Jogo simbólico na África do Sul

Sandra Eckschmidt¹


A inserção em uma cultura com uma língua diferente da nossa faz da observação silenciosa um instrumento importante para confirmar que a brincadeira é fundamental em qualquer cultura e que o papel do educador é promover condições que favoreçam esse ambiente brincante.


Minha experiência de África foi um pedacinho de um pedacinho desse continente. Trabalhei durante seis meses, de janeiro a julho de 2015, na Zenzeleni School for Creative Education, ou simplesmente Escola Zenzeleni, como todos a chamam².

Durante toda a minha participação na Escola Zenzeleni, mantive um diário. Embora um novo universo tão diferente apresentasse muitos aspectos relevantes, eu tinha um foco principal: o registro do brincar livre das crianças no contexto escolar. O fato de a prática da Escola Zenzeleni se inspirar na Pedagogia Waldorf favoreceu muito minhas observações, porque sua proposta pedagógica defende e oferece o espaço do brincar livre e espontâneo dentro da escola.


1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina,é coordenadora da Escola de Educação Infantil Casa Amarela e da Formação em Pedagogia Waldorf de Florianópolis; consultora do Projeto Território do Brincar; autora dos livros A arte de lembrar e esquecer: narrativas autobiográficas de professores sobre sua infância e Ndihilile: eu estou viva!; e coautora do livro Bola e boneca. Foi professora convidada do Centre for Creative Education (CFCE) da Cidade do Cabo, na África do Sul (2015).
2 O contato com a Escola Zenzeleni foi realizado por meio do CFCE (http://www.cfce.org.za/cfce/), uma instituição de formação de professores e artistas inspirada na Pedagogia Waldorf. Localizada no bairro de Khayelitsha, periferia da elegante Cidade do Cabo, a escola nasceu durante o regime separatista do apartheid, como assentamento de negros expulsos da região mais central da cidade. Atualmente, acolhe migrantes de todo o continente, que buscam na África do Sul melhores condições de trabalho. . A escola é em grande parte subsidiada pelo governo, mas também recebe financiamento de empresas, além de contar com a contribuição de uma pequena taxa mensal de cada família.

Para a Pedagogia Waldorf, a criança tem uma forma de se relacionar no mundo a cada fase de seu crescimento. No caso da primeira infância, essa relação acontece predominantemente por meio do movimento, da sensorialidade e da imaginação. Dessa maneira, a expressão mais plena da criança acontece quando ela brinca de forma livre. O papel do educador é promover condições que favoreçam esse ambiente brincante. Um ambiente composto por brinquedos pouco estruturados, como materiais da natureza, troncos, sementes, conchas, mas também caixotes, tábuas, tecidos, entre outros, com os quais
a criança precisa usar a imaginação para o brincar acontecer; em espaços onde a natureza propicie múltiplas possibilidades sensoriais; com tempo para que o brincar não ser submetido a uma rotina fragmentada; com várias opções de convivência social, oferecidas por meio de mistura de idades.

Minha proposta de observação do brincar livre como expressão da criança foi possível na Escola Zenzeleni porque os educadores ali não reduzem o potencial brincante da criança ao aprendizado de conteúdos escolares, uma prática tão frequente nos contextos escolares, que torna o brincar uma ferramenta pedagógica do professor, em vez de considerá-lo uma expressão da criança.

19 de janeiro de 2015
Construção de um caminho de observação

Primeiro dia…

Cheguei à escola em cima da hora. Embora tivesse feito o trajeto no domingo, hoje, segunda-feira, tudo parecia muito diferente.

Entrei na sala correndo e a professora estava sentada com vários papéis sobre a mesa, enquanto os pais esperavam em fila com seus filhos. Embora aos meus olhos tudo parecesse tumultuado e desorganizado, ninguém parecia incomodado, porque as pessoas conversavam e riam durante toda a espera. Aliás, esta é uma das tantas qualidades da cultura Xhosa: o bom humor acima de tudo!

A professora estava sozinha para dar conta daquela demanda toda. Ao sentar ao seu lado, ofereci ajuda e, sem tempo para explicar nada, ela me deu várias fichas escritas em inglês e preenchidas em isiXhosa – pelo menos ficou claro que eram fichas de matrícula. A professora recebia a família e me falava o nome da criança, para que eu confirmasse nas fichas se ela estava matriculada.

Eu olhava os nomes nas fichas e escutava o som do nome da criança, mas não conseguia identificar o nome falado, nem pronunciar o nome escrito. Para ser bem sincera, eu não conseguia nem saber com que letra o nome começava. Observava atentamente como a professora falava, para tentar identificar algum som reconhecível, mas era muito difícil. Assim, em um exercício de adivinhação e contando com muita paciência da professora, fui tentando encontrar os nomes. Quando finalmente demos conta de toda a fila de pais, eu já estava exausta – era apenas a primeira hora do meu trabalho novo.

E foi assim que fui apresentada à língua isiXhosa, falada na escola e na comunidade em que eu estava inserida, uma das línguas oficiais da África do Sul. Eu sabia que a escola trabalhava com crianças da cultura Xhosa, e que elas usavam sua língua materna, mas também haviam me dito que na escola falariam inglês. Mas não foi bem assim que aconteceu. Todos falavam isiXhosa e, às vezes, a professora falava inglês, para introduzir esta língua no cotidiano.

Voltei de meu primeiro dia de aula me perguntando como faria para estar em um lugar em que não conseguia entender a língua que falam…

África do Sul: a questão dos idiomas tem uma história muito mais profunda. Depois das primeiras eleições pós-apartheid, no mandato do presidente Nelson Mandela – ou, como é carinhosamente chamado por aqui, Madiba –, foi elaborada a Constituição atual da África do Sul, que marca o fim do apartheid e o início da democracia, politicamente falando. Nesse documento, definiram-se onze línguas oficiais. São elas: africâner, inglês, isiNdebele, seSotho asleboa (Sotho do Norte), Sesotho (Sotho do Sul), siSwati, Xitsonga, Setswana, Tshivenda, isiXhosa e isiZulu. Muito mais do que querer complicar a vida de visitantes desavisados na África do Sul, essa lei vem suprir um direito básico do ser humano, que é reconhecer-se parte de uma comunidade e expressar-se em sua língua materna.

Em cada região do país, a concentração de idiomas é diferente. Por exemplo, eu nunca ouvi muitas das línguas oficiais, porque morei e trabalhei em locais onde as pessoas falavam isiXhosa, africâner e inglês. De qualquer modo, o inglês é a forma de comunicação entre estrangeiros e locais. Independentemente da língua que se fala em determinada comunidade, o inglês é sempre uma possibilidade para troca de informações.

Mas como funciona no cotidiano viver em um país com tantas línguas? Você para no posto de gasolina, a pessoa que te atende fala uma frase em inglês e logo se vira para o amigo falando na própria língua. Meus vizinhos falavam inglês comigo e, quando seus filhos chegavam, desatavam a falar em outra língua. Na reunião de professores, a pauta era falada em inglês, mas a cada dois minutos estavam todos falando isiXhosa, e então, ao olharem para mim, voltavam a falar inglês. O fenômeno da diversidade linguística não é uma vivência só para os estrangeiros. Quando circulam entre os diferentes bairros, as pessoas não entendem o que é falado, porque nenhum sul-africano fala as onze línguas oficiais.

Esse aspecto é realmente impactante para quem procura conhecer um pouco mais da essência da África do Sul. E foi esse ponto que fez minha pesquisa sobre o brincar na escola tomar outro rumo.

A dificuldade de acompanhar as narrativas das brincadeiras das crianças fez com que o silêncio fosse se fazendo presente. Tal silêncio não se referia apenas a falar menos. Sim, comecei a falar menos, mas era mais do que isso: era a construção de uma postura mais silenciosa ante os fatos externos. Precisei de tempo para sair do papel de falar, de perguntar, de querer
entender, de opinar!

Foi então que uma leitura antiga voltou a fazer muito sentido, em que o filósofo espanhol Larrosa (2002) diferencia “estar informado” de “saber da experiência”. Era a esse caminho que eu queria e precisava me entregar – ao saber da experiência – e deixar as informações de lado.

“A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência”³.

Assim, a cada dia que se passava, fui ficando mais e mais silenciosa. Quanto mais silenciosa eu ficava, mais atentos meus olhos, ouvidos, tato, olfato ficavam a tudo o que acontecia. Não havia um gesto que passasse despercebido por mim. Dos mais singelos e delicados aos mais fortes e brutos.


3 LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 21, jan./abr. 2002.

26 de fevereiro de 2015
Rabos de cavalo…

Todos os dias eu prendo o cabelo para trabalhar, mas com o passar da manhã meu rabo de cavalo vai se desmanchando e se soltando do elástico. Nesse momento, sempre aparece uma criança que passa a mão sobre minha face e arruma os fios soltos, voltando a prendê-los no elástico. Ao finalizar a arrumação, a criança segura meu queixo, dando uma última olhada de aprovação. E quando nossos olhos se encontram, a criança abre um sorrisão. É lógico que eu não aguento tanta fofura e lhe dou um abraço bem forte e um monte de beijos!!!

Esse gesto tão delicado me acompanhou durante todo o tempo em que estive com as crianças. Embora eu gostasse tanto dele, achava-o bem diferente. Só aos poucos fui entendendo o grande cuidado que essa cultura tem com o cabelo – nenhum fiozinho fica fora do lugar com aquelas incríveis tranças.

Os pequenos gestos das mãos, do olhar, da postura, que às vezes ficam encobertos por movimentos maiores – como pular, correr, dançar –, mostravam-se com mais intensidade aos meus olhos. Mas eu já não perguntava, procurando explicações imediatas; apenas os percebia.

Silenciar minha vontade de perguntar e compreender tudo ao meu redor fazia os gestos crescerem à minha frente. Eles tomavam uma relevância maior do que as palavras. Porém, observar os gestos ainda não me trazia a com preensão da brincadeira. Existe todo um aspecto cultural dos gestos, que eu ainda desconhecia. A forma de mostrar o que agrada, de colocar limites, agradecer, comer, até os tipos de brincadeira – enfim, tantas coisas!

14 de abril de 2015
Um, dois, três!

Ao preparar os pratos para dividir as frutas do lanche, percebi que ainda faltavam três, que, em minha linguagem de gestos, pedi à menina que estava mais próxima de mim. Quando mostrei três dedos levantados, ela me olhou de
forma estranha. Então, fui mostrando um, dois, três. Ela sorriu, confirmando que havia me compreendido, e “arrumou” meus dedos, mostrando em minha mão como era o gesto correto para ela. Algo tão básico, mostrar quantidades com os dedos, mas que aqui é diferente!

As semanas foram se seguindo e, de repente, comecei a me dar conta desse caminho de observação dos gestos, ao qual minha falta de comunicação verbal me conduziu. Todos os gestos eram importantes e eu os acompanhava durante dias, até que, devagarzinho, uma narrativa foi se construindo.

A possibilidade de tirar fotos também me ajudou a observar os gestos de cada criança nas brincadeiras. Por isso, às vezes durante uma semana inteira, a escrita do meu diário tratou da descrição gestual de uma mesma brincadeira. Depois desse período fazendo o exercício, eu descobria o enredo da história que estava sendo brincada. Esse processo de observação durou em torno de uma semana para cada brincadeira. Em seguida, eu descrevia para a professora o enredo que lia na narrativa gestual. Ela confirmava e se alegrava com todos os detalhes percebidos, que para ela, por estarem em um lugar tão comum, já não eram mais vistos. As observações me levaram a perguntas mais essenciais. Com essa abertura silenciosa, a criança e seus gestos se mostravam à minha frente.


4 NATIONAL WALDORF TEACHERS CONFERENCE 2015 – The art of balance: working in the unfolding of human potential (A arte do equilíbrio: trabalhar no desdobramento do potencial humano).

Observação e referencias culturais

Percebi que, quando estava no Brasil, por conhecer tão bem os hábitos culturais e recorrer à minha própria memória de infância, muitas vezes eu me contava a brincadeira antes de a criança apresentá-la. Aconteceu algo muito similar aqui na África do Sul. Em abril, fui convidada a dar um workshop de três dias sobre o brincar da criança para professoras de Escolas Waldorf da África do Sul4. No último dia, resolvi apresentar minha experiência de observação na Escola Zenzeleni. Levei muitas imagens das crianças brincando e pedi a elas que descrevessem, da forma mais objetiva possível, o que estavam observando. Eu anotei três frases, mas infelizmente não consegui anotar os nomes das professoras:

“Elas estão brincando de casinha, como eu brincava de casinha.”

“[…] Está com bebê amarrado nas costas, passando roupa, balançando e cantando para o bebê dormir.”

“Sim, sim… devem estar cantando Tula Tula!”

Foi muito interessante, pois muito do que elas relatavam não era possível descrever apenas olhando para a imagem. Porém, como elas fazem parte do contexto cultural das crianças, podem ir além e imaginar a situação, colocando em jogo suas experiências de vida.

O que quero frisar é que existe uma antecipação do adulto em sua observação, e isso pode se tornar um hábito. Pensamos estar atentos, observando, mas estamos antecipando a ação e, assim, deixando de ver. Isso acontece em todos os âmbitos da nossa vida, mas, em especial para o educador, pode se tornar um empecilho. A criança merece de nós, educadores, o olhar aberto para a expressão de sua individualidade!

A diferença está em ouvir as crianças e acolhê-las em seus pontos de vista – algo aparentemente despojado, quase ingênuo; chamo isso a um tipo de atitude de “agachamento”, de modo a ir para perto do chão, onde a criança habita5. Olhar aberto, “agachamento”, não importa o nome que daremos, mas a intenção é a mesma: convidar todos ao exercício de olhar a criança “a partir dela mesma” e não a partir de teorias sobre ela.

O caminho de observação dos gestos das crianças foi um grande exercício dessa postura aberta. Eu esperava a manifestação dos enredos das brincadeiras, para depois me debruçar sobre seus significados. Muito do que estou relatando aqui, tentando ser fiel apenas à minha experiência, tem grande influência dos exercícios de observação fenomenológica de Goethe6 e das leituras de obras sobre a pesquisa do filósofo e fenomenólogo francês Merleau-Ponty7· Respeitando a grandiosidade e especificidade de cada teoria, tanto uma como a outra convidam o observador a um primeiro passo: descrever a experiência tal como ela é, sem partir de teorias.

Essas influências são importantes na construção do caminho de observação que venho trilhando e exercitando há tempos em minha vida de educadora. E em um ambiente tão diferente do que eu conhecia, ajudaram-me a ousar e experimentar mais alguns passos.

Após exercitar por tantos meses essa forma de observação mais silenciosa, como a estou chamando aqui, pude perceber gestos que se repetiam; outros que se transformavam; outros, ainda, que eram completamente diferentes. Esse material foi me possibilitando estabelecer relações, fazer perguntas e tecer reflexões.

O melhor momento para exercitar a observação de um educador é o brincar livre da criança, quando ela se expressa em sua inteireza. O espaço do brincar livre dentro da escola, como um espaço de pesquisa para o educador, precisa ser conquistado em nossas escolas.


5Em Merleau-Ponty e a Educação, de Marina Machado. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Pag. 12.
6Método Cognitivo de Goethe, de Rudolf Steiner. São Paulo: Antroposófica, 2004.
7Merleau-Ponty & a Educação, de Marina M. Machado. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
Posted in Revista Avisa lá #66.