Três focos para começar

O Programa Além das Letras tem como objetivo específico apoiar as práticas de leitura e escrita nas séries iniciais do ensino fundamental. Para isto, definiu três conteúdos principais que são apresentados por módulos à escolha dos municípios integrantes da rede. Para apoiar o formador local foi elaborado um manual, do qual o programa socializa alguns trechos neste artigo

avisala_31_formacao3O objetivo final do Programa Além das Letras1 é contribuir para a formação de usuários competentes da língua escrita. Ensinar a ler e escrever – missão original e irrenunciável da escola – significa desenvolver práticas sociais que envolvam a escrita. Hoje em dia não é mais possível pensar na alfabetização somente como um processo de apropriação de um código. Os estudos sobre didática do ensino da língua afirmam que para aprender a ler e escrever são necessários dois processos:

Compreender a natureza do sistema alfabético de escrita – as relações entre letra-som, a segmentação entre as palavras e as restrições ortográficas. Compreender o funcionamento da linguagem escrita – suas características específicas, suas diferentes formas, gêneros. Esses dois processos devem ser trabalhados de forma concomitante na escola. Isso quer dizer que não basta colocar os alunos diante dos textos para que aprendam o funcionamento do sistema alfabético e também que essa aquisição por si só não garante a possibilidade de participar com sucesso das práticas sociais de leitura, escrita e comunicação oral. Reproduzir as condições que contextualizam a leitura e a escrita fora da escola e dentro do âmbito escolar e planejar situações de aprendizagem específicas para que os alunos aprendam o sistema alfabético de escrita representam o nosso maior desafio.

Atividades fundamentais
Para preservar a natureza da leitura e da escrita como prática social na escola, o Programa Além das Letras selecionou como conteúdos principais da formação algumas atividades fundamentais para o processo de alfabetização nas séries iniciais. Uma alfabetização que tenha como objetivo formar leitores e escritores plenos (ou seja, participantes da cultura escrita) pressupõe um trabalho didático que contemple:

  1. Leitura feita pelo professor – situação didática que assegura aos alunos o acesso à diversidade de textos mesmo antes de lerem convencionalmente.
  2. Produção de textos – trabalho planejado para que os alunos produzam textos de diferentes tipos mesmo antes de escreverem convencionalmente, façam revisões coletivamente e tenham a oportunidade de discutir e analisar as características discursivas de um texto.
  3. Situações de escrita e de leitura pela criança – contextualizam a reflexão sobre o funcionamento do sistema alfabético de escrita e garantem aos alunos a oportunidade de pensar diariamente sobre como se faz para ler e escrever.

Em um processo de alfabetização a criança passa por todas essas situações e constrói conhecimentos sobre o sistema de escrita simultaneamente. No entanto, para efeito da apresentação didática desse conteúdo aos professores, visando a acompanhá-los no processo de formação profissional, o programa Além das Letras enfoca tais situações em três módulos que se sucedem ao longo de todo o período de acompanhamento na rede. Os municípios que entram no programa ou os que já participam há mais tempo escolhem para o projeto de formação dos coordenadores, o conteúdo que desejam desenvolver naquele ano. Essa escolha deve ser pensada em função das necessidades que o município apresenta no momento, a partir de uma avaliação do que os alunos sabem, do que não sabem e do que ainda podem aprender com a ajuda de seus professores. Inscrevendo-se para participar de um dos módulos, o município passa a receber materiais de apoio e supervisão para o desenvolvimento da formação profissional que abordem tais conteúdos.

Módulo 1 – Leitura feita pelo professor Sabemos que uma criança pode construir muitos conhecimentos sobre sua própria língua mesmo antes de saber ler e escrever convencionalmente. Por esse motivo, a leitura diária feita pelo professor é uma das mais importantes situações que sustentam o processo de alfabetização: ela assegura, ao aluno que ainda não aprendeu a ler sozinho, o acesso à diversidade de textos. Embora a situação didática – ler diariamente para crianças – pareça muito simples, ela é bastante complexa.

O que a criança pode aprender?
Ao ouvir diariamente uma boa leitura feita pelo professor, o aluno pode desenvolver comportamentos típicos de um leitor expert, tais como:

  • Reconhecer regularidades de um tipo de texto (crônica, conto etc.);
  • Descobrir como os leitores reais atuam, quais são seus comportamentos: ler do começo ao fim; ler até uma parte, marcar onde parou e continuar em outro momento; retomar alguns trechos; conhecer as características predominantes da narrativa dos autores que mais gosta e se informar mais sobre ele;
  • Observar gravuras e antecipar significados de um texto a partir delas ou usá-las como apoio para a reprodução de trechos das histórias já conhecidas;
  • Relacionar uma história a outros textos lidos ou ouvidos;
  • Desenvolver suas preferências leitoras e indicar leituras para outros colegas.

Ao mesmo tempo, pode construir conhecimentos sobre a linguagem que se usa para escrever, que, como sabemos, é muito diferente da linguagem que se usa para falar. Isso ajuda os alunos a desenvolverem uma competência lingüística, que será necessária acionar quando estiverem em posição de escritores.

O que os professores podem aprender?
Para que os alunos aprendam todas essas coisas é necessário que eles tenham professores que sejam bons leitores, capazes de tratar a leitura na escola tal com ela se apresenta no mundo. Por isso, é preciso que ele aprenda a:

  • Selecionar livros de qualidade para todas as idades e interesses da turma;
  • Realizar com freqüência e regularidade rodas de leitura para a apresentação de diferentes histórias, nas versões mais elaboradas;
  • Compartilhar suas impressões sobre as histórias lidas;
  • Favorecer a manifestação de comentários pelos alunos, incentivando-os a opinarem sobre as leituras, a manifestarem seus sentimentos, idéias, preferências etc.;
  • Expor suas próprias preferências pessoais com o intuito de ampliar a possibilidade de as crianças avaliarem as histórias.
  • Permitir que as crianças apreciem e tenham acesso aos livros em diferentes momentos da rotina: tanto nas rodas de leitura quanto no cantinho da leitura;
  • Compartilhar informações prévias e relevantes sobre o que será lido, para o melhor entendimento do texto.

O que os formadores e coordenadores podem aprender?
A tarefa não é pequena! Para isso, os formadores locais do Além das Letras e coordenadores pedagógicos que atuam nos municípios devem aprender a:

  • Observar a qualidade do acervo e problematizar a escolha dos livros que se vai ler para as crianças;
  • Apoiar o planejamento do professor, enfocando a leitura como atividade diária na escola, considerando a qualidade do texto, a leitura em voz alta e os comportamentos leitores envolvidos nessa modalidade;
  • Orientar o professor para a organização e a utilização sistemática de biblioteca de sala;
  • Apoiar e orientar o planejamento da roda antes, durante e depois da leitura.

Neste módulo, a meta fundamental é a formação de professores e coordenadores para a implementação da roda diária de leitura nas escolas.

Módulo 2: Produção de textos
A produção de textos, quando bem planejada, cria todas as condições para que os alunos elaborem textos de diferentes tipos mesmo antes de escreverem convencionalmente: é o que acontece, por exemplo, quando o aluno dita ao professor. Embora a grafia não seja propriamente do aluno, a elaboração textual é. Por isso dizemos que há muito que aprender nesse tipo de situação, que envolve não apenas a formulação do texto, mas também o processo de revisão. Veja a seguir:

O que a criança pode aprender?
Ao ditar para o professor, ela está produzindo um texto, utilizando, para tanto, todas as características e formalidades da linguagem que se usa para escrever. Com isso ela pode aprender:

Características da linguagem escrita:

  • como a língua se constitui;
  • como transformar uma idéia em escrita.

Os “fazeres de escritor”:

  • Planejar seus textos;
  • Recorrer a materiais escritos para buscar informações a respeito do conteúdo sobre o qual está escrevendo;
  • Reler, durante a produção, o que já escreveu;
  • Escrever rascunhos e fazer modificações;
  • Submeter o texto à consideração de um ou mais leitores.

Podem aprender, ainda, a fazer análise de textos e reconhecer que o procedimento de revisar é parte integrante do próprio ato de escrever. Nesse processo aprendem a:

  • Identificar problemas do texto e aplicar conhecimentos sobre a língua para resolvê-los: acrescentar, retirar, deslocar;
  • Realizar procedimentos específicos de revisão do próprio texto;
  • Fazer revisões coletivas, o que oferece a oportunidade de discutir e analisar as características discursivas de um mesmo texto.

O que os professores e coordenadores podem aprender?
Para que os alunos aprendam todas essas coisas, é necessário que eles tenham professores capazes de tratar a produção de texto na escola tal como ela se apresenta no mundo. Por isso, é preciso que ele aprenda a:

  • Reconhecer as qualidades de um texto bem escrito;
  • Reconhecer até onde os alunos podem chegar a partir das propostas que se oferece na escola;
  • Planejar situações didáticas de produção de reescritas a partir de textos conhecidos pelo grupo;
  • Intervir nos momentos de ditado do texto, preservando as idéias originais dos alunos;
  • Problematizar com a classe trechos de textos que podem ser mais bem escritos;
  • Encaminhar processos de revisão de textos individuais e em grupo;
  • Apoiar os alunos na transposição de textos orais para a linguagem que se escreve;
  • Planejar momentos de leitura visando alimentar os processos de escrita.

O que os formadores e coordenadores podem aprender?

Para acompanhar os professores nessa difícil tarefa, os formadores do Além das Letras, coorde-nadores pedagógicos que atuam nos municípios, devem aprender:

  • Os processos de aprendizagem e de ensino da leitura e da escrita;
  • Reconhecer o que qualifica uma boa produção de texto para diferentes idades;
  • Observar a sala e utilizar seus registros para apoiar o planejamento do professor;
  • Apoiar a implementação de rotinas de alfabetização que incluam a produção de texto.

A meta principal deste módulo é a formação de professores e coordenadores capazes de implementar situações didáticas que oportunizem uma sensível melhora na qualidade dos textos que se produz na escola, contribuindo assim para uma alfabetização plena nas séries iniciais.avisala_31_formacao1

Módulo 3: Escrita e leitura pela criança
Infelizmente, no Brasil, estamos nos acostumando a colher índices de avaliação cada vez mais baixos, o que nos mostra que há alunos que não escrevem e não lêem convencionalmente numa idade em que já deveriam fazê-lo com competência. Os professores encontram dificuldades em ajudá-los a avançar a partir de hipóteses pré-silábicas e mesmo silábicas. Tais questões podem ser enfrentadas a partir das reais situações em que os alunos lidam com a tarefa de ler e escrever sozinhos. Veja o que as crianças podem aprender ao serem expostas a essas situações.

O que a criança pode aprender?

Nas situações em que a criança lê ou produz por conta própria, ainda que não o faça convencionalmente, ela pode aprender a:

  • Arriscar-se a fazê-lo por conta própria em todas as situações em que a leitura e a escrita estão presentes no cotidiano escolar;
  • Apropriar-se da escrita do próprio nome para usá-la como referência em outras situações de leitura e de escrita;
  • Analisar o sistema de escrita, reconhecer suas regularidades;
  • Desenvolver hipóteses próprias sobre como se lê e se escreve;
  • Pensar sobre suas próprias hipóteses, colocálas em xeque e avançar na sua própria reflexão.

As situações de leitura pelos alunos na alfabetização inicial, além do objetivo próprio de toda atividade de leitura, obedecem à necessidade de cumprir um propósito didático bem específico: o de conseguir que as crianças avancem na aquisição do sistema de escrita, que possam ler por si mesmas cada vez melhor.

O que os professores podem aprender?

Para que os alunos aprendam todas essas coisas, é necessário que eles tenham professores capazes tratar a produção da criança como algo merecedor de atenção e intervenções didáticas específicas. Por isso, é preciso que ele aprenda a:

  • Reconhecer as hipóteses de escrita das crianças e dos seus alunos em especial;
  • Saber selecionar propostas de escrita que promovam o avanço dos alunos;
  • Criar situações coletivas de reflexão sobre como se lê e como se escreve;
  • Saber fazer intervenções mais individualizadas que ajudem os alunos a avançarem.

O que os formadores e coordenadores podem aprender?

Para acompanhar os professores nessa difícil tarefa, os formadores do Além das Letras, coordenadores pedagógicos que atuam nos municípios, devem aprender a:

  • Analisar algumas escritas com os professores;
  • Saber apoiar o planejamento das situações de leitura e de escrita;
  • Saber observar a sala e dar retornos aos professores nos momentos em que são feitas as propostas de leitura e de escrita, bem como as intervenções;
  • Apoiar a organização de rotinas de leitura e de escrita nas séries iniciais, reorganizando tempos e espaços para essa tarefa.

Neste módulo, a meta é a formação de professores e coordenadores capazes de implementar situações cotidianas de leitura e escrita e assim contribuir para mudar os índices de avaliação do município, a partir da escrita dos alunos.

(Texto elaborado pela equipe do Programa Além das Letras a partir de palestra ministrada por Cristiane Pelissari e Rosinha Monsanto, formadoras do Instituto Avisa Lá e consultoras do programa)

1O Programa Além das Letras é uma iniciativa do Instituto Avisa Lá, do Instituto Razão Social e do Grupo Gerdau, com o apoio da Avina, Unicef, Unesco, Undime, Ashoka e MBC. É composto de uma premiação e de uma rede de formadores, que conta também com a tecnologia da IBM, por meio da iniciativa Reinventando a Educação.

avisala_31_formacao2

Ficha técnica

Programa Além das Letras
Coordenadora: Beatriz Gouveia
Formadoras e Consultoras: Cristiane Pelissari e Rosinha Monsanto
Responsabilidade Técnica: Instituto Avisa Lá
Site: www.alemdasletras.org.br

Para saber mais

Livros e documentos

  • “Recepção e antecipação de um texto lido por um adulto”, Anne-Marie Chartier, Christiane Clesse & Jean Hébrard. In Ler e escrever, entrando no mundo da escrita. Ed. Artmed. Tel.: 0800 703 3444.
  • Escrever e ler: Como as crianças aprendem e como o professor pode ensiná-las a escrever e a ler, Vol. I. Lluís Maruny Curto, Ministral Maribel Morillo, Miralles Manuel Teixidó. Ed. Artes Médicas. Tel.: (11) 3221-9033.
  • Formando crianças leitoras.Vol. 1, Josette Jolibert. Ed. Artmed. Tel.: 0800 703 3444.
  • Leitura e produção de textos. Ana Maria Kaufman e Maria Elena Rodriguez. Ed. Artmed. Tel.: 0800 703 3444.
  • Ler e escrever na escola: O real, o possível e o necessário. Délia Lerner. Editora Artmed. Tel.: 0800 703 3444.
  • Os processos de leitura e escrita: Novas perspectivas. Emília Ferreiro e Margarita Gómez Palácio. Ed. Artes Médicas. Tel.: (11) 3221-9033
  • Parâmetros curriculares nacionais: Língua Portuguesa. BRASIL – Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília. MEC/SEF. 1997. Arquivos disponíveis no site: www.mec.gov.br
  • Psicogênese da língua escrita. Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, Editora Artes Médicas. Tel.: (11) 3221-9033.
  • Referencial curricular nacional para Educação Infantil, Vol. III. BRASIL – Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília. MEC/SEF. 1998. Arquivos disponíveis no site: www.mec.gov.br

Artigos da Revista Avisa lá:

  • “Comunidade de leitores: Idéias para quem quer ensinar a gostar de ler”, Luciana de Oliveira Camargo. In Revista Avisa lá no 7 – julho/2001. Tel. (11) 3032-5411.
  • “Deixe que digam, que pensem, que façam – O conhecimento prévio na formação de leitores”. Paula Stella e Regina Scarpa. In Revista Avisa lá nº12 – outubro/2002. Tel.: (11) 3032-5411.
  • “Leitura pelo professor – um projeto para conhecer e apreciar histórias”, Emelisa Monteiro. In Revista Avisa lá no 7 – julho/2001. Tel. (11) 3032-5411.
  • “Quem conhece pode escolher melhor: A importância de bons livros para crianças”, Virgínia Gastaldi. In Revista Avisa lá nº 7 – julho/2001. Tel. (11) 3032-5411.
  • “Vai e vem poesia”, Tatiana S. Pina. In Revista Avisa lá no 2 – jan/2000. Tel.: (11) 3032-5411.
Posted in Formação nos Municípios, Revista Avisa lá #31 and tagged , , , , , , , .