As crianças, desde cedo, pensam a respeito de muitos assuntos, tentando explicar e dar alguma ordem às coisas que vêem no mundo. Quando elas se deparam com a escrita, por exemplo, pensam sobre suas regras, seu funcionamento, sua função. No esforço de compreender essa linguagem elas formulam hipóteses próprias.
Essa ação empreendida pelas crianças foi uma das mais reveladoras descobertas da pesquisa feita por Emília Ferreiro e colaboradoras*. Desde então foram elaborados diferentes instrumentais para mapear os conhecimentos das crianças sobre a escrita. Dentre eles, um dos mais conhecidos é a sondagem.
Como material de pesquisa para definir políticas de intervenção educacional esse instrumento cumpre seu papel. No entanto, a transposição direta dessa prática para a sala de aula, como uma atividade regular a ser proposta para as crianças tem-se mostrado pouco útil pois não dá conta de satisfazer às indagações que o professor precisa ver respondidas.
Regina Scarpa, coordenadora pedagógica, e responsável pela formação de equipes técnicas de Secretarias de Educação e de ONGs, traz contribuições aliosas para esse momento especial da alfabetização.
Revista: Muitos professores compreendem a importância de saber o que as crianças conhecem sobre a escrita, sendo comum encontrar o uso da sondagem na prática educativa. Você poderia explicar o que é?
Regina: Essa prática é feita geralmente por meio de uma lista de figuras mimeografadas ou carimbadas de frutas ou animais ou ambos, que o professor coloca em uma folha de papel, com um espaço ao lado para a criança escrever a palavra correspondente à figura. Trata-se em muitos casos de um tipo de avaliação pontual, que tem o objetivo de saber qual é a hipótese da escrita da criança. O professor aplica a sondagem, identifica o estágio em que o aluno se encontra naquele momento e depois tem dificuldades para aproveitar essa avaliação em sua prática.
Revista: Se a sondagem consegue indicar o estágio em que a criança se encontra porque ela é pode tornar-se ineficaz?
Regina: É ineficaz quando não ajuda no planejamento das atividades pedagógicas. Quando o professor guarda as informações obtidas sem saber o que fazer com elas. Ainda que mensalmente faça sondagens pode lhe faltar conhecimento para compreender o processo da criança. Identifica às vezes os avanços ou percebe que a criança estacionou”, mas não sabe quais as causas de um ou de outro. Fica somente como um registro das diferentes hipóteses das crianças. Ë como se tudo acontecesse na cabeça das crianças, independentemente da intervenção do professor. Como se a criança passasse de um nível a outro e o professor se limitasse a observar sua evolução.
Revista: Em outras palavras este uso da sondagem no cotidiano precisa ser visto com reservas…
Regina: Tudo tem seu momento. Em minha opinião em situações de pesquisa, para elaborar propostas de intervenção mais adequadas em redes de escolas as sondagens podem ser convenientes. Ë necessário no entanto considerar como um momento destacado do cotidiano que serve a propósitos muito pontuais.
Revista: Como fazer, então, para descobrir o que as crianças sabem sobre a escrita no dia a dia da sala de aula?
Regina: Analisando suas hipóteses a partir de atividades significativas, colocando a criança direto em contato com o desafio de escrever. Na escola em que sou coordenadora não consideramos suficiente apenas categorizar a criança numa etapa pré-silábica, silábica ou alfabética. Buscamos também conhecer o que ela pensa de forma mais geral sobre a escrita qual a lógica que usa naquele momento para escrever.
Esse processo das crianças é muito dinâmico, com momentos de passagem, de transição entre uma fase e outra. Para obter essas informações não criamos nenhuma atividade específica, voltada exclusivamente para isso. O que fazemos é analisar as hipóteses das crianças a partir das propostas de escrita que estão inseridas nos projetos em curso, nas atividades onde o uso real da escrita é a tônica. Quando a criança escreve com um objetivo claro, quando precisa realmente comunicar uma idéia, se empenha muito mais, escreve melhor.
Revista: E porque isto acontece?
Regina: Por duas razões. A primeira é que se a criança está trabalhando dentro de uma proposta de escrita significativa, que faz parte de um projeto, de uma seqüência de atividades, ela sabe por que e para que e o quê está escrevendo.
No caso da sondagem, não, nessa prática o quê já está dado pela figura impressa no papel e a criança não sabe bem porque está escrevendo. Ao contrário, quando percebe que o que escreve tem uma função real a criança se empenha mais. A segunda razão é que a criança não se vê em um momento artificial de testagem. Quando escreve numa situação significativa ela consegue “ler”, ou seja, consegue dizer o que é aquilo, e a comunicação se torna possível, mesmo tendo ela escrito de forma não convencional, do próprio jeito.
Numa situação explícita de testagem, ao contrário, ela se intimida, quer olhar para a produção do colega, diz que não sabe escrever, acha que a professora só aceitará a escrita convencional e desconfia que sua produção passará por uma avaliação negativa.
Revista: É possível tornar mais claro o tipo de atividade apropriada. Não devem ser usadas mais as famosas listas?
Regina: Nós continuamos propondo listas que tenham sentido, que serão realmente usadas, listas que serão socializadas com as outras crianças e servirão para contribuir para a escrita de coisas ainda mais complexas e interessantes. Se a proposta é construir uma casinha, por exemplo, cada criança deverá escrever uma lista dos materiais necessários a essa construção.
Depois a professora pedirá que cada criança “leia” o que escreveu, pois o que escreveu é tão importante quanto o que o outro escreveu, já que quanto mais idéias diferentes tiverem melhor será para compor uma lista mais completa, da sala toda. As crianças também podem escrever, listas de objetos que poderão ser trazidos de casa para organizar o “faz-de-conta”: fantasias, chapéus, bolsas, etc. A professora pede que cada criança “leia” o que escreveu, anota na lousa ou em uma folha grande os nomes dos objetos lidos ou falados oralmente. A partir daí pode também construir com as crianças uma lista coletiva que vai compor um bilhete para os pais.
Assim é possível ir conhecendo as hipóteses de escrita das crianças num percurso, sem a necessidade de confiar em produções esparsas, esporádicas e descontextualizadas que podem não refletir tudo que o aluno sabe.
Revista: As situações que você descreve parecem envolver uma idéia de avaliação diferente das tradicionais. Como é isto?
Regina: Esse tipo de atividade cria a oportunidade de olhar para a criança todos os dias, o que muda o conceito de avaliação. Ela não se resume mais a um evento marcado uma vez por mês, mas acontece o tempo todo, sempre que a criança estiver escrevendo.
Isso leva o professor a adotar uma ação reflexiva permanente, observando com atenção as dúvidas e dilemas das crianças, intervindo com questões problematizadoras, possibilitando que a criança pense e reformule sua idéias iniciais sobre a escrita. Ele assume, assim, o papel de mediador desse processo e não mais o de quem está avaliando uma aprendizagem que não tem nada a ver com suas propostas de intervenção.
Quando o professor sabe da importância de proporcionar atos de leitura e escrita e trabalha crianças para que desenvolvam estratégias para essas ações, fica claro para ele, ao acompanhar o percurso, que a evolução das crianças está diretamente vinculada ao que propôs, fez, perguntou ou às oportunidades que criou.
*O processo de aquisição da língua escrita segundo as pesquisadoras, comporta etapas de apropriação regidas por diferentes hipóteses formuladas pelas crianças na tentativa de compreender o funcionamento da língua. Os termos pré-silábico, silábico com ou sem valor sonoro, alfabético tem sido usado para definir as hipóteses. Para saber mais veja bibliografia.
…
…Alexandre estava muito preocupado,
consultou o alfabeto várias vezes, ora dizendo as letras, ora cantando o abecedário, como nas brincadeiras.
Antes de escrever galinha perguntou:
– Como é o GA? – procurando no alfabeto – qual é o I?…Perguntei a Tamara se GATO e GALINHA não poderiam começar com a mesma letra. Ela disse que sim mas não escreveu igual porque a galinha canta e o gato não. Para ela, as características gráficas da palavra são dadas pelo próprio objeto.
Sondagem feita pela professora Francisca, da Creche Esperança, em
parceria com a formadora Denise Nalini
…
Professoras de São Bernardo do Campo comparam e avaliam atividades de escrita
Durante o planejamento de 1999 decidimos propor a escrita da lista dos materiais constantes nas sacolinhas, pensando que seria uma escrita significativa para as crianças. Nesse mesmo período iniciamos também com todas as turmas, uma seqüência de atividades aproveitando a necessidade da compra do material escolar enfocando a escrita, o funcionamento comunicativo e produção de texto escrito numa situação próxima ao que acontece fora da escola.
Ao avaliarmos as duas atividades de escrita pudemos verificar que na primeira as crianças não ficaram empolgadas e nem se empenharam em suas produções e chegamos à conclusão que a proposta foi um tanto artificial, “escolarizada”, para unicamente atingirmos nosso objetivo de registro do avanço das crianças quanto à escrita.
Na segunda proposta, a produção das crianças foi muito mais espontânea, se empenharam, já que estavam muito motivadas e observamos um aprimoramento da escrita. Foi uma atividade realmente significativa onde, utilizando-nos de uma prática social (é comum as crianças acompanharem os pais ao supermercado, bazar, etc) propusemos uma escrita com objetivo real, com um propósito próximo da realidade das crianças (é comum os pais fazerem listas para as compras) – produção de texto real em contexto real.
Na proposta de compra de materiais pudemos observar:
- As crianças trouxeram conhecimentos já vivenciados em casa e isso se tornou subsídio para sua escrita: preocupação em escrever as quantidades (como as mães nas listas das compras do mercado), uso de
hífen antes de cada item; - Recorreram a lista como recurso de memória na hora da compra e na conferência dos materiais comprados. Por exemplo: a quantidade de itens não batia com a quantidade de material; “escrevi cinco itens e esqueci da escrita de um”;
- Preocuparam-se com a formatação do texto: um item embaixo do outro, hífen antes do item escrito (características próprias da escrita de uma lista).
- Preocuparam-se com a proximidade da escrita convencional para se fazer entender;
- “Leram” (pseudo leitura) na hora da compra, para o vendedor;
se preocuparam em ler antes de pedir o que queriam: giz de cera,
lápis, cola, pasta de plástico, massinha, canetinha.
(Agradecemos às professoras: Lucimara, Lucinete, Renata, Rosângela, Sônia,Beatriz, Eliana e Maria do Carmo da CEMEI do jardim Tupã, Riacho Grande e EMEI Helena Zanfelici da Silva.)
Para saber mais:
- A Psicogênese da Lingua Escrita, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, Artes Médicas, Porto Alegre, 1985.
- Com Todas as letras, Emilia Ferreiro, Cortez, São Paulo,1996.
- A Produção de Notações na Criança, Linguagens Ritmos e Melodias, Emilia Ferreiro, Cortez, São Paulo,1990.
- Aprendendo a Escrever, Perspectivas Psicológicas e Implicações Educacionais, Ana Teberosky, Ática, São Paulo,1994
- Por Trás das Letras, Telma Weisz, FDE, São Paulo, 1992 (livro e vídeo)
- O Diálogo entre o Ensino e a Aprendizagem, Telma Weisz , Ana Sanchez, Ática, São Paulo, 1999
- Vídeo: Construção da Escrita, Telma Weisz e Beatriz Cardoso, FDE, São Paulo, 1988