Águas de março fechando o verão

JOÃO PAULO ALY CECILIO E PAULA ANTUNES RUGGIERO¹


A CURIOSIDADE E A CAPACIDADE INVESTIGATIVA DAS CRIANÇAS, MEDIADAS PELA INTERVENÇÃO DO PROFESSOR, RESULTAM EM UM AMPLO PROJETO QUE CIRCULOU POR DIVERSAS LINGUAGENS E ÁREAS DO CONHECIMENTO


Na escola Grão de Chão, trabalhamos com projetos, que são investigações em profundidade de assuntos trazidos pelas crianças ou pelos professores. A motivação pelo assunto é determinante para a continuidade do projeto. Nele são contemplados objetivos e conteúdos para a faixa etária. Como as crianças e os professores (as famílias também) se envolvem muito no processo, cada atividade desenvolvida tem um significado especial para os pequenos.

O projeto integra diversas áreas conferindo unidade ao aprendizado. No projeto Águas de Março, por exemplo, abordamos com maior ênfase as áreas de Música, Ciências, Culinária e Artes Visuais, e a linguagem escrita esteve presente o tempo todo, principalmente nos registros.

Encontramos sempre uma música, um poema ou uma história sobre o que pesquisamos. As experiências de Ciências e de Artes Visuais nos ajudam a entender o funcionamento e a beleza das coisas.


1 João é professor da Escola Grão de Chão, em São Paulo (SP), desde 2009. É pedagogo, arte-educador e músico. Iniciou seus trabalhos em 2002 no projeto de Educação, Cidadania e Economia Solidaria da Prefeitura de São Paulo. Paula é coordenadora pedagógica na mesma escola.

Crianças pesquisadoras

No começo de 2013, tivemos em São Paulo um período de chuvas bastante intenso. A cidade sofreu com as enchentes e, em rodas de conversa, as crianças do G5² relataram problemas vivenciados pelos pais em engarrafamentos, ocasionados por ruas alagadas. As crianças pequenas têm muita curiosidade e querem entender o que acontece ao seu redor. Por isso fazem muitas perguntas e procuram elaborar hipóteses a respeito do assunto que as interessam.

O que são enchentes?, Como surgem os trovões?, Como acontecem as chuvas?

Todo início de ano, a partir dos interesses das crianças, desenvolvemos um projeto de investigação
significativo para elas. Os projetos partem de um tema de interesse e permitem a exploração em diversas áreas do conhecimento. O projeto Águas de Março nasceu das inquietações do grupo em relação às enchentes observadas na cidade.

Neste período chuvoso, fomos diversas vezes ao Quintal, nosso espaço de brincadeiras e de investigações, para contemplar a chuva e o percurso da água. A exploração e a brincadeira com água nesse espaço permitiram que as crianças observassem o comportamento da água quando represada em potes, bacias, canos. Como costumamos trazer para a brincadeira o que estamos “estudando”, propus um jogo simbólico em que as crianças construiriam uma cidade de blocos de madeira e provocariam uma enchente! Elas foram as protagonistas que, munidas de regadores e baldes, encheram as ruas de água, e a cidade acabou destruída.

“Por que a água só desce?”, perguntou Francisco.
“Como a água sobe?”, indagou Rafael


2 Grupo de crianças entre 4 e 5 anos, do período da manhã da Escola Grão de Chão.

Para investigar uma maneira de resolver esse problema que tanto intrigava as crianças, eu levei para o grupo, numa roda de conversa, a foto de Arquimedes³ e seu parafuso, ferramenta criada na Idade Média, para transportar água de baixo para cima de forma mecânica. E seria possível fazermos um? Enfrentamos esse desafio e construímos o nosso parafuso de Arquimedes com um cano e uma mangueira. Pudemos, assim, presenciar seu funcionamento.

Como, na Escola, há um grande sucatário que conta com a colaboração de toda a comunidade, as crianças recorreram a ele para pesquisar objetos que interagiam com água, como canos, mangueiras, bacias etc. Para surpresa de todos, Maya fez um instrumento de captação de água, que mais tarde seria incorporado à engenhoca criada.

Como as brincadeiras com água no tanque de areia eram muito constantes, manifestei a importância
de reutilizar essa água. Regaram, então, as plantas do jardim com essa água. Após a rega, uma das crianças presenteou o grupo com sementes de flores. E, assim, reservamos um canto da sala para cuidar dos vasos.

Da enchente para a música

O grupo recebeu, da coordenadora, uma matéria de jornal sobre as enchentes em São Paulo, cujo título era Águas de Março, e lembramos da música de Tom Jobim4. As crianças do grupo 5 tomaram para si o desafio de decorar a letra, que é muito extensa e complexa. Para ajudar a memorizá-la, fizeram um cartaz com a letra e desenho, e investigaram algumas palavras e nomes como, por exemplo, Matita-Pereira. A música foi  apresentada no Sarau de Poesias da escola, evento realizado anualmente. Foi um sucesso inclusive no grupo 6 que, desafiados, ficavam diante do cartaz tentando decifrar os desenhos, cantarolando a melodia que já sabiam. Até os de 2 anos, irmãos das crianças do grupo 5, aprenderam
algumas partes e cantaram.

Roberto Sion, importante maestro brasileiro, é avô de duas crianças da escola. Apresentamos-lhe nosso trabalho e o convidamos para que  viesse contar um pouco sobre sua carreira e também para tocar e brincar de música conosco. Ele aceitou o convite e trouxe vários instrumentos de sopro para nossa apreciação. Tocamos e cantamos a música-tema do projeto e dançamos muito ao som de seu saxofone. Foi assim que nosso projeto passou a ser chamado de Águas de Março, apesar de as crianças se referirem à música como É pau, é pedra.


3 Arquimedes de Siracusa foi um matemático, físico, engenheiro, inventor e astrônomo grego. Suas invenções como a Lei da Alavanca
e seu parafuso são muito importantes para humanidade ainda hoje.
4 A letra da música está na página 22.

Estados da matéria

Na Educação Infantil, a experiência é muito importante. Colocar a “mão na massa” é um jeito de as crianças entrarem em contato com o objeto do trabalho e com os conceitos, a fim de interagir, refletir, brincar e criar suas hipóteses temporárias. É um momento muito esperado e apreciado por elas. Durante esse processo vivido pelas crianças, tivemos muitas perguntas:

Para que serve a água?, perguntou Helena.
Quais os tipos de chuva?, indagou Maya.
Por que a água chama água?, questionou Rafael.
Como chove granizo?, perguntou Francisco.

Foi importante identificar, por exemplo, o conhecimento prévio das crianças a respeito dos estados físicos da água. O que é gelo? Como a água vira nuvem?

Em nossas experiências, constatamos que a água fica borbulhante, dura e mole.

Próximo ao dia exposição da Escola, em outubro, fizemos a engenhoca “Os Estados da Matéria”. Para isso, utilizamos o captador de água da Maya, o parafuso de Arquimedes e os gelos coloridos. Para a construção da engenhoca foram necessários vários produtos reunidos em uma só obra. As crianças já estavam mobilizadas e, mais para o final do processo, acirraram as buscas por materiais e levantavam hipótese sobre o seus usos: Será que dará certo?. 

Deu certo! E a engenhoca, assim como o filme performático, encantou os visitantes. No dia seguinte,
após a exposição, as crianças do G5 fizeram a monitoria para as outras turmas da Escola: explicaram todo o processo e o funcionamento a engenhoca. Sucesso!

Cozinhando com água

Depois disso, as investigações continuaram no campo da culinária. Propusemos receitas em que a água fosse o elemento principal. Fizemos sopa. Com a centrífuga, retiramos a água de frutas e de legumes. Além de sopa, elaboramos um suco delicioso, e com os resíduos coados fizemos tintas com pigmentos e fibras naturais.

Já que as crianças tinham várias teorias provisórias sobre a água, precisaram rever os desenhos relativos às nossas conversas e muitos de seus trabalhos. Resolveram, então, aprofundar a relação da água no corpo. Em um acetato, desenharam o corpo; em outro, o copo e a água que percorreria o corpo. A sobreposição dos dois dava a nítida impressão da água entrando no corpo.

Registros finais

Ao longo do projeto nossas descobertas foram anotadas pelo professor e pelas crianças em registros
compartilhados no mural e no diário de sala. Em determinados momentos, quando há uma série de experiências significativas, elaboramos um livro que, além de concentrar informações relevantes, é uma importante ferramenta de avaliação.

O projeto faz sentido porque as crianças pensam a respeito do tema e demonstram interesse pela investigação (veja no box abaixo).

No fim do ano, perguntamos às crianças do G5 o que elas podiam nos dizer sobre a relação entre água e vida. Elas falaram sobre água potável, banho, esgoto, represa, chuva, plantas, sobre a alegria de brincar com a água, sobre os peixes, sobre a sensação de sentir a água no corpo quando nadam.

Este é o chão de cerâmica com água, meu pai escorregava quando era criança e eu também gosto de escorregar. 
O esgoto é sujo e o cano limpa a água e a água vira mineral.
Os canos levam a água para a casa.
Um homem coloca a água nos canos que levam a água para casa.
Se não podemos beber a água do mar, como os peixes fazem?.
Eu acho que eles saem do mar, vão para uma lagoa bebem água e voltam.

O projeto não pretende responder às questões de forma definitiva. As crianças criam hipóteses temporárias, um exercício bom o bastante na Educação Infantil, pois instiga o pensamento, a narrativa e a poética. Bem no finalzinho do ano, para encerrar nosso trabalho, fizemos um delicioso passeio num dia chuvoso, com guarda-chuvas e galochas. No passeio, alguns ainda se interessaram em saber para onde vai a água.

Águas de Março

(Trecho)
Tom Jobim, 1972

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, o nó da madeira
Caingá candeia, é o Matita-Pereira

É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fi m da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira

Das águas de março, é o fi m da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

(…)
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Fonte: http://www2.uol.com.br/tomjobim/musicas.htm

Posted in Revista Avisa lá #58.