Instalações sonoras: entre a descoberta e o encantamento

Vera Lunardi Guilherme Romanelli¹


A educação infantil é um lugar de aprendizagens aberto à inovação, já que oferece oportunidades criativas na condução de propostas educacionais e seus tempos e espaços podem ser mais flexíveis. isso também vale para propostas envolvendo a aprendizagem musical.


A necessidade de compreender como um som é produzido provoca as crianças desde a mais tenra idade. Delalande² postula que todas as crianças têm um fascínio pelas fontes sonoras. Na mesma direção, Bittencourt & Lino³ criaram a ideia de “barulhar” para falar dessa relação que os pequenos estabelecem com o som. Para a aprendizagem musical, a curiosidade sobre os sons permite entender o princípio acústico das fontes sonoras, o que inclui os instrumentos musicais. Ou seja, a criança constrói suas ideias para responder à pergunta:

“Como o som é feito?”.

Diversos educadores musicais4 defendem a exploração do objeto sonoro enquanto uma instância privilegiada da Educação Musical. Também defendem a autonomia da criança nas descobertas do fenômeno sonoro como relevante para o desenvolvimento musical, uma vez que a música é “Arte de coordenar fenômenos acústicos para produzir efeitos estéticos”5.

Esse encantamento pelos diversos sons produzidos por diferentes materiais originou esta proposta da experiência aqui relatada: as instalações sonoras.

As inquietações sobre a forma como as crianças se apropriam dos modos de produzir sons surgiram ao longo do projeto “Músico da família ao vivo: um contexto de Educação Musical”, que ocorre desde 2011 em diversas unidades de Educação Infantil da Rede Municipal de Educação de Curitiba6. Nesse projeto, músicos da comunidade que têm parentesco com as crianças da unidade educacional são convidados a mostrar seus instrumentos musicais na sala de referência7.


1Vera é Secretaria Municipal de Educação de Curitiba – Departamento de Educação Infantil e Guilherme é docente Universidade Federal do Paraná – Departamento de Teoria e Prática de Ensino – Setor de Educação. 2La musique est un jeu d’enfant, de François Delalande. Paris: Buchet/Chastel, 1984. 3Proibido não tocar: uma instalação sonora na escola de educação infantil, de Ariane Bittencourt e Dulcimarta lino. In: SIMPÓSIO LUSO-BRASILEIRO EM ESTUDOS DA CRIANÇA, 2., 2014, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: UFRGS, 2014.

Dentre as várias ações do projeto, está a exploração de objetos sonoros relacionados ao princípio acústico do instrumento. Por exemplo, no caso de receber a visita de um trombonista, pai de uma das crianças, todos tentarão soprar dentro de pedaços de cano de PVC ou gargalos de garrafa PET para experimentar o “buzz8” que caracteriza a forma de produzir som nos instrumentos aerófonos da família dos metais.

Tais experiências do princípio acústico de instrumentos musicais, assim como o contato com a música ao vivo, ampliam os saberes musicais das crianças e também dos professores9.


4 Entre eles: Murray Schafer; Jonh Paynter; Gertrud Meyer-Denkmann, apresentados em Pedagogias em educação musical, de Teresa Mateiro e Beatriz Ilari (Org.). Curitiba: Ibpex, 2011. 5ENCICLOPÉDIA Barsa. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1994. p. 219.
5 ENCICLOPÉDIA Barsa. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1994. p. 219.
6 Caderno de orientações para implementação do projeto “Músico da família ao vivo: um contexto de Educação Musical”, Vera Lima e Guilherme Romanelli. Curitiba: IARTEM, Conferência Regional, Caderno de resumos. 2012.
7 O termo “sala de referência” diz respeito ao ambiente com o qual a criança se identifica referencialmente dentre os diversos espaços da Educação Infantil. Sua adoção supera o sentido de “sala de aula” (inadequado para as particularidades da Educação Infantil) e consta nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (MEC, 2010).
8 O “buzz”, também chamado “abelhinha”, é a onomatopeia que nomeia a forma de produzir sons em determinados instrumentos musicais aerófonos (trompete, berrante, trombone, vuvuzela e tuba, entre outros). Trata-se de comprimir os lábios e soprar, ação que já é muito conhecida pelos bebês quando fazem suas primeiras experiências vocais.
9 A interação entre crianças e delas com adultos, por meio da manipulação de materiais, alinha-se às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação. Brasília: SEB/MEC, 2009.

Construindo instalações sonoras

As instalações sonoras como proposta de manipulação do som são uma maneira lúdica, brincante e interativa que se abre para descobertas e aprendizagens musicais variadas, descortinando a infância na mais pura essência da sedução pelo encantamento sonoro. A criança protagoniza a cena a seu modo e a seu tempo, que é bem diferente do tempo do adulto.

Para esse processo, é importante considerar duas instâncias de autonomia: o professor e as crianças. No caso do professor, a autonomia se manifesta por sua autoria profissional, pela liberdade de pesquisa e escolha dos materiais sonoros e pela disposição destes no espaço escolhido. Para validar a experiência da criança, é imprescindível observar e garantir a qualidade do som de cada objeto utilizado, compondo um mosaico de diversidade tímbrica. Dessa forma, o som é o principal elemento a ser pesquisado na escolha dos materiais, priorizando a qualidade sonora, ou seja, os materiais devem soar!

Para as crianças, a autonomia se traduz no protagonismo infantil, ou seja, na liberdade de conduzir suas experiências e descobertas sonoras. Isso não significa uma ação improvisada, já que é papel do adulto planejar a condição didática da proposta, escolhendo espaços e materiais e organizando os tempos. Uma das formas de garantir a autonomia das crianças e ao mesmo tempo privilegiar a aprendizagem é manter o olhar atento nas relações das crianças com a instalação sonora.

Há duas principais instalações sonoras que podem ser criadas no espaço da Educação Infantil: a fixa e a móvel. No caso da fixa, deve-se escolher um espaço da unidade educacional que possa ser ressignificado pela instalação. O ideal é um local que seja pouco explorado pelas crianças, permitindo que elas descubram novas formas de se apropriar daquele espaço. A priori, a instalação fixa fica fora das salas de referência, sendo importante atentar para alguns detalhes, como a exposição às intempéries.

A instalação móvel, por sua vez, é construída por meio de estruturas leves sobre as quais são pendurados e/ou parafusados diversos objetos sonoros. A vantagem desse tipo de instalação é sua versatilidade, uma vez que pode ser deslocado para os mais variados espaços da Educação Infantil.

Olhar técnico sobre espaço e materiais

Para escolher um local adequado para as instalações sonoras, é interessante circular pela unidade fotografando os espaços a partir de ângulos variados e elaborando pequenos esboços (croquis), sempre imaginando a disposição dos objetos e sua manipulação pelas crianças.

A seleção dos espaços deve ser conduzida por um olhar sensível aos modos como a criança faz suas descobertas, levando em conta detalhes como o tamanho, a movimentação e as formas de exploração das crianças. Assim, devem-se levar em consideração a altura dos objetos em relação ao chão, a ergonomia das crianças e, por fim, a segurança do conjunto. É importante salientar que, nesse momento, é muito relevante ouvir as ideias das crianças, tornando-as coautoras de um projeto de Instalação Sonora.

Com a definição de um local (ou diversos deles), a pesquisa sobre materiais sonoros é o próximo passo. Para que sejam parte da instalação sonora, é preciso avaliar a possibilidade das experiências acústicas de cada um deles, contemplando, de preferência, cada uma das grandes categorias de instrumentos musicais: cordófonos, aerófonos, membranófonos e Idiófonos10. Outro aspecto interessante na escolha dos objetos da instalação é incluir materiais diferentes, artificiais e naturais (metais, madeiras, sementes, cerâmicas, plásticos, pedaços de bambu etc.), formas variadas (placas, tubos, cordas, gradeados etc.), emissões sonoras distintas (uns mais fortes, outros mais fracos) e manipulações diversas (percutidos, raspados, soprados e sacudidos).


10 Classificados por Hornbostel & Sachs em 1914 de acordo com seu principio acústico: corda vibrante (violão, berimbau, violino e piano), membrana ou pele que vibra (tambores), condução forçada de ar dentro de um objeto (flauta, acordeom, gaita de boca e apito) ou o próprio corpo do instrumento vibra e caracteriza o princípio acústico (triângulo, xilofone, pratos e clavas). Fonte: Atlas de Música, de Michels Ulrich. Madrid: Alianza, 1996. 2 v.

Destaca-se que a ênfase principal deve recair na possibilidade de produzir algum tipo de som com os diversos objetos da instalação. Nesse ponto, é importante garantir que os materiais possam vibrar da melhor forma possível. Como exemplo, não se deve parafusar demais uma placa de metal, mas deixá-la solta para que possa vibrar quando percutida. O mesmo ocorre com objetos pendurados, que devem ter espaço para se movimentar e vibrar quando percutidos ou raspados.

Exploração e descobertas

A partir da escolha dos espaços e da seleção de materiais, os profissionais partem para a construção das instalações. Se possível, de acordo com a idade das crianças, é muito importante incluí-las como protagonistas dessa construção.

Outra forma muito rica de integração é envolver as famílias nesse projeto. Em diversas experiências que realizamos, a construção de instalações sonoras mobilizou intensamente as famílias, que prontamente se colocaram disponíveis e participantes nas criações de objetos sonoros e integraram a própria instalação. O depoimento a seguir ilustra esse envolvimento:

“Construímos juntos os atabaques para a instalação sonora da casa de batuques. Experimentei diversos materiais para a confecção dos instrumentos, como câmara de pneu e lona de caminhão, mas o som não foi o esperado; quando pesquisei junto com as professoras do CMEI sobre qual material seria melhor, a ideia da fita adesiva larga me surpreendeu, pois a qualidade do som acústico ficou igual ao som original do instrumento. Fazer os instrumentos para as crianças brincarem me trouxe grande alegria e satisfação, pois pude explorar junto com meus filhos e percebi a emoção e o encantamento deles”.

Amazonas de Quadros Lima Junior, pai de Emanuelle/Turma do Pré e Arthur/Turma do MII, do CMEI Tia Eva.

Uma vez prontas, as instalações se tornam palco de descobertas sonoras que passam a ser musicalmente significativas, já que cada som é intencionalmente realizado pela criança, seguindo suas intenções. Ao explorá-las, as crianças livremente escolhem seus pares, seus espaços e materiais e, brincando, constroem suas narrativas sonoras11. Com certa familiaridade com os materiais, tocam sons fortes, fracos, rápidos, lentos e, pela e na repetição, criam estruturas melódicas e rítmicas, ao brincarem com a materialidade dos instrumentos e objetos.

Relato de observação da visita a uma unidade de Educação Infantil

Dia 18 de agosto de 2015

“Assim que as crianças do Maternal III chegaram diante da instalação, o Murilo começou a percutir o tambor maior sem parar (cuja pele foi feita com saco de ração de cachorro). Durante sua experiência, colocou a mão dentro do tambor enquanto tocava, provavelmente sentindo a vibração da pele e interferindo em sua tensão. Logo, a Natália também se posicionou ao lado do Murilo e começou a percutir cada um dos quatro outros tambores de tamanhos diferentes. Após sete minutos, Murilo continuou a percutir, desta vez explorando três tambores diferentes, indo de um som mais grave
ao mais agudo (diâmetro maior ao menor). Mais alguns minutos, sem conversarem entre si, as duas crianças trocaram de tambores, criando variações rítmicas que incluíam a combinação de batidas, alturas e timbres diferentes. O jogo rítmico logo passou a um jogo de perguntas e respostas, caracterizando um diálogo musical. Essa experiência toda durou cerca de vinte minutos, durante os quais os pequenos percussionistas estavam completamente envolvidos com a experiência.”


11HOYELOS CABANELLAScitado em “Proibido não tocar: uma instalação sonora na escola de educação infantil”, de Ariane Bittencourt e Dulcimarta Lino. II SIMPÓSIO LUSO-BRASILEIRO EM ESTUDOS DA CRIANÇA. Porto Alegre: UFRGS, 2014
12A música que soa na escola: estudo etnográfico nas séries iniciais do ensino fundamental, de Guilherme Romanelli. Curitiba: UFPR, Tese (Doutorado em Educação), 2009.

Na instalação, a experiência da descoberta de diferentes sonoridades dá o tom para explorações e produções individuais e coletivas de sons, enquanto o professor, como mediador, interage com as crianças se preciso for. Este deve, durante esse processo, agir ativamente como observador e como “disponibilizador” do acesso à instalação, permitindo que as crianças produzam sons não ao acaso, mas com intencionalidade.

Nas experiências, destacam-se diversas configurações na exploração da instalação sonora. Algumas crianças interagem individualmente com os materiais em situações que, por vezes, são um longo e cuidadoso processo de descoberta. Em outros momentos, essa exploração ocorre na interação com os pares, sejam eles outras crianças ou mesmo adultos (professores ou pais). Neste último caso, é comum verificar a ocorrência de “diálogos musicais” utilizando-se de sons variados12. Essas experiências se dão em contextos diferentes e, por isso, resultam em percursos diversos. O que deve ser comum a todas as propostas são os registros minuciosos das práticas de exploração e produção sonora. Esses registros fazem parte do olhar cuidadoso dos professores e devem ser densos e incluir fotografias, filmagens e textos, a fim de promover reflexões sobre toda a experiência.

Finalmente…

Entendemos que essas instalações são contextos de aprendizagem musical das crianças por meio da experimentação sonora e da interação musical com outros em ações que respeitam sua autonomia de descobertas. Destacamos também que os professores da Educação Infantil sugerem propostas criativas no planejamento e construção das instalações sonoras, na otimização dos espaços e na descoberta de muitas formas de fazer som.

Se compositores consagrados dedicaram muito esforço para produzir suas instalações sonoras, como é o caso de Murray Schafer (ver box) em suas “esculturas sonoras”, podemos concluir que tais experiências superam uma noção reducionista de passatempo e proporcionam dimensões de ampla aprendizagem.

Raymond Murray Schafer

Nascido em 1933 no Canadá, Murray Schafer é um compositor que começou a se aproximar da Educação Musical a partir de suas inquietações sobre a relação que estabelecemos com o mundo sonoro à nossa volta. Sempre inquieto por novas formas de se relacionar com a música, passou um tempo na Alemanha, onde teve contato com novas estéticas musicais. O conceito de paisagem sonora é uma de suas contribuições mais difundidas e fornece referências importantes para desenvolver uma escuta mais atenta e engajada. Schafer veio ao Brasil diversas vezes e suas principais obras traduzidas para o português são O ouvido pensante (São Paulo: Unesp, 1991) e A afinação do mundo (São Paulo: Unesp, 2001).

O ouvido pensante

O livro é uma coletânea de diversos artigos de Schafer e contém exemplos práticos de atividades que realizou com jovens alunos de Música, por meio de provocações que induzem à reflexão sobre os sons do mundo em que vivemos. O autor detalha os fundamentos de seu conceito de paisagem sonora promovendo inquietações a partir de experiências que chama “limpeza de ouvidos”, exercícios de sensibilização da escuta.

Fonte: SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991. p. 346.
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