. Em um espaço sem criança, organizamos cantos diversos e bem atrativos. No canto da leitura, havia livros de receita, jornal do dia, revistas sobre Educação Infantil, portfólios dos projetos dos anos anteriores, álbuns de fotografia, textos sobre adaptação. Fizemos também o canto da pintura, com alguns suportes como papel sulfite colorido, papel pardo, canetinha, giz de cera e tintas. Essa proposta teve mais destaque. Fizemos o canto dos jogos, com quebra-cabeça, jogo da memória, monta-monta. Deixamos cartolinas espalhadas pelo CEI e várias folhas de papel sulfite para as famílias que sentissem vontade de deixar alguma mensagem.

Aos poucos, vamos construindo ambientes mais compartilhados, atribuindo significado às atividades expostas em salas, corredores, hall de entrada. Percebemos que as famílias ficam muito satisfeitas quando identificam as produções dos filhos ou fotos das crianças em diferentes momentos. Por isso a importância da inserção das produções das próprias crianças em locais bem visíveis.

Uma forma de analisar esse período de adaptação com os pais é por meio de uma avaliação, com perguntas sobre o modo como foram recebidos, de maneira que eles possam expor suas opiniões, críticas e sugestões. Para nós, esse é um instrumento importante, uma vez que nos baseamos nele para melhorar a qualidade do trabalho oferecido. Nos relatos feitos pela grande maioria das famílias referentes a esse momento de separação, os pais mostram-se agradecidos pela acolhida desde o momento da matrícula, destacam a receptividade da equipe escolar e tecem elogios ao espaço físico. São esses indicadores que norteiam o trabalho.

Com o tempo, os pais vão ficando mais tranquilos, as chamadas telefônicas para saber se os filhos estão bem vão diminuindo, a expressão de preocupação e medo vai dando lugar a um breve sorriso que, para nós, é um sinal positivo.

Posted in Revista Avisa lá #55.