Tomar consciência na formação¹

A convite do Instituto Avisa Lá, Claudia Molinari² encontrou-se com um grupo de formadores para conversar sobre tematização da prática.

O que é esta estratégia formativa que chamamos de tematização da prática?

A tematização é um conceito piagetiano. Emilia Ferreiro o utiliza como exemplo em um artigo sobre os problemas cognitivos envolvidos na construção da representação escrita da linguagem³. Fala como a criança descobre a relação entre partes do oral e partes do escrito. Neste artigo, ela explica – com o propósito de interpretar a escrita de Víctor – como o menino utiliza um conhecimento linguístico sem tematizá-lo. Pela perspectiva piagetiana, a tematização significa – tal como indica a autora – que algo inicialmente utilizado como instrumento de pensamento pode converter-se em objeto de pensamento, mudando ao mesmo tempo sua posição como elemento do conhecimento. Supõe uma tomada de consciência, a reconstrução de certo conhecimento em outro nível, reconstrução essa que, como indica o artigo, “toma tempo”, já que supõe um processo de apropriação e não cópia da realidade. É um fazer conceitualizado, modificando esquemas.


1 Entrevista realizada no Instituto Avisa Lá em 21 de outubro de 2013.
2 Pesquisadora argentina da Universidade Nacional de La Plata.
3 Alfabetização em processo, de Emilia Ferreiro. São Paulo: Cortez, 1991. A obra citada de Jean Piaget é: A tomada de consciência. São
Paulo: Melhoramentos, 1977.

Pensando na ação formativa e não apenas no processo de pensamento da criança, o que é necessário para que aconteça essa tomada de consciência?

São necessários tempo e ações formativas orientadas para que os professores possam avançar na tematização da prática. Telma Weisz tem grandes contribuições neste sentido, pois lançou inicialmente a ideia da documentação da prática para torná-la objeto de reflexão teórica. Há muito tempo sabemos sobre a importância de pensar atividades formativas nas quais é possível pensar a prática de modo a poder discuti-la, apropriar-se dela, conhecê-la de fato. Diante disso, os processos formativos devem criar condições para a sustentação da discussão teórica, colocar em prova nas aulas situações de ensino para seguir avançando rumo às transformações, como em qualquer profissão.

Como maximizar o tempo da formação para potencializar a aprendizagem do professor?

Como sabemos, são várias as situações formativas colocadas em funcionamento para que os professores possam tematizar a prática: vídeos da prática do professor com a criança; registros e protocolos de aula; planejamentos de situações didáticas, análises de diversos documentos como materiais curriculares e bibliográficos etc.

Nos espaços formativos, a prática pode ser tematizada, por exemplo, a partir da análise de um corpus de registros de aula. Reconhecida a complexidade dos processos de tomada de consciência, não podemos supor que a tematização de uma nova prática possa ser conceitualizada somente por análise de um registro de classe, nem podemos falar, a partir de um único exemplo, sobre como outro professor desenvolve este trabalho em sua classe do ponto de vista de uma perspectiva teórica diferente. Por esta razão, é necessário que o formador organize – seguindo com o exemplo – uma seleção de registros de
classe em torno de alguma situação didática que permita contextualizar, descontextualizar e recontextualizar conteúdos a serem discutidos com os professores, atendendo às especificidades e regularidades do ensinamento. É importante que o formador tenha clareza da necessidade do tempo,
do processo e da reconstrução do conhecimento em outro nível. É importante lembrar que reconceitualizar a prática é um tema muito complexo.

Sabemos também que, inicialmente, é necessário introduzir “boas práticas” ou práticas alternativas
àquelas que nos propusemos revisar, pois é ali que os professores podem colocar em discussão o ensino usual, incluindo suas próprias práticas. Se isto não é assim, como poderão tornar observáveis certos problemas de ensino? Conhecer e compreender o sentido de outras práticas e suas ferramentas teóricas que permitam olhar de outro lugar as suas próprias práticas.

Mas repito: para tematizar a prática é necessário tempo de reflexão, pois isso não se alcança apenas com explicação de um formador ou somente com análise de um registro considerado como bom exemplo de classe.

Você poderia falar um pouco mais sobre a necessidade de trabalhar com um corpus de registro de classe e não a partir de um caso isolado?

Há tempos trabalhamos com essa ideia. A seleção de um conjunto de materiais faz parte das decisões didáticas do formador em razão daquilo que se quer comunicar, de acordo com o grupo de professores. A análise desse material se dá em dupla dimensão: a propósito de cada registro e também em torno da totalidade de registros por contraste ou comparação, considerando regularidades e especificidades. A totalidade do material selecionado nos permite abordar conteúdos que uma situação didática isolada não nos permite discutir.

Vejamos um exemplo para explicar o que acabo de dizer. Lembro-me de um corpus de treze fragmentos
de classe – não muito extensos – que propunham situações didáticas para ensinar a ler em momentos da alfabetização inicial, cujo foco de trabalho com os alunos girava em torno do sistema de escrita4. Nesse conjunto, os registros de aula eram situações didáticas nas quais a tarefa consistia em localizar o nome de um colega com diferentes propósitos sociais, em grupos de 3, 4, 5 anos de Educação Infantil e de primeiro ano do Ensino Fundamental. Em alguns casos, apresentam-se apenas problemas de leitura (por exemplo, localizar um nome entre outros para selecionar o responsável por uma atividade); em outros casos, situações de leitura vinculadas à escrita (localizar um nome para copiá-lo e registrá-lo em uma ficha de empréstimo de livros; localizar um nome como fonte de informação para outra produção).
Nos quatro registros mencionados, constatam-se também diferenças quanto à maneira de se administrar a classe e em relação à sua organização (em alguns registros, a professora interage com um pequeno grupo enquanto os demais alunos realizam outra atividade; em outros registros de aula, todos os alunos trabalham em equipe na mesma situação). O material apresenta diversas possibilidades de interpretação dependendo de qual a questão em jogo. Trata-se de registros de classe que apresentam as mesmas intervenções com diferentes propósitos didáticos, segundo os grupos de crianças, ou intervenções específicas, atendendo a alguma particularidade conceitual; com maneiras diversas de introduzir um problema de leitura para a classe segundo a informação verbal prevista pelo professor. Decisões similares podem ser observadas em outros registros que se propõem situações de leitura de títulos em diferentes suportes (agenda de leitura, fichas de biblioteca, capas de livros, índice de livro, título em folha de enciclopédia), em que os problemas de leitura – como nos nomes – surgem com contexto verbal
e também se apresentam escritos acompanhados de imagens. Havia também registros que propunham
leitura de formas diversificadas breves, como adivinhações e versos. Em todos os casos, com critérios
similares aos registros precedentes, a intenção é poder descontextualizar e recontextualizar aquilo que se apresenta como objeto de discussão com os professores.

Os critérios de diversidade e de continuidade atravessam conceitualmente a análise desse corpus. Por eleger apenas uma questão, fica claro – da Educação Infantil aos primeiros anos do Ensino Fundamental – que essas situações para ensinar a ler, coordenando informações, sustentam-se com continuidade conceitual, sem graduação de letras nem extensão (as crianças constroem significado em frases, palavras e textos mais extensos); que os problemas colocados pelos professores não são interpretados da mesma maneira pelos alunos e que é possível reconhecer marcas, nos diversos registros, de como os alunos aprendem a ler, por exemplo.

O mesmo acontece quando trabalhamos com uma seleção de produções escritas de alunos realizadas
em contexto escolar e com diferentes níveis de conceitualização. Cada produção merece uma análise particular, mas também o corpus nos permite descontextualizar questões como diversidade de propósitos sociais que orientam o conjunto de produções, diferentes gêneros que as crianças podem
produzir em iguais ou diversos níveis de compreensão do sistema de escrita, possibilidade de abordar essas produções em variadas idades e níveis educativos, diversidade de escritas que permitem constatar o direito que todas as crianças têm de publicar etc.


4 Trata-se de um material elaborado para um seminário de formação de formadores, coordenado por Claudia Molinari, Regina Usandizaga y Adriana Inés Corral. Formação Continuada da Província de Buenos Aires, Argentina, 2010.

Claro que o tempo de trabalho presencial para a análise de registros de classe ou de produções não é suficiente. Mas é claro que o trabalho não presencial, aliado a uma bibliografia específica, pode dar continuidade à tarefa por escrito e em intercâmbio verbal, num encontro posterior. Esse é um jeito de maximizar o tempo de formação, sempre escasso, em favor da tematização e da prática. Solicitar elaborações conceituais escritas pelo professor – seja de forma individual ou em pequenos grupos de discussão – é uma proposta formativa que favorece a tematização.

Por que a escrita é um meio importante para tematizar a prática?

A escrita tem uma função epistêmica, para além da comunicação. Em um artigo, Mariana Mirás sintetiza muito claramente esta questão a partir de uma perspectiva cognitiva, tomando por base modelos de composição que permitem analisar como é possível aprender pela escrita.5 Quem escreve toma decisões sobre o quê e o como escreve de maneira muito interrelacionada, em que o escrever permite saber mais sobre o que se escreve. Neste sentido, situações de escrita em contextos de formação oferecem oportunidades para continuar aprendendo com a escrita, para avançar na tematização da prática. A escrita é um instrumento de autorregulação intelectual. Em última instância, podemos falar da escrita como instrumento para a construção de conhecimento.


5 Mirás, M. (2000). La escritura refl exiva. Aprender a escribir y aprender acerca de lo que se escribe. Em: Infancia y Apendizaje,
edição no 89.
Posted in Revista Avisa lá #58.