Casos como o que relatamos a seguir são muito comuns no Brasil: crianças que freqüentam a escola por anos a fio e não conseguem ler nem escrever. Felizmente a situação não é irreversível. Veja o que é possível fazer
Fabrício, 10 anos, aluno da quarta série de uma escola pública e do programa de ação complementar EGJ1, é uma entre tantas crianças brasileiras em séries escolares avançadas que não sabem ler nem escrever. Deparei-me com esta realidade ao iniciar o trabalho nos EGJs: Rodrigo, 14 anos, Guilherme, 12 anos, Jéssica, 9 anos, Paulo, 9 anos. Crianças espertas, solícitas, inteligentes, todos alunos assíduos de suas escolas; no entanto, algumas não conheciam as letras, outras eram apenas capazes de escrever o nome. Podia-se dizer que estavam fadadas ao insucesso e a continuar na mesma condição de pobreza em que viviam. Não porque vinham de famílias pobres, pois condição social nunca foi pré-requisito para alfabetização, mas porque não tiveram a sorte de encontrar em seu percurso de aprendizagem condições mais favoráveis ao ingresso no mundo das letras.
Incentivo à leitura
Neste contexto iniciei, juntamente com uma equipe de formadores, um trabalho de intervenção num EGJ de um bairro periférico de São Paulo. Durante um ano desenvolvemos um projeto com o objetivo maior de despertar nos educadores o prazer e o gosto pela leitura para que então pudessem propiciar às crianças melhores oportunidades para um contato íntimo e significativo com a leitura. Articulamos ações de acompanhamento dos professores em encontros de formação e supervisão mensal, e ações junto à direção do CJ na supervisão e orientação para a gestão de tempo e espaços em uma instituição educativa, para a aquisição e organização de biblioteca circulante.
Ao longo de um ano criamos um verdadeiro círculo de leitores. Crianças e educadores com livros embaixo do braço levando-os para casa, trocando, conversando sobre eles, visitando livrarias, foram algumas das cenas que assistimos durante aquele período. Cheguei a ser abordada mais de uma vez por alguns desses leitores, adulto ou criança, me pedindo ou cobrando um livro que fiquei de emprestar. O movimento da biblioteca, a circulação dos livros entre as casas e o EGJ, as conversas sobre as histórias e tantas outras cenas que passamos a presenciar já valeriam a pena pelo sentido que aquilo tudo ganhou na vida das crianças e seus educadores. Mas não bastava.
No caminho da escrita
No segundo ano da formação, resolvemos enfocar o conteúdo de escrita. Queríamos ajudar crianças como Fabrício que ainda não escreviam. Ele e muitos outros se encaixavam em algo que chamamos de crianças copistas: copiam textos da lousa ou de livros, mas não fazem idéia do que pode estar escrito. Elas vêem as letras como meros desenhos. As educadoras reconheciam e se preocupavam com seus “Fabrícios”, mas isso não bastava para tirálos da condição em que se encontravam. Elas precisavam saber como ajudá-los. O primeiro passo foi fazer com que as educadoras olhassem para os avanços das crianças e não para os seus déficits, isto é, elas deveriam ver essas crianças e suas produções com outros olhos. Isso requeria, também, uma mudança de postura, de seu papel: o educador não é meramente transmissor de conhecimento, nem tampouco aquele que apenas contempla os sucessos e insucessos de seus alunos. Estávamos à busca de um educador envolvido, responsável, sabedor de suas obrigações, organizador de situações planejadas, com intencionalidade em suas propostas, facilitador das aprendizagens de seus alunos. E isso custa tempo e investimento na formação profissional.
A partir de situações de tematização da prática dos professores, análise e discussão de atividades que eram propostas às crianças, fundamentação da concepção de alfabetização e muito estudo de textos de apoio, planejamos situações de intervenção direta e indireta com os meninos e meninas que não estavam alfabetizados, tanto os de idade avançada como os do grupo inicial, crianças de 6 a 8 anos. Em momentos de supervisão pedagógica discutia com os educadores o que se passava com cada criança ou grupos delas, analisávamos suas produções, planejávamos e discutíamos atividades.
Nos momentos de encontro coletivo de formação, nós analisávamos situações que enfrentavam no dia-a-dia, aprofundávamos as discussões com o estudo de textos que referenciavam a prática e trocávamos experiências. Planejamos situações didáticas que envolviam a escrita a partir do conhecimento de um repertório de textos memorizados, leitura e atividades de escrita contextualizadas nos projetos compartilhados nos diferentes grupos de crianças. E, por fim, planejamos agrupamentos de crianças nas diferentes propostas que cabiam a cada um nas intervenções. As crianças foram nos mostrando onde estávamos acertando e onde ainda precisaríamos investir.
Os cadernos de Fabrício
E Fabrício, como estava àquela altura, depois de tanto investimento? Lembrava-me que, na primeira vez que o vi, ele me mostrou seu caderno escolar, aquele que levava para as aulas de reforço no EGJ, a pedido de sua educadora que queria demonstrar o quanto estava indignada. Um caderno recheado de textos copiados de livros didáticos, com letra bonita, caprichada. Em uma das páginas um bilhete da professora: “Hoje não acabou a tarefa por estar desatento”. Pensei: que atenção pode ter um garoto de sua idade diante de uma tarefa tão sem sentido como copiar sem entender nada? Conversei com o garoto, me apresentei, contei o motivo de minha presença naquela instituição: ajudar sua educadora a pensar maneiras de auxiliá-lo a aprender a ler e escrever. Expliquei que isso não era tarefa fácil nem para ela nem para quem estava aprendendo.
Conversamos nós três, Fabrício, sua educadora e eu. Contamos a ele sobre as dificuldades que enfrentamos no nosso processo de alfabetização, sobre as fantasias que tínhamos, histórias tristes e engraçadas. Só então perguntei se sabia escrever. Ele respondeu que sim, que sabia escrever o que estava nos livros e o que a professora colocava na lousa. Perguntei se sabia ler o que estava escrito nos livros e na lousa. Responder essa pergunta foi difícil para ele. Aquilo parecia ter tocado sua alma. Procurei confortá-lo dizendo que outras crianças também escrevem e não sabem o que estão escrevendo, que nós o ajudaríamos e, para tal, precisávamos saber o que ele já sabia.
Assim começamos a acompanhá-lo de perto. Pedi que fizesse um “escrito” de sua cabeça, não valia copiar e me entregasse no próximo encontro, podia ser uma carta contando coisas engraçadas, ou aquilo que gostava de fazer. Quinze dias depois, quando voltei ao EGJ, Fabrício não estava, mas incumbiu o coordenador de me entregar um texto escrito com muito capricho, numa folha de papel almaço. Talvez por insegurança, talvez pelo desafio ter sido além de suas capacidades, ele não cumpriu nosso combinado: mais uma vez copiou um texto de um livro. Quando nos reencontramos, sem muitos rodeios, disse saber que aquele texto não era produção própria. Ponderei que talvez o que havíamos combinado fosse muito difícil para ele naquele momento.
Emprestei-lhe um livro, sugeri que tentasse ler, que pedisse ajuda de sua mãe ou de sua educadora, para conversarmos sobre o conteúdo num próximo encontro. Aproveitei para dizer a ele que sua educadora iria ajudá-lo a aprender a ler e a escrever e que isso necessitava de muito empenho de ambos. E assim foi: conversas com Fabrício, discussões e planejamento de atividades com a educadora, análise de suas produções, troca de correspondência. Quatro meses depois, promessa cumprida. Ele escreveu uma carta por conta própria, sem copiar. Um texto com a letra não tão caprichada, com erros ortográficos, algumas palavras não separadas, mas era a sua produção. Escreveu sobre o que gostava de fazer no EGJ, com suas idéias.
Aquele menino que nos primeiros dias vinha me mostrar seu caderno com um misto de receio e vergonha passou a correr atrás de todos nós para mostrar suas produções: não mais cópias, mas sim textos seus, registrados de próprio punho, de sua autoria. A história de Fabrício nos mostra que ainda temos muito trabalho pela frente, mas também é prova de que é possível mudar a realidade adversa dessas crianças em relação à aprendizagem. Mostra que o sonho de ir além das letras vale a pena ser vivido.
(Luciana Hubner, formadora do Instituto Avisa lá)
1Espaço Gente Jovem – Programa de ação complementar à escola da Prefeitura de São Paulo em convênio com entidades sociais
Ficha Técnica
Iniciativa: Instituto Pão de Açúcar.
Desenvolvimento: Instituto Avisa Lá e Espaço Gente Jovem Pe. Giuseppe Pegoraro
e-mail: borore@amcham.org.br
Site: www.cpsborore.hpg.ig.com.br
Tel.: (11) 5528-1823