Ler na Tempestade*

Por Ana Carolina Carvalho

 

Em um de seus discursos, o escritor turco Orhan Pamuk[1] escreveu: para mim, literatura é remédio. E ele completou, dizendo que precisa de uma dose diária de boa literatura (sabemos, não é qualquer remédio que nos serve) para manter-se são. Vivo. Para ele, essa dose diária essencial significa a sua necessária retirada do mundo.

A frase de Pamuk, da literatura como remédio, me fez pensar:

O que pode a literatura curar?

Insano seria viver o tempo todo na realidade concreta, na vida dura, e na dureza da existência, na vida tantas vezes vazia dos compromissos cotidianos, sem espaço para o sonho e para a imaginação. Sem a retirada do mundo. Quem aguentaria?

Não há um dia sequer que o ser humano não entre em contato com algum tipo de ficção. Não podemos passar 24 horas sem apelar para um refúgio nas palavras ditas ou escritas, sem nos transportarmos para outro mundo, para mundos do era uma vez… do: “E se fosse assim…”. Dos pequenos devaneios diários aos grandes clássicos, da piada cotidiana ao poema, da letra da canção ao conto, à crônica, à peça de teatro. Não há um dia sequer que passemos sem a presença do literário em nossas vidas. Trata-se de necessidade humana, como defende Antonio Candido[2], ao colocar a literatura no rol dos direitos humanos.

Não há notícia de nenhuma sociedade que não tenha narrado histórias. Portanto, não há notícia de nenhuma sociedade que não tenha desenvolvido essa tecnologia de sobrevivência psíquica e humana que são as histórias.

A literatura nos cura da realidade concreta.

A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta, escreveu Fernando Pessoa[3]. Somos seres de sonhos e de projeções, precisamos imaginar para poder existir. E temos uma vida, apenas. E ela não nos basta. Também porque queremos, desejamos conhecer outras existências, saber de outros sofrimentos, conhecer outros dilemas, saber de outras paixões, brincar de ser outro ou outra, morrer de muitos distintos modos, percorrer caminhos diversos, e nos perder e nos encontrar de diferentes formas, desenhar novas geografias.

A literatura, portanto, também nos curaria da dor de termos uma existência limitada, colocando-nos em contato com vidas que jamais poderíamos viver. Ela nos tira do confinamento de nossas vidas, como escreveu Rosa Montero[4].

Lendo, podemos estar na pele de um outro e viver as suas dores. Percorrer caminhos em direção ao grande mistério que é o outro. Ler é tentar responder à pergunta impossível: como é ser o outro? A pergunta que faz nascer e que sustenta a empatia, qualidade em falta e mais do que necessária ao humano (sobretudo nesses nossos tempos).

A literatura, portanto, cura o nosso egoísmo, a nossa falta de empatia.  E nos ajuda a amar o desconhecido e a nos compadecermos profundamente dele, partilhando suas dores e destinos, compreendendo a sua existência.

A literatura nos mostra muitos destinos possíveis. O escritor italiano Italo Calvino[5], ao falar sobre os contos tradicionais italianos que adaptou em seu belíssimo Fábulas Italianas, nos ajuda a entender a permanência dessas histórias no tempo: essas narrativas tão antigas persistem e ainda têm o que nos dizer, ainda nos tocam e encantam porque nos apresentam um catálogo farto de destinos humanos. Por isso ainda precisamos desses contos tradicionais, que vencem tempos e espaços. Porque estão ali inúmeros caminhos possíveis, dores, a profundidade do humano, as encruzilhadas, as escolhas, as consequências, as saídas, derrotas, vitórias, laços, desfechos.

Tantas vezes, a literatura é guia.

Ela nos cura porque nos oferece caminhos para a nossa existência e nos coloca em contato com as vozes que vieram antes de nós, amparando-nos e curando nosso desamparo. A literatura nos cura porque ela é também é nossa dose de esperança no humano, como são esses contos, que nos certificam de que, mesmo com todas as agruras e dificuldades, é possível existir.

A literatura não nos abandona. A qualquer momento, podemos abrir um livro, encontrar ou reencontrar uma história que nos ajuda a narrar nossa própria existência, oferecendo espelho e colo. Ela é hospitaleira. E assim nos cuida. No mais singular, na existência profundamente única encontramos o universal, e podemos nos descobrir ali, reconhecendo algo nosso até então desconhecido.

A literatura cura o nosso medo de estarmos sós, de não termos referências, de nos sentirmos párias, excluídos, piores, nosso sentimento de estranheza perante o mundo, tantas vezes sentido.

Somos seres de crise, nascemos incompletos, sozinhos, vivemos logo de cara, uma separação traumática e dependemos de um outro. Sabemo-nos mortais, mas desconhecemos a morte. E o além dela.  E a literatura nos oferece palavras para que possamos narrar nossas maiores inseguranças, nossos maiores medos, e narrando-os, lidamos melhor com eles, nos modificamos e transformamos as nossas relações.

O filósofo italiano Giorgio Agamben[6] escreveu: “o homem moderno volta para a casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos de todo tipo, mas nenhum deles se tornou experiência”. Muitas coisas acontecem durante o dia com a gente, mas pouco realmente nos desloca, nos acontece ou nos toca. Parar para ler um livro, ver algo nunca feito com as palavras e ser tocado por isso, descobrir-se ali.

A literatura nos cura da falta de viver experiências.

Mas há os tempos de crises profundas, de grandes catástrofes, de vidas que experimentam tragédias enormes, que as dilaceram, vidas que se desestruturam, ao perder tudo aquilo que reconhecemos como “as nossas referências, o conhecido”. Há tempestades de todos os tipos, e elas podem acontecer hoje ou amanhã. Surpreendendo qualquer um de nós. A morte do ser querido, a cidade devastada pela água, o bairro soterrado ou dominado pelo crime organizado, a guerra, a pobreza, a exclusão.

E há inúmeras experiências que nos mostram o que a literatura, que trata precisamente dos extremos humanos, pode fazer nessas situações extremas.

Michéle Petit[7], antropóloga francesa que estuda a relação das pessoas com os livros, e que nos inspirou a realizar essa conversa, relata experiências belíssimas sobre este lugar que a literatura pode ter na vida de gente que vive situações extremas. Em seu livro, A arte de ler, ou como resistir à adversidade, ela apresenta muitos trabalhos realizados na América Latina. No Brasil, na Argentina, na Colômbia… Na guerrilha, nas comunidades e nas ditas periferias, lugares em que os livros não costumam circular com tanta frequência, vistos como um luxo das elites, como objetos supérfluos diante da urgência da sobrevivência. Mas o que é sobreviver? O que é o existir humano? Nós existimos apenas para sobreviver materialmente?

Nas situações extremas, nas grandes crises, o que o encontro com a literatura pode fazer com quem mais sofre? O que se resgata ou o que se inaugura quando, nesses lugares, as pessoas são convidadas a ler ou ouvir histórias?

Pensemos numa criança, em um abrigo – por causa de enchente ou guerra, a criança perdeu todas as referências que tinha. Sua casa, escola, brinquedos, sua cama, tudo o que constituía seu porto seguro. Então, se ela tem a felicidade de encontrar livros ela pode experimentar imaginar outras vidas, viver um pouco essas outras vidas, entrar e sair de mundos. Controlar um pouco mais onde poderá estar. Construir um mundo próprio, protegido, uma geografia que permanece intacta. Reconstruir o seu mundo, dentro de si. E assim ganhar forças para viver o que parece impossível.

Encontrar palavras para poder narrar a sua experiência, ser encorajada pelas palavras de um outro para poder narrar a si mesma, o que se passou com ela, se assim a ajudar. Simplesmente falar e contar outras histórias. Para poder achar uma forma de contar o que lhe aconteceu. Narrar o que acontece quando o que se passou é muito terrível pode significar uma saída. Contudo, nem sempre temos, dentro de gente, palavras para contar o que está acontecendo: como uma criança pode narrar uma guerra? Sua cidade embaixo d’água? Um abuso sexual? Onde ela pode achar as palavras para dar outras formas para o que lhe acontece? Para além dos fatos?

O trauma, esse acontecimento sem inscrição anterior, sabemos, paralisa justamente porque não pode ser narrado. É a invasão do fato sem que se possa simbolizá-lo. Fatos são pedras duras, não há como fugir, escreveu Clarice Lispector[8]. Mas, se não podemos fugir delas, é possível transformar a nossa relação com o que aconteceu, e isso acontece por meio da linguagem. Sempre lembrando que às vezes, também é preciso acolher e respeitar o silêncio, e isso a literatura também pode fazer.

A história mais emblemática de um trauma na literatura é a história do sultão Shariar que, traído por sua mulher, e tendo sido testemunha da traição que também sofreu o irmão, dá um jeito de não mais passar por aquela dor. Resolve matar cada jovem que desposa, repetindo a cada noite o enlace, e o assassinato, pela manhã. Paralisado em sua dor, ele não pode mais amar. Sequer vive, preso em um ciclo de morte. Até que chega Sherazade. E sabemos, ela o cura com palavras, com as histórias. E com a sua presença.

Então, há também para aquela criança que vive uma situação extrema, a presença de um mediador. No encontro com a literatura, e ela também cura por causa disso, há um triângulo que se forma, como bem definiu Yolanda Reyes, composto pelo livro, pelo mediador e por aquele que recebe a história. Há alguém que escolheu um livro, que oferece o seu tempo, a sua escuta, o seu silêncio, muitas vezes, ou a sua voz, que traz vozes mais longínquas, que podem contar sobre aventuras, amores, perdas, mortes, sobre seres fantásticos e sobre mistérios… Imaginem o que pode significar para a criança ser acolhida ali, entre aqueles que viveram antes dela, e também por aqueles que dispuseram estar ali, lhe oferecendo mundos e palavras, colo e hospitalidade para que ela possa viver melhor e com mais força nesse mundo em que estamos, lugar de tempestades.

 

* Texto escrito para evento da Feira do Livro do Pacaembu

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[1] Pamuk, Orhan. A maleta do meu pai. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. P. 73.

[2] Candido. Antonio. “O direito à literatura”, em: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

[3] Pessoa, Fernando. Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. P. 504

[4] Montero, Rosa. O perigo de estar lúcida. São Paulo: Todavia, 2023. P.29

[5] Calvino, Italo. Fábulas Italianas. São Paulo: Companhia das letras, 1992. P. 14

[6] Agamben, Giorigio. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. P. 22

[7] Petit. Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009

[8] Lispector, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998.

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