O que aprendemos com os índios

LUCÍLIA HELENA FRANZINI¹


A VALORIZAÇÃO DA CULTURA ARTÍSTICA INDÍGENA, A EXPERIMENTAÇÃO E A EXPLORAÇÃO DE MATERIAIS NATURAIS ENSEJAM UMA RELAÇÃO RESPEITOSA COM A DIVERSIDADE E O MEIO AMBIENTE.


O desejo da equipe de professores² foi aprofundar a relação com a natureza e observar a diversidade cultural, modo pelo qual nos aproximamos, todos os anos, da arte e de mais conhecimentos indígenas de alguns povos do Brasil. O encontro com o mundo, pela arte, estimula a qualidade do sentimento e a capacidade de conectar experiências distantes entre si, no tempo e no espaço; dessa união, produzem-se novos pensamentos.

A proposta da escola integra o brincar e a arte e é muito valorizada na comunidade, que participa e contribui nos processos de aprendizagem. O resgate de eventos, festas e manifestações com raiz na cultura do Brasil, bem como a diversidade e a multiplicidade, constroem ambiente rico e favorável para a integração e a boa relação entre famílias e escola. A variação é uma das qualidades da vida e é com respeito que tratamos os temas ligados às diferenças.

Ter como princípio curricular a seleção de poéticas com valor estético e ético é o que nos leva à arte indígena. Na pesquisa sobre diferentes povos, as múltiplas possibilidades expressivas indígenas, nas diversas linguagens artísticas, são admiráveis e surpreendentes; tanto em lendas, músicas e danças, quanto em pinturas corporais, grafismos, cerâmicas, máscaras, jogos e outras manifestações dessa cultura – que é nossa também.


1 Diretora e coordenadora pedagógica da Escola Grão de Chão. Trabalha com formação de professores em Arte.
2 Foram autores dessa experiência, os professores: João Aly Cecílio e Julia de Andrade Henrique dos Santos.

Além disso, o contato dos índios com os rios, a terra, as florestas e os animais; o modo como preparam alimentos; constroem ocas e armas; praticam os jogos; constituem as relações familiares são também elementos trazidos para a escola ajudando a criar um ambiente imaginativo para as crianças. Isso as faz pensar também sobre si mesmas, como vivem, como se alimentam, como crescem, como realizam atividades, entre outras reflexões. Há, portanto, forte influência dessa cultura no desenvolvimento e na aprendizagem da criança.

Buscando maior proximidade

No Brasil, é comemorado o dia do índio em abril e, embora a escola não trabalhe com datas comemorativas, aproveitamos a agenda cultural da cidade de São Paulo para aprofundar a temática. São inúmeros os eventos e exposições que marcam a chegada dos índios de várias partes do Brasil à nossa cidade. A ida à Toca da Raposa, na zona rural, próximo à capital, é uma das vivências mais marcantes para as crianças da escola. Lá, elas participam de um emocionante encontro com índios Kuikuru, população do Alto Xingu, que se instalam por meses no sítio. A proposta é passar o dia com eles e preparar comida, cantar, dançar e jogar. Como num ritual de passagem, é preciso ter 5 ou 6 anos para participar da experiência e, por isso, na escola, há grande expectativa das crianças pequenas de crescer e ir também.

No contexto geral do País, há, em geral, aproximações equivocadas e/ou de aligeiradas da cultura indígena com a educação, por isso a importância dessa experiência, que acontece todos os anos. Durante dois meses, debruçamo-nos sobre a cultura desse povo tendo um foco além da arte, também na integração com a natureza. Apesar de reconhecermos que as relações sociais e políticas são geradoras de muitos conflitos em aldeias e reservas indígenas, passamos à margem dessa problemática, por considerarmos não ser conteúdo da Educação Infantil. O reconhecimento e a identificação das crianças com as situações vistas ou vividas por elas enriquecem o significado das experiências e, disso, pode nascer um novo censo de cidadania e de participação responsável e prazerosa da realidade.

Passo a passo do projeto

No projeto em questão participaram crianças entre 1 e 6 anos, ora em agrupamentos menores, com faixas etárias aproximadas (ex.: G1 e G2, G3 e G4, G5 e G6), ora em grupos maiores, com faixas etárias distintas, na concepção de interidades. O projeto envolveu todas as crianças da escola, 80 que estudavam no período da manhã e 70 que estudavam à tarde, além de 12 professores, 13 auxiliares de professores, três coordenadoras, que são também diretoras, e 11 funcionários operacionais.

A duração foi de dois meses, com oficinas diárias, em que foram desenvolvidas quatro linguagens artísticas e os jogos. Dada a extensão do projeto, que gerou várias vivências, produções, imagens e registros, optei por fazer um recorte e relatar a experiência do grupo de crianças de 5 e 6 anos, do período da manhã, sobretudo na interlocução das artes visuais com as linguagens corporais³.

Na Educação Infantil, o âmbito de interlocução com a arte é basicamente procedimental. A teoria apoia-se na experiência e, portanto, o fazer tem muita importância e gera conhecimento. Com essa ideia, os professores de nossa escola iniciaram seus trabalhos com a cultura indígena, com oficinas integradas de artes visuais, teatro, dança, música e jogos.


3 João Aly Cecílio, pedagogo e músico de formação, e Julia de Andrade Henrique dos Santos, artista-docente, planejaram, organizaram e estruturaram as ofi cinas. Tiveram o apoio de: Carolina de Souza, professora e psicóloga de formação, e Pedro José Pinto Braga, auxiliar de professor e estudante de Psicologia. Houve ainda a participação de Maria Cecília Franzini, coordenadora de música e de linguagens corporais, socióloga de formação. Eu, Lucília Helena Franzini, também participei da ação como coordenadora de artes visuais, arte-educadora e pedagoga de formação.

Desenvolvimento da experiência:
Fase 1: Levantamento do conhecimento prévio

A imaginação inspira profundamente as crianças e é fonte importante para os primeiros desenhos. Nessa fase, a proposta de desenho foi que as crianças desenhassem o que quisessem tendo os índios como temática. Além da imaginação, algumas crianças desenharam inspiradas em suas recordações de índios que conheceram em viagens pelo Brasil, junto aos pais, ou por meio das vivências de que participaram, na escola, em anos anteriores.

Fase 2: Aproximação com a cultura indígena

A proposta de desenho foi enriquecida com a inserção de livros que apresentavam o grafismo e outros aspectos da cultura indígena. Quase todo o material apresentado foi dos índios Kalapala, do Alto Xingu. Os alunos foram convidados a pensar em formas de grafar a partir do uso da simetria e da geometrização, com diferentes instrumentos e suportes. No trabalho de ateliê, livros com boas imagens foram deixados num canto da sala, à disposição das crianças que quisessem procurar referências para os desenhos. O acesso aos livros foi livre; enquanto algumas crianças os desconsideraram, outras se encantaram com as figuras encontradas. As oficinas de artes visuais tiveram também momentos coletivos de apreciação de imagens com o uso de retroprojetor. Ora a apreciação aconteceu antes, ora depois da
produção das crianças, e isso dependeu do objetivo do professor em relação a esse aspecto.

Vivências corporais

As propostas corporais incluíram brincadeiras e jogos indígenas; pesquisa e criação de movimentos e pegadas de animais. Promovemos vários exercícios de sensibilização com elementos naturais no contato com o corpo. Nessa fase, percebemos que várias crianças desenharam motivadas pela participação nas vivências e de outras oportunidades, tais como o conhecimento de danças, lendas e músicas indígenas. A concomitância das oficinas de Arte, quando tratam da mesma temática, colabora com o aprendizado das crianças. Isso nos faz refletir que desenhar é também relacionar os elementos plásticos e simbólicos às experiências corporais, musicais ou literárias.

Museu do índio: uma contribuição dos pais

Nas primeiras semanas da experiência, os pais foram convocados a trazer objetos indígenas que tinham em casa para a montagem de um museu. Os objetos trazidos mostraram para nós, professores, o quanto as famílias de nossa comunidade apreciam a arte indígena. Todos os anos organizamos o que chamamos de museu, feito com os inúmeros objetos que chegam: artefatos de rituais, armas, brinquedos; adereços como colares, cocares, brincos, vestimentas, máscaras; instrumentos, fotos, livros, pinturas, esculturas, cestarias, redes, apetrechos de cozinha e outros. A montagem do museu é feita por professores, coordenadoras e crianças maiores. É inestimável a contribuição desse museu para todas as oficinas de arte, sobretudo a de artes visuais, durante o desenvolvimento da experiência. O museu tem caráter interativo, e as crianças exercitam com ele formas de se relacionar com objetos cuidadosa e respeitosamente. Ao final da experiência, os pais são convidados a visitar o museu com os filhos.

Fase 3: Aproximação com a natureza

As crianças foram a um parque próximo à escola para coleta de materiais naturais e sensibilização no contato com a natureza. Lá apreciaram as árvores e foram motivadas a sentir a natureza. Recolheram restos, como: galhos, folhas, sementes, pedras, flores e outros, e levaram para o ateliê. Mais uma vez os pais foram convocados a nos ajudar na coleta desses elementos da natureza. Juntos, abastecemos nosso ateliê para o desenvolvimento da experiência.

Fase 4: Confecção de tintas

A proposta dessa fase foi extrair o pigmento vermelho do urucum e fazer tinta com o uso de vários tipos de aglutinantes: colas, água e óleos. O urucum é muito usado pelos índios para pintura corporal e de objetos, e podemos encontrar a semente com muita facilidade, mesmo na região de São Paulo. Investigar a extração criou a necessidade de as crianças intuírem, imaginarem e encontrarem soluções diferentes para os diferentes materiais. Instigar a criança a compreender o que ainda não alcançou cria possibilidades construtivas e expressivas. As primeiras experiências não deram certo; mesmo assim as crianças descobriram um jeito eficiente: passaram as sementes na peneira em vez de usar o pilão, como fazem com o carvão. Feita a tinta, nossos pesquisadores tiveram os rostos pintados pelos professores e, depois, criaram as próprias pinturas corporais. A tinta também foi usada para pinturas em diversos tipos de suporte.

Fase 5: Modelagem e construção

Proposta 1: modelagem livre em argila e planificação de uma casa de pau a pique, com argila e palitos.
Proposta 2: construção de uma parede de pau a pique.
Para construir a moradia (oca), o índio brasileiro usa a trama de taquaras e troncos de árvore e a cobertura de folhas de palmeiras e palha. Esse formato é antigo nas habitações brasileiras, sobretudo entre os que vivem em regiões rurais. Além da trama, leva massa de barro misturado com detritos naturais: folhas, pedras, sementes, galhos e palha. As crianças fizeram uma maquete com argila e palitos de uma casa de pau a pique. Depois, no quintal da escola, serraram bambus e paus, tramaram com barbantes e amassaram o barro. Prepararam a massa para preencher os espaços da trama e construíram uma parede mui to sólida. Viraram construtores e ficaram mui to alegres com o resultado dessa fase do projeto. As crianças pequenas participaram, em vários momentos, e com prazer compartilharam a experiência.

Fase 6: Encontro das crianças com os índios

Kuikurus, população do Alto Xingu, no sítio da Toca da Raposa. Esses índios migram todos os anos para as proximidades de São Paulo, e vivem durante dois meses nesse sítio onde recebem visitantes, sobretudo estudantes. Lá, dançam, cantam, fazem comida, contam histórias e vendem objetos que produzem. Alguns não falam o português e, nesse tempo de convívio, procuram manter a estrutura da família, com várias mulheres e crianças no grupo. Essa é a parte da experiência mais esperada pelas crianças e é com muito entusiasmo que a vivenciam, especialmente por representar o fechamento de tudo que aprenderam e vivenciaram durante o projeto de cultura indígena.

Fase 7: Exposição de arte

Proposta: construção de instalação coletiva: floresta, com canoas e um rio. A exposição de arte, evento anual da escola, promove o compartilhamento dos processos vividos pelos alunos e suas produções, em conjunto: crianças, equipe da escola, pais e convidados. Os grupos criaram a instalação, a floresta, para apreciar e brincar. Abrigamos nas paredes da instalação alguns desenhos e pinturas feitas nas oficinas de arte. Houve também espaço para fotos, que mostravam os processos nas linguagens artísticas: artes visuais, música e corporais. Durante a experiência, cada grupo escolheu uma árvore da escola para cuidar e pesquisar. Ao final, presentearam-nas com produções e, delicadamente, decoraram-nas para a exposição.

Adentrar a cultura indígena não é experiência fácil para educadores sensíveis aos problemas dos índios. O receio de ratificar estereótipos é muito presente em nossas discussões e, a cada ano, novas formas de abordagens são organizadas e pensadas para evitar isso. Ficamos atentos às descobertas e aos estudos das comunidades indígenas do Brasil, bem como sobre notícias e novos materiais artísticos que podem aprofundar as reflexões e contribuir com nosso acervo.

Há mais de dez anos debruçamo-nos nessa temática, e a aproximação com a natureza está, a cada ano, mais contemplada nos planos e nas ações dos professores. É desejo de todos da equipe o consumo consciente e ético dos bens naturais, bem como a contemplação e o respeito à natureza. É sempre muito motivador trabalhar com essa perspectiva na Educação Infantil, já que crianças pequenas parecem ter sentimentos mais facilmente conectados com o meio e o universo. Por isso, a experiência é permanente em nossa escola. Os inúmeros registros e planos de aulas são cuidadosamente guardados e tornam-se fontes preciosas para a pesquisa dos profissionais que atuam na escola. Essas fontes são suportes para ações, ora repetidas, ora adaptadas ou mesmo inovada.

No papel de coordenadora posso perceber fortes traços autorais dos professores, aspecto bem valorizado na escola. Neste texto, deixei de lado as experiências musicais, as brincadeiras simbólicas e a culinária, não por serem menos significativas, mas para estabelecer um foco no relato dessa rica vivência.

Posted in Revista Avisa lá #61.