Com a mão na massa

A imaginação criadora pode ser apoiada pelo trabalho experimental com substâncias diversas, tais como água, areia, terra, sempre bem-vindas em processos educativos

Sonhei que eu dirigia uma caminhonete D-20, e minha avó estava sentada ao meu lado. Íamos por uma estrada de terra paralela ao asfalto, a praia à nossa esquerda. Era um domingão, muitos automóveis, e eu que, entretanto, queria levá-la para ver as casas, as igrejas antigas e, especialmente, os lindos turbantes de chitão colorido usados por jovens moças e rapazes, tomo uma via perpendicular à rua da praia, avenida de terra larga e barrenta, um barro vermelho, denso, em que a caminhonete ia derrapando para lá e para cá e não se via o fim, como numa transamazônica. Lá em cima da estrada (que era plana…), formando ângulos improváveis, entreviam-se praias, a da esquerda com mar bravio, grandes ondas batendo em rochedos, a espuma do mar planando nas alturas; uma outra, à direita, com mar azul turquesa, calmo, brilhante, convidativo.

E assim, eu com minha avó ao lado na larga estrada lamacenta, decido voltar, tentar a conhecida estrada de asfalto, aquela longa fila dos banhistas voltando da praia no final de tarde do domingo. Ora, minha avó fica indignada com essa decisão, pois ela estava adorando rodar naquele barro revolto e escorregadio, com destino ignorado e com aquela promessa de praias belíssimas, deliciosas e inexploradas à nossa frente.

Barro
Todos sabemos que, para uma possível interpretação dos sonhos, o mar é símbolo do inconsciente, de tudo aquilo que ainda não é administrado pela nossa consciência e também do que nunca será. Entretanto, em meu sonho, a via de acesso ao paraíso (para mim, mar é igual a sensação boa) era um bom barro molhado e ter minha avó como companheira nessa empreitada, o que de fato ela foi na vida real. Lembro-me de umas férias em Campos de Jordão (SP) em que ela resolveu nos bandear por uma cerca de arame farpado para um pasto íngreme, coberto de húmus, galhos de araucária e esterco fresco, para que subíssemos nas pereiras carregadas que ali conviviam com as vacas e os bois, bezerrinhos também. De modo que um de nós subia em uma árvore e jogava as pêras, que eram colocadas em um balaio; só que ao tentar pegar do chão as pêras escorregávamos no barro úmido, e ríamos experimentando mais e mais vezes o tobogã recém-descoberto.

Pois bem, este aprendizado que pode se originar do manuseio da terra e de todo tipo de matérias transformáveis, creio hoje, é da maior importância. Desde muito pequena, eu oscilava entre o prazer de pôr a mão nas substâncias – tocá-las para senti-las e compreendê-las – e a necessidade de ser bem-comportada. Felicidade maior para mim era entrar no mar. Fazer buracos na areia, construir castelos – gotejando a areia bem molhada da beira do mar, com aquela meleca sempre geladinha escorrendo entre os dedos, depois deitar na areia sequinha e tomar sol como quem bebe a vida. Já adulta, em um mercado, enfiar as mãos nos sacos de cereais, experimentar a textura do arroz, do milho, das lentilhas… uma delícia! Hoje, acho que eu queria alquimia, transformação. Fazer melecas, por exemplo; barro molhado; pé no chão; areia. Meu pai brincava muito conosco, minha avó também. Uma vez, na praia, com uma grande pá de pedreiro, meu pai fez um enorme vulcão de areia, com fogo dentro, abertura e chaminé, de modo que o fogo e a fumaça se viam de longe, para alegria de todas as crianças da redondeza, que também trabalharam no vulcão, batendo a areia com a mão para que as paredes se firmassem e se elevassem.

Com minha avó1, aprendi a fazer macarrão e muitas outras aventuras. Da escolha criteriosa dos ovos e da farinha pesada na balança de cobre, o ponto da massa medido no tato, da espessura exata da massa estendida sobre a mesa de madeira aos longos cortes longitudinais com a faca – retinhos. E as tiras penduradas em uma cadeira para secar. Afinal, trata-se da famosa pastacciutta, ou massa seca. Para o molho de tomate, paciência, minúcia e precisão. Daí, portanto, vinha uma possibilidade de massa, depuramento alquímico e transformação.

Massa
Todos nós, que trabalhamos com Educação Infantil, sabemos da importância das misturas para as crianças. Por exemplo, quando elas estão em um tanque de areia realizando experiências de transvasamento de água e areia em copinhos de plástico, são capazes de passar horas a fio nessa atividade, se as deixarmos. Que tipo de conhecimento está sendo engendrado ali? Vale lembrar que o entendimento sobre a conservação dos volumes – quando a pessoa compreende que um copo alto e estreito pode conter a mesma quantidade de líquido de um copo largo e curto – se dá por volta dos 10, 11 anos. Por essa razão, não é o pensamento operatório que ali se prepara, ou não apenas ele, mas toda a dimensão da imaginação humana que se baseia na experiência, no manuseio, na mistura, em massas, substâncias que se transformam pela nossa ação.

E aqui vai uma receita:

  • 1 quilo de farinha de trigo
  • 1/2 quilo de sal
  • Pó xadrez da cor desejada
  • Óleo de cozinha

Sente-se no chão, em roda, com as crianças. Em uma bacia, misture a farinha, o sal (que tem aqui a função de conservante) e a porção de pó xadrez (ou anilina) para chegar à tonalidade desejada. Coloque duas colheres de sopa de óleo. Vá acrescentando água aos poucos, procurando dar unidade à massa até chegar a uma única bola, ao mesmo tempo maleável e sem esfarelar. Reparta a bola em porções iguais ao número de crianças de sua sala.

Pois bem, que poder de encantamento tem essa massa para as crianças? Esse longo tempo passado a fazer das bolas, cobrinhas; das cobrinhas, bonecos; dos bonecos, cachorrinhos, e assim por diante, revela um grande prazer que é, ao mesmo tempo, sensorial e cognitivo, sem dissociações entre sentir e agir. Esse tipo de prazer teve por grande intérprete o filósofo francês Gaston Bachelard, que procurou ver na literatura manifestações de uma “tese que afirma o caráter primitivo, o caráter psiquicamente fundamental da imaginação criadora.”2

Para Bachelard, a imaginação criadora produz o que ainda não existe, e o faz no embate ou convívio com a matéria. Este autor se contrapõe à visão de um real anterior às ações de um sujeito: “tanto para a filosofia realista como para o comum dos psicólogos, é a percepção das imagens que determina os processos da imaginação. Para eles, vemos as coisas primeiro, imaginamo-las depois; combinamos, pela imaginação, fragmentos do real percebido, lembranças do real vivido, mas não poderíamos atingir o domínio de uma imaginação fundamentalmente criadora. O conselho de bem ver, que forma o fundo da cultura realista, domina sem dificuldade o nosso paradoxal conselho de bem sonhar, de sonhar permanecendo fiel ao onirismo dos arquétipos3 que estão enraizados no inconsciente humano.” (A Terra e os devaneios da vontade, p.2).

Essa tentativa de compreender a gênese e os desdobramentos da imaginação leva-o a intitular capítulos como: “A vontade incisiva e as matérias duras. O caráter agressivo das ferramentas”; “As matérias da moleza. A valorização da lama”; “A massa”; e assim por diante. Nesses capítulos são nítidos os aprendizados com a criança que subsiste em nós e que, portanto, são valiosos para compreendermos melhor a gênese da imaginação e do conhecimento. Quando oferecemos à criança uma bola de argila para ela modelar, um mundo de possibilidades se abre em suas mãos, dos arquétipos culturais de vasos e todos os tipos de recipientes às figuras de homens e animais requerendo um trabalho criador para ganhar forma.

Este trabalho, afirma Bachelard, é conduzido por “sonhos de ação que designaremos como devaneios da vontade” e não por uma reprodução do real, pois para ele “os devaneios são a base da psicologia da criação” (A Terra e os devaneios da vontade, p. 108). E continua: “a palma da mão é uma prodigiosa floresta muscular. A menor esperança de ação a faz estremecer” e “a primavera perfumada nasce da mão feliz” (p.67), aquela que encontra uma matéria propícia para exercer a imaginação criadora. E aqui se formula uma hipótese, que proponho aos leitores.

E se em lugar de soterrarmos nosso pensamento sensório-motor, tão potente até os 4 anos, com todo tipo de coisas prontas – brinquedos, imagens, comportamentos estereotipados – nós seguíssemos experimentando as coordenações de sensações (sensório) e movimentos (motor) até o fim da vida? Nesse caso, essa é minha aposta, todos nós poderíamos ter mais bem integrados sensações, sentimentos, intuições e pensamentos, com possibilidades de sermos mais criativos e felizes em qualquer circunstância.

Como crianças, que nunca perdem o prazer de experimentações com uma boa massa bem melequenta e do conhecimento que daí pode se originar. Afinal, culinária, desenho, pintura, escultura e esportes são exemplos de atividades humanas fundamentais nas quais a imaginação criadora originase da intimidade experimental com a matéria, e não de sistemas de idéias preestabelecidas. Que viva sempre em nós o nosso sensório-motor!

(Monique Deheinzelin, física, educadora e autora do livro A fome com a vontade de comer, uma proposta curricular de educação infantil – Vozes, 1996 -, entre outros)

1Gerda Brentani (Trieste,1906 – São Paulo, 1999) foi artista plástica e seus desenhos ilustram este artigo. Alguns deles estarão expostos na galeria da Escola Comunitária de Campinas até 27 de outubro de 2008.
2Gaston Bachelard. A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 2.
3Sonhos com imagens ligadas a grandes temas do inconsciente coletivo.

O chafariz

Argila, como meio para a criança projetar, expandir e elaborar idéias e experiências.

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“Giorgia
No meu chafariz… a água vem da direita e da esquerda como um spray. É um chafariz como um arco-íris, faz uma curva. É um chafariz que chora porque a água vem para baixo das partes como um chorão (árvore). No topo, tem dois corações, como no meu desenho.

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Alice
É um chafariz de gelo que eu vi nas montanhas onde há muita neve. Eu fiz água gelada que cai. No topo do chafariz tem um peixe feito de gelo também… A água vai para cima e vem para fora através dos buracos perto do peixe do topo.

(Trechos e fotos extraídos do livro: Le Fontane. Ed. Reggio Children, 1995. Tradução livre.)

Ficha técnica

Contato com a autora: Monique Deheinzelin. E-mail: moniqued@uol.com.br

Para saber mais

  • A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, Gaston Bachelard. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677
  • O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, Gaston Bachelard. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677
  • A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, Gaston Bachelard. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677
  • Eu me lembro, Gerda Brentani, Companhia das Letrinhas. Tel.: (11) 3707-3500.
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