Criando e Recriando o Recreio

LINDA DERVICHE BLAJ E SILVIA VINOCUR KOCINAS¹


MUDANÇAS NO RECREIO: A OFERTA DE DIFERENTES OPÇÕES DE ESCOLHA TEVE A ADESÃO DE CRIANÇAS E PROFESSORES


O recreio pode ser um momento de intensa aprendizagem, mas, com frequência, também parece ser campo de conflitos, disputas e falta de envolvimento das crianças em interações significativas. Por isso, ele precisa ser avaliado e repensado.

Atualmente, as crianças demostram muito interesse por equipamentos eletrônicos. Estes, às vezes, parecem ser as únicas opções de entretenimento. Constatamos, porém, que isso nem sempre é verdade, pois há também uma grande curiosidade pelas histórias, disposição para jogar bola, brincar de pega-pega e andar de bicicleta.


1 Linda Derviche Blaj, diretora da Educação Infantil do Colégio I. L.Peretz, Mestre em Letras pela USP, pedagoga com especialização em Psicopedagogia e em Cuidados Integrativos pela UNIFESP. Silvia Vinocur Kocinas, coordenadora da educação infantil do Colégio I. L.Peretz, pedadoga formada pela USP com especialização em Psicopedagogia e Psicomotricidade.

Além disso, tem aumentado a atenção ao desenvolvimento das habilidades motoras, criativas e imaginativas. Há pesquisas na área da saúde² que recomendam à escola e à família o combate ao sedentarismo infantil e o estímulo às atividades esportivas com foco no aspecto lúdico.

As primeiras ideias a respeito da dinamização do recreio surgiram nas conversas que, com frequência, a equipe de profissionais mantinha para discutir sobre as atividades dos alunos nos momentos de intervalo.

O pátio onde o recreio acontece é espaçoso e possui diversos setores interligados, conhecidos como tanque de areia grande e pequeno, casa da árvore no pé de abacate, espaço do gira-gira, quiosque e espaço dos jabutis. Para maior organização e segurança das crianças, ao menos duas professoras permanecem em cada espaço, de acordo com uma escala, observando, assessorando e mediando as relações entre os alunos, quando necessário.

Assim, possibilitamos às crianças descentrarem-se da figura do adulto, podendo, no entanto, visualizá-lo. Sentem-se, dessa forma, seguras e confiantes para explorar o ambiente e estabelecer diferentes oportunidades para o contato social.

O recreio é dividido em dois horários: um momento de 40 minutos para os grupos 2, 3 e 4, que englobam as crianças mais novas, e outro para os grupos 5 e 6, com crianças de 5 e 6 anos.

Durante o período de adaptação, as crianças de 1 a 2 anos (grupo 2) têm um momento privilegiado
para a exploração do pátio, com delimitação do tempo e do espaço do recreio.


2 Segundo a Revista Brasileira de Medicina do Esporte vol.4 no 4: Atividade física e saúde na infância e adolescência.
3 Projeto desenvolvido pelo Colégio I. L. Peretz com crianças de 1 a 6 anos.

Por que recriar o recreio?

Recreio, segundo o dicionário Houaiss, significa algo que serve para divertir; brincadeira, divertimento, folguedo; espaço de tempo concedido às crianças para seus brinquedos nos intervalos das aulas ou do estudo.

O projeto Criando e Recriando o Recreio³ partiu da necessidade de se ampliar as possiblidades de brincadeiras, as interações entre as crianças e entre crianças e adultos.

Questionamos a maneira como alunos e professores ocupavam o espaço e o tempo do recreio e decidimos reorganizar atividades, considerando a segurança e qualidade das propostas.

Após uma observação cuidadosa do recreio por professores e coordenadores, percebemos que certas situações se repetiam. Algumas crianças procuravam sempre a mesma atividade, dificilmente explorando novas possibilidades; outras perambulavam pelo pátio, sem conseguir fazer suas escolhas e algumas procuravam ficar ao lado da professora, mesmo com constantes incentivos para escolherem uma brincadeira. Percebíamos também a formação de subgrupos e muitos deles dificilmente se abriam para trocas com outras crianças.

Humberto Maturana refere-se a viver e conhecer, como palavras que se constroem na relação com o outro. Sendo assim, é fundamental pensar em como podemos abrir espaço para novas relações. “A noção de viver-conhecer está diretamente vinculada com o modo de relacionar-se e de organizar-se nessa relação. Não se trata de adaptação ao meio. O viver-conhecer na relação significa, ao mesmo tempo, a criação/recriação desse espaço relacional, e de outros, e a criação/recriação do sistema em relação4.”

Entendendo o recreio como um momento rico de viver-conhecer, no qual diferentes significações são constantemente construídas, decidimos inserir novas opções, oferecendo mais possibilidades de escolha, aprendizagem e interação entre os pequenos. São elas:

♦ Contação de histórias (uma vez por semana);
♦ Atividade física (duas vezes por semana, uma com professor de Educação Física e outra com um professor de turma).

Cenário e Personagens do recreio

O pátio é um cenário de muitas brincadeiras. As crianças são os personagens que conduzem suas histórias reais ou fantasiosas. Aos professores cabe o papel de observar e facilitar os enredos. Por meio da observação atenta, os professores se tornam narradores e muitas vezes personagens de novas histórias. Não esperamos que sejam os personagens principais, mas que, ao facilitarem e organizarem a brincadeira, auxiliem na descoberta de caminhos e alternativas. Personagens que não necessariamente direcionem as atividades, mas que ofereçam recursos para que as dinâmicas e interações aconteçam
de forma envolvente e autônoma.

Era uma vez…

A contação de histórias na hora do recreio acontece uma vez por semana. Após convidarmos a professora Marcia Blatt, responsável pela biblioteca e contadora de histórias, para retirar os livros das prateleiras e trazer a fantasia para o pátio, ela passou a surpreender as crianças, utilizando acessórios, como, por exemplo, um chapéu, e portando uma sacola decorada repleta de livros. Depois de alguns minutos, as crianças vão se aproximando, surpresas e curiosas. Os sons das palavras e a entonação de sua voz se misturam à agitação das bicicletas e às bolas.

Algumas semanas depois do início da contação de histórias no recreio, uma criança de 3 anos, espontaneamente, pegou um livro, aproximou-se dos jabutis e nos disse que eles também queriam ouvir as histórias.


4 Humberto Maturana e o espaço relacional da Construção do Conhecimento, de Adriano J. H. Vieira. Brasília: Centro de Ciências de Educação e Humanidades (CCEH), 2004. (www.humanitates.ucb.br/2/maturana.htm)

De ouvinte, as crianças passaram a reproduzir e a contar as histórias para seus colegas, adultos e também para os animais, como pequenos leitores.

Segundo Torre5, a criança que tem entre 3 e 6 anos aprende cerca de uma palavra nova a cada uma hora e meia. Ao entrar em contato com um texto literário, além do crescimento do vocabulário, a criança “participa” de novas realidades.

Na infância, os contos têm a mesma importância que a brincadeira ou o jogo e a partir deles, a criança compreende o mundo que a cerca. “A hora do conto no recreio é um momento mágico de encantamento, muito apreciado pelas crianças, que ficam com os olhos fixos na professora, mantendo uma escuta atenta. Crianças de diferentes grupos se reúnem para uma atividade em comum”, afirma a professora Célia Polster, do grupo 3.

Em um primeiro momento, após ouvir as histórias, a criança repete a narrativa ou as palavras, assim como o faz com o gesto, e o papel do mediador é fundamental durante esse período. Os estímulos externos, os objetos e os interlocutores tornam a linguagem oral funcional e a criança passa a utilizá-la em outras situações.

Consequentemente ela a internaliza e se apropria dela. A ampliação do seu repertório se dá pelo diálogo, ao ouvir músicas e histórias.

Segundo L. Katz, “[…] os indivíduos não podem apenas se relacionar uns com os outros: eles precisam relacionar-se uns com os outros acerca de algo. Em outras palavras, os relacionamentos precisam conter interesse ou envolvimento mútuo, cujos pretextos e textos proporcionem a interação adulto/criança”6. A narrativa propicia uma experiência afetiva com a entrada no imaginário pela linguagem verbal e gestual.
A entonação da voz dá o tom, convidando o ouvinte a entrar no ambiente fantasioso.

“A entonação situa-se exatamente na fronteira entre o verbal e o não verbal, o dito e o não dito. […] É pela entonação que o locutor entra em contato direto com seus ouvintes: a entonação é social por excelência.”

A palavra é o símbolo mais comum e por meio dela as crianças se comunicam e percebem que algo pode ser dito e que será entendido pelo outro. É um recurso essencialmente social. A entrada no mundo simbólico pela linguagem oral não as afasta da expressão corporal.

Seu desenvolvimento físico, emocional, bem como o cognitivo, está diretamente ligado à entrada no universo simbólico das histórias.


5 Transdisciplinaridade e ecoformação um novo olhar sobre a educação, de Saturnino de la Torre. São Paulo: Triom, 2008, pag. 117-9.
6 Do texto O que podemos aprender com Reggio Emilia, de L. Katz. In: As cem linguagens da criança: A abordagem de Reggio Emilia
na educação da primeira infância, de C. Edwards, L. Gandini e G. Fworman. Porto Alegre: ARTMED, 1999, p. 46.

O corpo em movimento: mexe e remexe…

“O movimento é uma importante dimensão do desenvolvimento e da cultura humana. […] O movimento humano é mais do que simples deslocamento do corpo no espaço: constitui-se em uma linguagem que permite às crianças agirem sobre o meio físico e atuarem sobre o ambiente humano, mobilizando as pessoas por meio de seu teor expressivo.”

Pensando na importância do movimento para o desenvolvimento da criança e nas poucas possibilidades em que costuma ter acesso a ele fora da escola, uma vez que a maioria delas vive em apartamentos e tem a agenda cheia de compromissos, resolvemos oferecer mais opções de atividades físicas no recreio.

Observamos que o espaço do futebol era organizado espontaneamente pelas crianças, que pegavam uma bola e saíam brincando pelo pátio. Todos pertenciam ao mesmo time e as brigas e pequenos incidentes eram frequentes. Por isso, pedimos ao professor de Educação Física que estabelecesse com as crianças algumas regras. Estava claro que para a organização da atividade era necessário a presença de um mediador.

Dessa forma, o professor Fábio Sassaki passou a organizar semanalmente propostas de jogos e atividades a fim de que fossem ampliadas as possibilidades de escolha e interação.

O espaço para as atividades foi delimitado e foram instaladas pequenas traves de plástico. Com essa intervenção, aos poucos, os atritos diminuíram, os jogos ficaram mais organizados e ganharam a participação de outras crianças.

Dentre outras atividades que passaram a ser oferecidas, estão brincadeiras tradicionais como amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, estátua, atividades grupais com bolas, bambolês, pés-de-lata, circuitos, corridas, salto e equilíbrio.

“Quando chego ao pátio, as crianças perguntam qual é a brincadeira do dia e estão sempre prontas para novos desafios”, declara o professor Fábio. Outro exemplo de atividade oferecida é o da professora Miriam Fanny Rosenberg (grupo 6), que tinha em sua rotina semanal “bater corda” com sua turma. Ela passou a fazer a brincadeira espontaneamente no pátio no horário do recreio e a atividade foi muito bem recebida pelas crianças dos outros grupos. Atualmente e como parte do projeto, às sextas-feiras, um professor é responsável pelas brincadeiras com corda, que além de desenvolver habilidades motoras e a percepção rítmica, demanda organização e paciência na espera da vez.

– O que você mais gosta de fazer no recreio?”
–Pular corda! – respondeu a aluna do grupo 6.

“A brincadeira de corda é muito esperada e, apesar de ser uma atividade individual, as crianças contam quantas vezes pulam, torcendo umas pelas outras. Acho fundamental essa diversidade de opções, principalmente para incentivar as brincadeiras em grupo, pois em outros dias as crianças reproduzem por conta própria o que aprenderam” , relata a professora Claudia Chaimovitz (grupo 6).

Incentivar a criança a buscar e enfrentar novos desafios, dentro de um espaço seguro, contribui para a elevação da autoestima e desenvolvimento da confiança.

E o que dizem os personagens…

É sempre importante ouvir a voz das crianças e dos profissionais para avaliar e repensar os encaminhamentos do projeto. Os depoimentos que constam deste artigo foram compilados a partir de uma pesquisa de satisfação com os personagens desta ação. Os professores registraram suas impressões e as crianças desenharam e falaram sobre o recreio. Notamos que os desenhos são bem coloridos e as crianças expressaram sua alegria e satisfação.

Conclusão

Por meio da experiência com o recreio semidirigido, percebemos o quanto a vivência pode ser positiva desde que o aluno não seja obrigado a participar das atividades oferecidas. Nada é mais significativo para a criança do que a possibilidade de opção, com liberdade para criar e propor suas próprias ações, no tempo e no espaço que desejar. E lembramos que não querer brincar também é uma escolha possível.

Ao se deparar com novas possibilidades de brincadeiras e de interação, a criança pode somar diferenças, mantendo a sua individualidade em um ambiente coletivo e construindo seus próprios caminhos.

Posted in Revista Avisa lá #59.