Monstros para ativar a imaginação

ANA PAULA LIMA E TATIANA FECCHIO GONÇALVES¹


AO CONTRÁRIO DO QUE SE PENSA, A IMAGINAÇÃO PODE SER ATIVADA E POTENCIALIZADA COM BOAS PROPOSTAS NAS ESCOLAS


O Projeto Monstros vem sendo desenvolvido desde 2009 junto aos alunos do 1o ano do Ensino Fundamental da Escola Castanheiras, em Santana de Parnaíba (SP).

A proposta desta atividade de criação em artes surgiu de uma demanda legítima relacionada à garantia de um espaço voltado para a imaginação, tão recorrentemente defendido nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).

A imaginação criadora permite ao ser humano conceber situações, fatos, ideias e sentimentos que se realizam como imagens internas, a partir da manipulação da linguagem. É essa capacidade de formar imagens que torna possível a evolução do homem e o desenvolvimento da criança; visualizar situações que não existem, mas que podem vir a existir, abre o acesso a possibilidades que estão além da experiência imediata. (PCN, 1997, p.30) 


Ana Paula Lima é artista plástica envolvida com pesquisa poética em mosaicos e professora do Ensino  Fundamental I da Escola Castanheiras. Tatiana Fecchio Gonçalves é bacharel e licenciada em Educação Artística, mestre e doutora em Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em Arteterapia pela Unicamp, e em Artes e Novas Tecnologias pela Universidade de Brasília (UnB), docente convidada no Curso de Especialização em Artes Visuais na Unicamp e assessora da área de Arte em escolas de São Paulo. É coordenadora da área de Arte na Escola Castanheiras.

Monstros vivem na História

As figuras monstruosas e grotescas aparecem como representações do imaginário desde épocas remotas, configurando-se como um elemento importante das elaborações do humano em vários povos e épocas: na Odisseia², na Divina Comédia³. E mesmo durante a Idade Média essas figuras são abundantes, incluindo as gárgulas4 nas catedrais, e as obras de Hieronymus Bosch5. Na mitologia clássica greco-romana há figuras compostas de várias partes diferenciadas de seres vivos, como no caso dos centauros (homem-cavalo), dos sátiros (homem-bode), das górgonas (criatura de aspecto feminino com presas e cinturão ou cabelos de serpente, como é o caso da medusa). Na literatura do Renascimento, vários autores utilizaram imagens de monstros, como William Shakespeare6, e ainda no século XVII Thomas Hobbes7 se referiria ao Leviatã8 como símbolo da monstruosidade social.

O monstro é a representação do impensável, do caos, desordem, do desproporcional inusitado. Sua forma, neste sentido, é libertária, pois remete a um campo e possibilidades não necessariamente pautadas em lógicas predeterminadas, miméticas ou adequadas:

[…] as figuras grotescas, distorcidas e deformadas, monstruosas, não mantêm nenhuma relação com o real. Contudo, podemos perceber que as normas empíricas de verossimilhança em sua tradição não são adequadas para explicitar a totalidade desta arte insólita. As figuras grotescas não são imitações abortivas de uma visão racional do mundo, mas delineiam a subversão da ideia de que a realidade é uma construção objetiva, previsível e compreensível (KAYSER, 1999: 20)


2 Um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, elaborado ao longo de séculos de tradição oral, tendo tido sua forma fixada por escrito provavelmente no fim do século VIII a.C por Homero.
3 Poema de viés épico e teológico escrito por Dante Alighieri no século XIV.
4 Ornamentos em formato de figuras monstruosas ou animalescas que, durante a Idade Média, eram colocados junto às gárgulas (parte saliente das calhas de telhados destinadas a escoar água da chuva) das catedrais medievais, em especal das Góticas.
5 Pintor e gravador holandês (c.1450-1516).
6 Poeta e dramaturgo inglês (1564-1616).
7 Matemático, teórico e filósofo inglês (1588-1679).
8 Criatura mitológica, geralmente de grandes proporções, bastante comum no imaginário dos navegantes europeus da Idade Moderna. Na obra de Hobbes, a figura do Leviatã é utilizada como representação do Estado.

Assim, por “[…] mais marginal que seja, sua apresentação tenta mostrar que se há neste mundo algo de irredutível e maligno, é preciso compreender estas deformidades como partes do drama do ser humano”9.

Monstro é coisa de criança?

A criança, ao criar monstros, lida com o imprevisível, o imponderável, o diverso, o assustador, o incontrolável. Dá forma e articula seus medos e fantasias.

Este ato de criação libertário articula e constitui um imaginário.

Fenômeno coletivo, social e histórico, o imaginário de uma época precisa recuperar suas produções características vigentes entre o belo e o sinistro, o real e o estranho, a identidade e a diferença. A maneira de percebermos as formas que consideramos monstruosas questiona as concepções sobre a vida, a linguagem, o cosmos, a imaginação criadora, o princípio da negatividade. (MARTINHO, 2009, p.261)


9 As Linguagens da Monstruosidade entre o mundo medieval e o moderno, de Cristina Maria Teixeira Martinho. Cadernos do CNLF, Vol. XIII, No 04. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009. Disponível em http://www.filologia.org.br/xiiicnlf/XIII_CNLF_04/ as_linguagens_da_monstruosidade_entre_o_mundo_cristina_maria.pdf

As articulações simbólicas acionadas nesta ação dão forma ao que seria impensável, dão espaço à polissemia, mobilizando, de maneira potente, os afetos. Essas ideias se alinham às teorizações representadas por pensadores importantes como Gilbert Durand, Paul Ricoeur e Mircea Eliade segundo as quais “[…] as imagens e o imaginário são sinônimos do simbólico, pois as imagens são formas que contêm sentidos afetivos universais ou arquetípicos”10.

A imagem criada, ao mesmo tempo produto e produtora do imaginário, adquire caráter sagrado devido à sua emergência e universalidade. O monstro criado pela criança, numa situação lúdica e acolhida diante do desconhecido, dá a esse monstro forma e abordabilidade aos inabordáveis da existência. Pela experimentação dá forma ao disforme, inclui o excluído, apresenta o diverso, possibilita o impossível, abarca o caótico, pondera sobre o imponderável.

Encontrando Monstros

Foi por acreditar nessas ideias sobre a importância da imaginação e criação por parte das crianças que escolhemos trabalhar este tema nas aulas de Artes Visuais. A presença do desconhecido, o envolvimento reiterado dos alunos e a possibilidade de lidar com a potência daquilo que, por não existir fisicamente, podem suscitar inúmeras e inusitadas formalizações plásticas, agregando ainda mais sentido à nossa escolha. Essas aulas se dividem em dois momentos:

Ateliê de Percurso

São propostas que estão presentes em todas as séries, desde o Ensino Fundamental I até o Ensino Médio, e que têm como objetivo principal propiciar aos alunos um momento de construção, experimentação e criação pessoal. Nesses momentos, os alunos são desafiados a lidar com suas escolhas poéticas de forma autônoma e criativa, individualmente ou em grupos.

Ateliê de Projeto

São atividades propostas a partir de questões temáticas ou técnicas que têm por objetivo ampliar o repertório do aluno. É aqui que se desenvolvem as parcerias dentro da área e junto a outras disciplinas. A montagem das exposições e das apresentações é parte integrante do planejamento. Todo final de aula, a organização dos materiais, dos instrumentos e dos equipamentos é feita coletivamente.

A sequência didática do Projeto Monstros se deu no Ateliê de Projeto.


10 LAPLANTINE & TRINDADE, 1996.

Iniciamos com apreciação e escuta de histórias para ampliar as referências dos alunos junto ao campo das monstruosidades. Neste sentido, foram apresentadas as seguintes produções aos alunos:

♦ Quem tem medo de monstro?, de Ruth Rocha.11 Uma conversa sobre os medos em que o humor é
o modo de enfrentá-los.
♦ Quando mamãe virou um monstro, de Joanna Harrison.12  Conta a história da personagem Mamãe
que se transforma quando recebe a notícia que os seus sobrinhos vêm lanchar.
♦ O domador de monstros, de Ana Maria Machado. 13  História do personagem Sérgio que, ao tentar
dormir, vê projetadas na parede do seu quarto as sombras de galhos de árvores.
♦  Trecho (3’18’’) do filme Monstros S.A. no qual Mike, um monstro, compra um carro de seis rodas
que ele não sabe dirigir nem tem ideia da função de cada um dos botões do painel.14

Criando Monstros

Depois da escuta e apreciação das imagens, os alunos fizeram um primeiro exercício e criaram o próprio monstro individualmente. Valia ter várias cabeças, olhos, bocas, pernas e braços. Papéis e colagem foram utilizados para a construção do monstro no qual poderiam ser agregados desenhos.

Foram definidos grupos produtivos de trabalho e cada um escolheu o Monstro Coletivo que seria executado por todos. O primeiro passo foi a ampliação do desenho, quando foi possível aprender não apenas sobre o recurso técnico da ampliação mas também negociar com os pares (cedendo, dialogando, defendendo argumentos, estabelecendo parcerias). O respeito às diferentes escolhas, formas de expressão e estilos pessoais foi exercitado nesta etapa.

A ampliação do Monstro foi feita em cartolina. As partes foram feitas separadamente para depois serem unidas com fita-crepe. A definição das etapas do trabalho e a divisão das tarefas constituíram-se como mais uma oportunidade de trabalho coletivo.

Depois do Monstro pronto em cartolina, o grupo escolheu as cores do fundo e iniciou a pintura das partes, e cada aluno se responsabilizou por uma cor. Programaram quais seriam os detalhes a serem feitos posteriormente em desenho e pintura sobre o fundo seco.


11 São Paulo: Global, 2001.
12 São Paulo: Brinque Book, 1996.
13 São Paulo: FTD, 2003.
14 Trecho assistido disponível em www.youtube.com/carrodomike.

O dia da realização dos detalhes chegou e os grupos novamente se programaram para a realização dos desenhos, das novas pinturas (poderiam fazer misturas de cores a partir das primárias) e texturas.

A exposição também faz parte das aulas de Artes Visuais, pois amplia as referências sobre a relação dos alunos com o próprio espaço expositivo. Assim, eles escolheram o lugar ponderando sobre a circulação de pessoas, os locais de fixação dos trabalhos e antecipando a visualidade final da composição no espaço.

Desse modo, esta sequência de atividades garantiu que se discutisse e apresentasse questões referentes à plástica e à técnica:

• mistura de cores na pintura, ampliação, contato com os materiais;
• a parte e o todo, a figura e o fundo;
• socialização – fazer coletivo e negociações;
• antecipação de um fazer;
• vivência de uma situação de projeto, incluindo a organização das suas etapas executivas e a veiculação.

Vale destacar também que a escolha da temática e da forma com a qual foi conduzida a sequência de atividades garantiu aos alunos a possibilidade de articulação de imaginários referentes à diversidade e às monstruosidades, legitimando, no contexto escolar, a possibilidade de incorporação de aspectos fundamentais ao desenvolvimento humano.

Posted in Revista Avisa lá #57.