O som ao redor

EDNA DA SILVA COSTA, REGINA LÚCIA RODRIGUES E RENATA COGHE CARLOS¹


OS SONS OUVIDOS EM UMA ESCOLA DIZEM MUITO DAS CONCEPÇÕES DE CRIANÇA, ENSINO E APRENDIZAGEM QUE ESTÃO EM JOGO.


Com uma prática empobrecida, o brincar acontecia na Rede como uma atividade livre às sextas-feiras, quando as crianças podiam levar brinquedos para a escola.

Raramente havia brinquedos nos espaços, e quando havia, geralmente era decorrente de doações, logo disponibilizados em grandes baldes ou baús. A baixa qualidade das atividades desenvolvidas, portanto, estava relacionada à concepção
equivocada do brincar pelo brincar, apoiada na ideia de que o brincar servia apenas para ocupar o tempo restante ao final da realização de uma atividade, revelando a ausência de concepção e compreensão de significados sobre o tema.

Também não era comum a exploração das áreas externas como possibilidade pedagógica. Quando muito, algumas escolas dispunham de um parque com poucos brinquedos fixos.

O som presente nas instituições era o das vozes das educadoras solicitando que as crianças não corressem, não brigassem, não gritassem. Vozes que indicavam o que fazer, como fazer ou, ainda, o que “não se devia fazer” em nome de uma ordem estabelecida: a de que escola não é lugar de brincar; afinal de contas, muitos profissionais rendem-se a uma cobrança por parte dos pais e do Ensino Fundamental de que a Educação Infantil pressupõe uma etapa de preparação da criança para o ensino. Uma crença compartilhada que precisava ser questionada.


1 Edna é coordenadora dos Núcleos de Educação Infantil Municipais (NEIM) e Regina é Coordenadora de Pré-escola. Ambas são formadoras locais do Programa de Educação Infantil Santander do Instituto Avisa Lá (PEI/IAL), Gestão Pedagógica. Renata é Diretora de Educação Infantil da Secretaria de Educação do Município de Cubatão (SP).

A partir dessa realidade, as inquietações mobilizaram-nos: O que o professor, o adulto que está na educação, precisa saber para desconstruir esta crença? Como sensibilizar o professor para enxergar no faz de conta uma oportunidade de desenvolvimento e de aprendizagem para a criança? Como levar este conhecimento aos pais, estimulando, assim, a reflexão? Buscamos o aprofundamento por meio de estudo, leituras e investimentos em formações e atualização curricular do município com o objetivo de traçar um caminho de formação que pudesse colaborar com a transformação desse cenário.

O caminho da formação

Redimensionar a experiência profissional da Rede Municipal de Ensino para um novo olhar é bem difícil! O caminho mais eficiente para a mudança de paradigmas é a realização da formação dos profissionais da infância aliada à sua prática.

O brincar, na Educação Infantil, precisa ser intencional. Sabíamos que a intencionalidade do brincar, o planejamento das propostas, o uso do espaço físico e a seleção favoreceriam a qualidade do brincar. A formação com vistas a atingir esse objetivo teve início no segundo semestre de 2010, com reuniões entre a Diretoria de Educação Infantil e as Equipes Gestoras das Unidades de Educação Infantil do município, num total de 37 equipamentos². As temáticas ali discutidas eram multiplicadas nas escolas nos horários de formação continuada: Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) para as pré-escolas e Hora de Desenvolvimento (HD) para os Núcleos de Educação Infantil Municipal.

Já num processo mais amplo, o município investiu em formação continuada com a contratação de uma empresa que, com base em nossas características, traçou uma proposta de formação direcionada a gestores e professores, educadores e Auxiliares do Desenvolvimento Infantil (ADIs), que culminou na escrita da Proposta Curricular para a Educação do município de Guarujá (SP).

De posse de todos esses investimentos e acompanhadas pelas consultoras do Programa, os resultados passam a ser observados, registrados, questionados por meio de um processo de formação que teve data para começar, mas que não tem data para acabar. Formação pressupõe investimentos, vigilância constante; aquilo que tenho como certo hoje, amanhã ganhará novos contornos, justamente porque somamos experiência ao olhar de inquietude, de busca pela compreensão daquilo que nos alegra como daquilo que nos provoca novos questionamentos. E, assim, os espaços das Unidades de pré-escola e dos Núcleos de Educação de Infantil começam a mudar, a ganhar novas formas, cores, tipos de materiais; os profissionais iniciam a mudança em sua forma de agir, de estar, de pensar a educação das crianças.


2 Cada Equipe Gestora é composta de, no mínimo, duas profissionais: Diretora e Orientadora de Ensino, podendo contar com mais uma Orientadora a depender do número de turmas desta Unidade de Ensino.

Espaços para brincar

Os espaços passam a ser ocupados por brinquedos, por materiais estruturados e não estruturados. As áreas externas e os espaços comuns ganharam novas possibilidades pedagógicas, tornando-os convidativos e mais significativos: um excelente convite para reduzir o tempo de permanência nas salas de aula.

Nas creches, os berços dão espaço aos espelhos, móbiles, livros, brinquedos, bem como aos Cestos dos Tesouros, que libertam os bebês em busca de autonomia e descobertas.

O ambiente tranquilo, a liberdade de movimentos e a autonomia para brincar livremente, descobrir, sentir, estranhar, gostar, abandonar, retornar, trocar colaboram para o desenvolvimento físico, motor e cognitivo da criança.

A liberação dos bebês em ambientes sem berços foi implantada com base no processo formativo com as equipes gestoras, apoiado em pesquisas e estudos teóricos da Abordagem Emy Pikler. Os ambientes foram reorganizados e planejados para favorecer a liberdade de movimento das crianças por meio da oferta de oportunidades de experiências de exploração e deslocamento. Nesses ambientes, os bebês têm à disposição brinquedos e materiais que incentivam, estimulam as descobertas e aprendizagens. O planejamento prevê propostas que incentivem o deslocamento dos bebês usando recursos disponíveis; assim, em suas variadas formas de ação, interagem com o ambiente, objetos, outras crianças e adultos.
Essa predisposição das crianças e sua curiosidade perante o mundo são fundamentais para a construção de conhecimento, ampliação de percepção, oportunidade de interações, resultando na construção de afetos e de sentimentos significativos. Foi possível observar a evolução das crianças em vários aspectos, por meio da interação e de experiências para ampliar as habilidades como andar, pular, sair, subir, descer e, principalmente, identificar que os bebês são seres que já têm desejos e sabem fazer escolhas.

Nessa configuração, o adulto ocupa o lugar daquele que se antecipa, prepara, observa, incentiva a criança pequena; sua voz dá lugar ao seu olhar, que comunica o apoio, o incentivo, a atenção! Ordens ou solicitações de espera passam a ser menos pronunciadas.

Cesto dos Tesouros

É uma abordagem que favorece a aprendizagem dos bebês. Foi desenvolvida por Elinor Goldschmiied (2006) e colocada em prática na Inglaterra, Escócia, Itália e Espanha. O Brincar Heurístico, definido como um sistema de educação sob o qual o bebe é levado a descobrir coisas por si mesmo, princípio dessa abordagem, oferece às crianças objetos do lar, tecidos, elementos da natureza, objetos sonoros, organizados em um cesto, tornando-se brinquedos não convencionais e oferecidos às crianças por um determinado tempo para que brinquem, explorem livremente texturas, temperatura, consistência, densidade, peso, entre outros aspectos atribuídos aos objetos selecionados, e, assim, aprendem pela exploração e descoberta, e sem a intervenção direta de adultos, cujo papel é de observador atento, que permanece em silêncio, enquanto acompanha e registra as ações da criança. O adulto também planeja e executa a seleção de materiais para favorecer a riqueza da exploração, já que os cestos devem ser compostos de uma gama de objetos desafiadores e que possibilitem experiências significativas. Os objetos devem ser atualizados constantemente. O Ministério da Educação, por meio da Coleção “Brinquedos e Brincadeiras” (2012), valoriza a experiência e propõe itens para o Brincar Heurístico.
Nota: Heuristica tem origem grega, assim como a palavra Eureca, que significa encontrar ou descobrir.

Cenas que começam a aparecer na pré-escola

Na UE “João de Oliveira”, localizada em Morrinhos (distante 5 km do centro da cidade), a equipe gestora, mobilizada pela formação, incentivou professores e funcionários de apoio para a criação de novos espaços para o faz de conta. O grupo identificou espaços ociosos e ocupou-os com brinquedos, mobiliário e objetos que convidassem as crianças a brincar.

Num desses espaços, o Canto do Consultório Médico, composto de uma mesa e duas cadeiras, ladeadas por dois móveis de plástico com quatro prateleiras cada. Nas prateleiras, caixas vazias de medicamentos, dois kits de instrumentos médicos: estetoscópio, seringas de brinquedo e de verdade, tesoura de plástico, termômetro, caixas de remédio em miniatura, maleta do médico, uma caneta e um bloco de notas feito de aparas de papel grampeadas, presenciamos a seguinte cena:

Um pequeno grupo com três meninos do Inf. V (5 anos) se reúne no consultório. Um senta-se e encontra o bloco de anotações e a caneta, e logo começa a escrever.

O segundo experimenta o kit do médico: coloca o estetoscópio no ouvido e tenta ascultar o coração, pega uma seringa que é rapidamente retirada de sua mão pelo terceiro menino, que inicia uma exploração com outro estetoscópio e com a seringa, tentando descobrir o funcionamento de cada item.

Inicia-se um diálogo:
– Eu trabalho no médico.
– Eu também!
– Não, você tava doente.

Uma menina, no espaço entre a casinha e o consultório, com a ajuda de outra, arruma uma boneca dentro do carrinho, colocando roupinhas a mais junto da boneca e, então, dirige-se ao grupo de meninos no espaço do consultório médico.

Enquanto médico e paciente seguem nos exames, a menina, já acomodada numa cadeirinha no consultório, ajeita a boneca no carrinho; depois a retira, coloca-a no colo e tira sua roupinha. Tudo isso sem ser inserida no enredo pelos demais meninos, mas, mesmo assim, sentindo-se parte da cena. A menina continua cuidando da boneca. Ao retomar o seu assento, o médico empurra a boneca, recuperando o espaço que a menina havia ocupado para poder vestir a boneca.

Instantes depois, a professora vê a menina que estava no consultório empurrando o carrinho em direção ao espaço da casinha:

– Foi passear com sua filha?
– Eu levei minha filha no médico, mas ele disse que ela não tinha nada…. eu não sei, não… mas acho que ela não tá boa.
– E agora? O que você vai fazer?
– Vou amanhã de novo. Eu vou dar um banho e por pra dormir até amanhã. Fazer o quê, né?

Já o pequeno Ravy (2 anos, NEIM “Mauro Aprígio”) pegou um brinquedo e, fingindo ser um telefone, ligou para a mãe:
– Onde você está?
– Vai vir me buscar?
– Tá fazendo o quê?

Esse é o som que ouvimos em nossas escolas: o som das vozes das crianças! Nas construções das narrativas, a criança é autora. Naquele momento, o que ela sabe, o que ainda não sabe, o que sente e o que observa é posto em jogo sem temor algum, sem preconceito, justamente porque é autora e tem domínio de seu enredo: “Isso me pertence”.

Professora Patricia, responsável por esse grupo de crianças, relata um episódio em que ela observou os diálogos das crianças durante um dia em que a brincadeira foi no parque. Nessa breve conversa é possível perceber que as discussões disparadas pela formação sobre o brincar ganham significado, a ponto de a professora arriscar uma interpretação sobre os gestos das crianças:

– Não é nada por acaso… eles imitam o que veem em casa e o que a gente ensina. No parque, outro dia, uma aluninha na porta da casinha falou: “Para entrar tem que limpar o pé… acabei de varrer a casa”. E outra, no espaço das flores, disse: “As plantinhas são vivas, a tia ensinou, a gente não pode pisar ou arrancar… elas morrem”.

E ela prossegue:
– Depois que a Roseli e a Célia (Diretora e Orientadora de Ensino) mexeram no parque, uma das meninas disse: “Nossa… é o parque dos sonhos!”.

Mas para chegar até aqui, um caminho foi percorrido: o caminho da formação, o caminho do investimento em espaços e materiais, o caminho da inspiração na voz das crianças que nos dizem que as mudanças são necessárias e urgentes.

Esse caminho foi possível com investimentos em formação continuada iniciada no município em 2010 e que, em 2015, somou-se à participação do Programa de Educação Infantil Santander, realizado pelo Instituto Avisa Lá.

Nas palavras da Diretora Giselda, do NEIM “Celso Raimundo Jerônimo”, observa-se o impacto da formação continuada e seus desdobramentos:

Com a formação, houve mudança no planejamento; porém, ainda há necessidade de rever a prática, para levar em consideração as observações nas produções e interações das crianças através dos seus desejos e sentimentos. Este é o caminho mais produtivo e mais assertivo para realizar a reflexão sobre a prática e, a partir daí, sistematizar o conhecimento e torná-lo uma evidência no cotidiano da Educação Infantil.

Registros

No NEIM “Mauro Aprígio de Brito”, nossa unidade Proinfância, a partir dessa formação, o faz de conta passou a ser valorizado em suas possibilidades e potência e, dessa forma, começou a fazer parte da rotina da Instituição como um momento pleno de interações valiosas, cujos espaços, tempo e oferta de materiais são repensados em reuniões semanais de formação continuada (Hora de Desenvolvimento). As educadoras passaram a registrar as ações, as falas e os avanços das crianças no “Diário de Observação”, um instrumento de registro da prática, podendo ser qualquer suporte, como um caderno, uma pasta ou um fichário, em que falas das crianças, observações e inquietações da educadora são registradas,
para que possam ser retomadas num segundo momento. No instante do brincar, os adultos observam o comportamento das crianças para que intervenções, de forma direta ou indireta, possam ser feitas.

Esse registro é compartilhado e discutido para que, cada vez mais, se possa ampliar o repertório das educadoras que, de posse de um conhecimento instrumentalizado pela prática e pela reflexão, transforma-se em ações bem planejadas para as crianças.

O brincar faz parte do cotidiano das crianças e, assim, elas aprendem sobre o mundo e sobre si mesmas.

Ao planejarem a rotina, as educadoras, professoras e/ou ADIs sempre buscam atividades que envolvam brincadeiras, pois acreditam que, para as crianças, essa é a melhor e mais prazerosa forma de aprender, de interagir e de crescer.

O momento do brincar é seguido dos registros feitos por meio de anotações, relatórios, fotos e vídeos. Entendemos que o registro, além de um recurso de memória da Instituição, pode ser também um instrumento de formação, por conter aspectos reveladores do percurso das crianças para a solução de problemas e/ou criação dos enredos, bem como do percurso dos adultos quanto à organização do espaço, do tempo, a seleção de materiais, o levantamento de interesse das crianças.

Do “brincar pelo brincar” para o brincar planejado, observado, registrado e como tema de um Projeto Institucional.

Achados

Outro investimento importante foi a elaboração do Projeto Institucional (PI). Trata-se de um instrumento que resulta do diagnóstico realizado sobre o brincar no início do processo de formação, que aponta os investimentos necessários, partindo da discussão da concepção sobre o brincar-faz de conta, considerando a potência e as fragilidades que a instituição possui. Nele são definidos objetivos e conteúdos da formação para todos os atores envolvidos – equipe gestora, professores, educadores, ADIs, equipe de apoio, pais e crianças –, além da definição de metas e indicadores de avaliação de suas propostas.

Para que o investimento no PI fosse potencializado, a parceria entre a Equipe Gestora e funcionários na organização dos espaços e oferta de materiais foi muito importante. Desde então, todo e qualquer espaço ocupado pelo adulto e/ou desocupado, assim como o gramado e o solário, tornaram-se grandes aliados do faz de conta. O aproveitamento dos espaços externos revelou a oferta do contato com a natureza com mais frequência. Tecidos, cabanas, potes de tamanhos variados, utensílios de cozinha, bonecas, conchinhas, areia colorida e pedrinhas são exemplos de materiais que costumamos utilizar para enriquecer a brincadeira das crianças.

Hoje, nos Núcleos de Educação Infantil e nas Pré-escolas, o som da infância se faz presente e as crianças conquistam diariamente o seu espaço de protagonistas. Crianças felizes, autônomas, criativas, curiosas, que têm muito a nos dizer!

Educadores, professores de olhares e ouvidos atentos têm muito a construir para o caminho de uma educação que se quer mais qualificada e orientada para o desejo e potência das crianças!

Posted in Revista Avisa lá #69.