Favorecendo a interação com a natureza

ANDRÉIA ARAUJO LIMA¹


SÓ COM UMA BOA PROPOSTA DE FORMAÇÃO FOI POSSÍVEL CRIAR ESPAÇOS PARA QUE AS CRIANÇAS INTERAGISSEM COM ELEMENTOS DA NATUREZA E PASSASSEM A USAR OS ESPAÇOS EXTERNOS COM LIBERDADE


Assim que entrei no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), em fevereiro de 2014, busquei, em conversa com a
diretora e no portfólio da pedagoga² anterior, conhecer um pouco mais sobre o que já havia acontecido na Unidade referente à formação continuada. Logo identificamos a necessidade de aprofundar um pouco mais nossos conhecimentos sobre o brincar, especialmente nos momentos de integração³, e, ao mesmo tempo, qualificar os planejamentos na área de relações naturais4, já que no ano anterior havia sido apenas iniciado um processo formativo nesta área com algumas professoras.


1 Especialista em gestão do trabalho pedagógico e pedagoga do Centro Municipal de Educação Infantil Porto Belo (CMEI), Curitiba (PR).
2 Em Curitiba (PR), as coordenadoras pedagógicas são chamadas de pedagogas.
3 A Integração é um projeto institucional voltado ao brincar e às interações, que acontece três vezes por semana na Unidade, no período da manhã ou da tarde, no qual as crianças ocupam todos os espaços do CMEI, interno e externo, e reúnem-se com outras crianças, de diferentes faixas etárias, para brincar juntas.
4 O município de Curitiba trabalha, atualmente, com áreas de formação humana, entre elas as Relações Naturais, entendendo-se que “O contato com a natureza é de fundamental importância para as crianças, e compreender as relações sociais que se estabelecem nesse contexto favorece a elas a construção de noções de reciprocidade sobre suas ações e consequências no meio” (CURITIBA, 2012, p. 36).

Focamo-nos em duas grandes metas: a primeira, institucional, encontrar nos tempos e espaços da Unidade territórios5 para brincar, incluindo nas propostas a interação com elementos da natureza; e a segunda, específica para o berçário II, escrever e desenvolver uma atividade permanente para brincar com os elementos da natureza.

A escolha por desenvolver uma proposta específica para o berçário II surgiu de outra necessidade: olhar com mais cuidado para o planejamento e desenvolvimento das propostas com os bebês. Além disso, pretendia “produzir” um bom modelo de planejamento de atividade permanente para usar nas formações com as demais equipes.

Caminho de pesquisa e reflexão

Definidos os objetivos, parti então para a busca de materiais que me ajudassem a conhecer um pouco mais da área de relações naturais e de que maneira poderia sugerir articulações com as brincadeiras. Para este processo, foi muito importante minha participação nos Encontros de Formação6, em que eram dadas orientações e sugestões de materiais para leitura, consultas e pesquisas.

O referencial utilizado para definir a primeira versão do diagnóstico foi o currículo para Educação Infantil da cidade de São Paulo (SP), do qual destaquei as páginas 96 a 1057, que tratam das experiências de exploração da natureza e da cultura. A partir dele elegi algumas perguntas que me ajudaram a fazer um diagnóstico sobre os (não)saberes das professoras do berçário II. Utilizei essas perguntas durante a escrita do plano anual da turma, quando percebi a nossa dificuldade em pensar propostas para o trabalho com a natureza e os bebês.

1. Como as crianças são incentivadas a explorar alimentos, objetos, cheiros, sabores?
2. Como as crianças são incentivadas a ampliar experiências visuais, olfativas, auditivas e gustativas?
3. Como as crianças são incentivadas a reconhecer seu nome e seu grupo?
4. São observadas as preferências dos bebês?
5. Estas preferências são utilizadas para elaboração de novas propostas, reorganização dos espaços?
6. Como estão organizados os espaços segundo as preferências dos bebês?

Contudo, a definição de um diagnóstico tinha como objetivo a elaboração do Plano de Formação; portanto, não poderia considerar apenas a equipe do berçário, já que o plano deveria abranger todos os profissionais. Diante disso, recorremos ao texto Crianças da natureza, de Léa Tiriba, para a elaboração do diagnóstico da instituição. Com este material fiz a transposição das ideias do texto ao contexto da Unidade e chegamos a uma segunda versão do diagnóstico.


5 Os territórios para brincar, no CMEI Porto Belo, foram vistos como novos espaços na Unidade, preferencialmente na área externa, que não eram explorados pelas crianças, mas que apresentavam grande potencial de possibilidades para brincar.
6 Realizados pela Secretaria Municipal de Educação de Curitiba (PR) e pelo Instituto Avisa Lá (SP), cuja formadora era a professora Maria Virgínia Gastaldi.
7 Disponível em: http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/15111.pdf.

Ensinar as crianças a cuidar da terra

Observo com frequência materiais jogados pelo entorno do CMEI e que não são juntados por ninguém. A equipe da limpeza rastela areia e brinquedos juntos. As pessoas passam como se aquele plástico processado fizesse parte da natureza. As crianças utilizam muitos copos de plástico.

Dizer não ao consumismo e ao desperdício

Ainda impera o plástico como matéria-prima principal para os objetos que utilizamos com as crianças. Ao pensar num canto de atividade diversificada já imaginamos o brinquedo que queremos comprar. Compramos mais do que o necessário porque poucas vezes consideramos a possibilidade de consertar brinquedos e livros.

Desemparedar as crianças

Nos dias quentes que tivemos no início deste ano, não houve nenhuma atividade envolvendo elementos como água, areia, terra, barro…

O quadro mostra apenas um pequeno recorte do diagnóstico que ficou bastante grande e, por isso, precisei reorganizar as ideias, fazendo escolhas e elegendo prioridades. Então defini eixos para o trabalho com a natureza: consumismo, materialidades, tempo de experiência e o planejamento permeando todos os eixos.

Em seguida, para compartilhar o diagnóstico com toda a equipe do CMEI, pensei em boas perguntas para provocá-las a pensar sobre as possibilidades de aprimoramento do nosso trabalho, como mostra um trecho do diagnóstico a seguir.

Diagnóstico

O plástico é a matéria prima principal dos objetos que oferecemos para as crianças.

Problematização

Que outras materialidades podemos oferecer para as crianças além do plástico? Que propostas podemos desenvolver para que as crianças explorem outros tipos de materiais? Que intervenções podemos fazer nos espaços do CMEI e nos cantos de atividades diversificadas para que apareçam outras materialidades?

Primeiras ações realizadas ou em andamento

Adquirir brinquedos em madeira e tecido. Incluir objetos nos cantos de atividades diversificadas de madeira, tecido, alumínio, papel, papelão, barro.

Outras possibilidades

Desenvolver propostas para que as crianças tenham contato com areia, terra, pedras, folhas, argila, barro, água… Pesquisar com crianças e familiares as brincadeiras fora do CMEI, as profissões e passatempos dos pais e familiares que possam vir a ser um canto na sala.

Estas perguntas acompanharam os momentos de permanência durante todo o ano, sempre que parávamos para pensar sobre o planejamento de uma proposta envolvendo natureza, e nos demais encaminhamentos do CMEI.

Assim, finalmente chegamos à terceira e última versão do diagnóstico, e pudemos então definir objetivos, metas de mudança, estratégias formativas e indicadores de avaliação para o plano de formação:

PLANO DE FORMAÇÃO

Interagir com a natureza por meio das brincadeiras
Objetivo geral: encontrar nos tempos e espaços da Unidade territórios para brincar, incluindo nos espaços e nas propostas elementos da natureza.

ECOLOGIA AMBIENTAL (relações de cada um com a natureza); ECOLOGIA SOCIAL (relação de cada um com o outro) X MATERIALIDADES

Diagnóstico: o plástico é a matéria-prima principal dos objetos que oferecemos para as crianças.

Objetivos de aprendizagem: reconhecer em outros tipos de materiais possibilidades de experiências diversificadas pelas crianças.

Metas: incluir nas situações de brincadeiras e em propostas dirigidas, objetos de diversos materiais, além do plástico.

Planejar situações em que as crianças tenham contato com diversas materialidades.
Disponibilizar materiais de largo alcance de origem natural.
Fazer intervenções nos espaços interno e externo, com elementos naturais.

Cronograma:


8 Guia elaborado pelo Instituto Avisa Lá no início do Programa Kidsmart no Brasil, disponível no site www.avisala.org.br.

Este é apenas um recorte do plano de formação construído a muitas mãos. Até chegar aqui, necessitei de inúmeras idas e vindas aos encontros de formação e com a equipe de pedagogas do Núcleo Regional de Educação da CIC9, que me acompanharam durante todo o processo de construção do diagnóstico e do plano de formação, ajudando-me a identificar os conteúdos formativos prioritários para a Unidade. Depois disso, compartilhei com a equipe de professoras do CMEI a proposta de formação, e ao recolher seus depoimentos, pois foram convidadas a se colocar sobre as reflexões e ideias que apresentamos, tive certeza de que estávamos no caminho certo para desemparedar os pequenos e reconectá-los com a natureza. Esses depoimentos foram fundamentais para o direcionamento das minhas ações como pedagoga, pois, dessa forma, pude articular os desejos das profissionais aos desejos e às necessidades das crianças.

Depoimentos das professoras

Percebemos também que os espaços externos são ricos de possibilidades na ampliação de conhecimentos que as crianças têm sobre si e sobre o meio, e que a sala de referência não é o único lugar de aprendizagem. As intervenções realizadas nos espaços da Unidade têm contribuído significativamente para o desenvolvimento de novas propostas com as crianças. (Professoras Ana Lucia Soares de Andrade Bittencourt e Celina Aparecida Wieczorek da Silva)

O nosso CMEI tem um espaço que possibilita essa autonomia para a escolha de parceiros e espaços para brincar, possui diversos espaços pouco explorados em nossos planejamentos e que são muito ricos em elementos naturais. Mas para que isso mude temos que quebrar algumas barreiras e trabalhar em equipe (…) percebemos que existe uma resistência por parte dos adultos com relação ao “se sujar”, o que facilmente acontece quando brincamos em contato com a natureza. As intervenções realizadas nos espaços do CMEI possibilitaram a interação e o planejamento de atividades que promovem o contato com a natureza, o que contribuiu muito para o planejamento de diversas propostas que antes não eram possíveis.
(Professoras Adriana Proceke Melo Ortega Vieira e Hellen de Souza Ramos)


9 O Município de Curitiba descentraliza alguns serviços da prefeitura para as Ruas da Cidadania, onde fica, entre outros serviços, o Núcleo Regional de Educação (NRE). Lá, grupos de pedagogos e demais profissionais atuam no sentido de dar suporte e apoio necessários ao desenvolvimento do trabalho realizado nas unidades educacionais. O NRE-CIC fica na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), onde se localiza o CMEI Porto Belo.

Depoimento das professoras após um ano de formação

Em tempos de pouca natureza e muita tecnologia, nossa formação nos fez refletir sobre nossa infância de pés na terra, roupa suja e muito aprendizado, aprendizado esse que queríamos proporcionar aos nossos pequenos. A temática do “desemparedar” nos fez pensar mais a respeito das atividades que envolvem a natureza e de que forma podíamos fazer esses momentos se tornarem permanentes e naturais para as crianças. (Professora Larissa Maísa Marfil Aguiar)

A formação fez com que perdêssemos alguns medos, como a utilização do barranco, que antes não utilizávamos com medo de as crianças se machucarem. E as crianças adoraram quando começaram a brincar no barranco, o que provocou questionamentos nas crianças que hoje estão no Ensino Fundamental, mas que tiveram parte de sua infância vivida no CMEI: ”Por que quando eu estava aí não podia brincar no barranco? (Professora Ariane Rodrigues De Souza)

O que vemos hoje é que as famílias prendem seus filhos em casa e dão pouca importância a essa relação com o que é vivo. E é exatamente nesse ponto que nos deparamos. No início, as crianças tinham medo até mesmo de pisar na grama descalças, medo de bichos e dos pequenos insetos, mas nós insistimos e a natureza se encarregou de acolher nossos pequenos olhares curiosos, que aos poucos foram enxergando um mundo que vai além das paredes das salas de referência. Passaram a sentir o vento no rosto, observar pequenos insetos, usar gravetos, pedras, pinhas, cascalhos entre outros materiais para a criação de suas próprias brincadeiras. (Professora Hellen de Souza Ramos)

Descobertas no Espaço Externo

Nathália, durante o desenvolvimento de uma proposta da atividade permanente, “brincadeiras e explorações na natureza”, descobriu muito mais do que apenas a terra. Ao chegar ao gramado sentiu as diferenças topográficas do chão sobre o qual caminhava. De repente, de calçada plana passou a subir o morro, o que exigiu dela reestabelecer o equilíbrio do seu corpo, quase caindo para traz. Abrir os braços foi a maneira de, como num malabarismo, permanecer em pé. Diante da dificuldade, não se intimidou, agachou-se e, como já tinha domínio do engatinhar, passou a subir e descer pelo barranco engatinhando.

Ao chegar à caixa de terra encontrou elementos como pinhas, pedras e gravetos, cuidadosamente organizados pelas professoras, deixando o ambiente convidativo para a exploração e para o brincar. Como sabia que naquele espaço podia brincar, logo pegou a pinha e descobriu que ela espetava os dedos. Mas não chorou. Tomou cuidado para não apertá-la novamente, segurando-a na ponta dos dedos. Mas sentir com as mãos não foi sufi ciente e, por isso, experimentou com a boca também. Olhou, observou, experimentou e se cansou. Foi para o graveto, com o qual cutucava e riscava a terra. A marca deixada pelo graveto chamava-lhe atenção e, por isso, repetiu várias vezes o movimento, parecendo estar sempre com um olhar interrogativo, como se estivesse se perguntando “como isso aconteceu?”. Por ali brincou algum tempo, descobrindo texturas, gostos, marcas, dor, equilíbrio…

Direito ao barranco

Hoje temos um trabalho consolidado na Unidade. Se antes as crianças não tinham acesso aos espaços verdes e permaneciam por muito tempo dentro das salas de referência, agora observamos inúmeras brincadeiras que ora são criadas e organizadas pelas professoras, ora inventadas pelas próprias crianças, dando prioridade para o espaço externo. O barranco, por exemplo, era um espaço inabitado pelos pequenos. Fazia parte do único espaço verde que temos na Unidade e que hoje, ocupado pelas crianças, permite a movimentação do corpo, a criação de brincadeiras e a invenção de histórias a partir delas.

As crianças da turma do pré I deste ano (2016), que têm tido muitas experiências de brincadeiras nesse espaço desde 2015, em discussões sobre lendas com as professoras da equipe de permanência, criaram a lenda do CMEI Porto Belo, na qual o barranco é protagonista.


A lenda do CMEI Porto Belo
Diz a lenda que quem escorrega no barranco com papelão fica mais inteligente porque, embaixo dele, vive um reino de formigas muito espertas.
Autores: crianças do Pré I/2016


Sujar o corpo e as roupas, bem como dar banho em todas as crianças após alguma atividade com terra, barro ou areia, organizar espaços com elementos naturais que convidam a brincar e aprender, incluir nos planejamentos o contato, a brincadeira e a investigação dos elementos que compõem a natureza não nos incomoda mais, não nos faz perder tempo, ao contrário, nos faz ganhar e aproveitar um tempo precioso com as crianças, pois vemos nessas brincadeiras, nesse contato estreito e direto com o ar livre, barro, água, argila, areia, flores, folhas, gravetos, pedras, misturas etc. a alegria, a satisfação e as descobertas realizadas pelas crianças nos diferentes espaços, com os diferentes materiais que oferecemos.

Posted in Revista Avisa lá #69.