Material concreto e Matemática, quando e como?

A equipe do Instituto Avisa Lá que trabalha com Matemática na Educação Infantil e no Ensino Fundamental¹ teve o prazer de entrevistar a professora María Emilia Quaranta² em recente passagem pela cidade de São Paulo. Ao longo da entrevista foram abordados conteúdos que provocam polêmica na área. Vale conferir!

Avisa lá – O uso de materiais concretos no ensino da Matemática é motivo de muitas divergências
entre os professores. O que você pode elucidar sobre o tema?

María Emilia Quaranta (MEQ) – Para se falar do uso de material concreto no ensino e na aprendizagem de matemática é necessário diferenciar os contextos aos quais estamos nos referindo. Por um lado, alguns contextos se referem ao uso de material concreto como uma fonte de sentido para os conceitos. Isto é, antes de se fazer abstrações é preciso manipular objetos concretos. Por outro, temos uma referência ao uso de material estruturado para o trabalho com as propriedades do sistema de numeração.


1 Programas Formar em Rede Matemática e Além dos Números.
2 Professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires, Argentina.

Não tem lógica ser a favor ou contra o material como fonte de sentido dos conceitos matemáticos, mas é preciso analisar em que condições ele está sendo utilizado. Estamos concebendo a aprendizagem de matemática como uma atividade de produção intelectual por parte dos alunos, com uma atividade em que os alunos se comprometem a abordar situações, a abordar problemas, a tentar interagir, a discutir, a considerar o que os outros fazem, analisar, validar. Nesta produção, que papel desempenha
o material?

É isto o que devemos analisar. Certamente há muitas situações em que esse material tem um significado fundamental.

Avisa lá – Quais seriam essas situações?

MEQ – Por exemplo, nas situações em que queremos que as crianças façam o uso de contagem, é imprescindível ter objetos para contar. Não podemos aplicar o uso de contagem sem objetos para contar. Poderíamos [propor a contagem] com desenhos e outros meios, mas perderia muito da riqueza da funcionalidade da contagem. Certamente devemos ver em que condições o problema é apresentado. Uma coisa é simplesmente dizer às crianças que contem, outra é propor problemas como ir buscar colheres ou pratos dispostos sobre a mesa, ou tampas ou caixas colocadas em uma estante etc. Problemas que exigem contar, mas que necessitam e se enriquecem com a presença de objetos a serem contados. Nesse caso, o material concreto torna-se praticamente imprescindível, não porque fornece a solução à criança, mas porque é o meio da problematização. O que queremos é que as crianças resolvam problemas de contagem desses objetos.

Avisa lá – Quais são as diferenças entre esta situação e aquela em que a professora mostra objetos
e pergunta qual é a quantidade apresentada?

MEQ – O exemplo que dei difere daquelas situações em que, na realidade, os objetos cumprem a função de apenas estabelecer a relação entre número e quantidade. Não acreditamos que os objetos, por si sós, mostrem conceitos; eles servem de suporte ou de meio para sugerir problemas. Os exemplos não traduzem uma noção que, na verdade, não se pode revelar, pois é uma relação conceitual a ser construída pela criança. O que quero dizer com isto? Por exemplo, existe uma situação muito divulgada, que é o jogo da caixa, na qual se realizam transformações sobre os objetos. É mostrada uma caixa vazia às crianças e, a seguir, coloca-se uma quantidade de objetos dentro da caixa, por exemplo, cinco tampinhas. Adiciona-se outra quantidade de objetos, por exemplo, mais 3 tampinhas e fecha-se a caixa. As crianças viram e, portanto, são testemunhas da quantidade de tampinhas colocadas na caixa. A tarefa é averiguar quantas há agora, com a caixa fechada. Percebam que, neste caso, o material concreto está funcionando como suporte para sugerir o problema, mas as crianças não contam os objetos, pois a caixa está tampada. Não chegarão à solução do problema pela contagem manual. Eles terão de construir uma representação do problema das tampinhas colocadas na caixa e das tampinhas adicionadas, além de indicar como operar com essas quantidades para se chegar à quantidade final dentro da caixa. Ou seja, o material não está dando a solução. Eu tenho de antecipar a solução, pensar sobre a solução. Neste sentido, estamos falando sobre as condições, sem destruir nem anular a antecipação por parte das crianças. Não é a visualização dos materiais que dará uma resposta, mas esses materiais ajudam a sugerir problemas que envolvam antecipações.

Avisa lá – Quais são as outras situações em que os materiais ajudam?

MEQ – Os materiais também podem ajudar na verificação, já que, no caso do jogo da caixa, as crianças podem ver, após darem a resposta, se realmente há a quantidade de tampinhas que anteciparam ou não. De qualquer forma, não podemos esquecer que a verificação que o material permite é empírica. O uso de argumentação conceitual, se acertei ou não a quantidade de tampinhas e por quê, faz com que eu esteja segura em relação à quantidade de tampinhas que há na caixa, sem a necessidade de contá-las antes. Ou seja, ter as tampinhas dentro da caixa me permite uma verificação empírica (usando os sentidos) de quantas tampinhas há. No entanto, antes de destampar a caixa, me parece mais interessante estabelecer com as crianças uma tentativa de validar a solução argumentativamente, ou seja, como a criança está segura de que há oito tampinhas, a partir das cinco e das três que colocamos, ela sabe que haverá oito tampinhas.

Avisa lá – Então o que você está dizendo é que o uso do material pode ser interessante se a criança puder pensar nas relações e construir argumentos?

MEQ – A presença de materiais enriquece o campo de experiência das crianças. Mas os materiais não podem interromper nem devem desmontar o processo de “matematização”, isto é, a construção de ideias para operar matematicamente com vistas à resolução de problemas para além da leitura visual ou perceptual desses materiais. Neste sentido, insistimos que a atividade matemática é uma atividade mental de antecipação, que nos faz estabelecer relações que nos permitem saber, sem contar com o material. Possibilita-nos antecipar um resultado antes de termos o material diante de nós. É possível, a partir desse material, criar situações que não deixem de por em prática a antecipação, característica fundamental do trabalho matemático.

Avisa lá – Uma prática muito comum, principalmente no início da escolarização, é propor um problema e convidar as crianças para resolvê-lo utilizando materiais concretos…

MEQ – Até agora falamos que o material concreto pode enriquecer os problemas propostos às crianças, desde que seja possível controlar as condições para que sejam utilizados como suporte para aplicação de bons problemas, em que as crianças coloquem em prática antecipações e estabeleçam relações. Outro recurso é sugerir a utilização de material concreto como apoio para crianças com dificuldade em resolver um problema. Essa é uma maneira de ajudar uma criança com dificuldade a entender o que está sendo proposto. Isto é diferente de propor o material para todos os alunos de igual maneira. Se propusermos que todos resolvam com o material não estamos permitindo que coloquem em prática os recursos que nós esperamos que eles utilizem. Acreditamos ser importante a decisão dos alunos acerca de quais recursos mobilizar e que decisões tomar para buscar soluções para os problemas.

Avisa lá – Várias ideias e contribuições piagetianas foram apropriadas e didatizadas pelos educadores,
tornando-se amplamente utilizadas em salas de aula. O que você tem a dizer sobre isso?

MEQ – Muito do que existe a respeito do trabalho com o material concreto se apóia em contribuições “surgidas”, digamos, da teoria piagetiana e de sua transposição para o ensino. Orientações que muitas vezes definimos como “aplicacionismopiagetiano”. Aplicacionista em que sentido? A teoria piagetiana não é elaborada para responder aos problemas de ensino, não é uma teoria que considera a complexidade das questões didáticas. A teoria piagetiana surge para responder a problemas de desenvolvimento do conhecimento científico. É epistemologia e psicologia. Isto não quer dizer que não existam aspectos muito interessantes na teoria piagetiana que nos sirvam para pensar coisas sobre a aprendizagem escolar. Esses aspectos, na minha perspectiva, estão relacionados com o entendimento do mecanismo do conhecimento. É bem diferente o processo de produção em sala de aula do processo de produção considerado por [Jean] Piaget. Além dessa transposição da teoria piagetiana, em nossa perspectiva, há uma interpretação errônea, se assim podemos dizer, sobre o que consideramos ser “concreto” na teoria piagetiana. Quando Piaget fala sobre a inteligência operatória concreta, de operações concretas, não significa que a criança deva estar tocando, vendo, pegando, para entender; não quer dizer que se tocar vai entender. Para Piaget, essas operações se referem a proposições ou afirmações que abordam uma concretude, não que necessitam ter a realidade diante de si, caso contrário as crianças não poderiam falar sobre os dinossauros, por exemplo. Não quer dizer que precisam tocar uma realidade, mas sim estabelecer proposições que falem de uma realidade concreta. O que é diferente das operações formais, que são proposições que falam das relações existentes entre elas, e não sobre o conteúdo dessas proposições. Então, de fato, as mesmas provas piagetianas, que não são comprovações de conteúdos escolares, são provas relacionadas a operações gerais da inteligência, são provas em que o material concreto não é utilizado para resolver um problema…

Avisa lá – Práticas de seriar, classificar e fazer correspondência têm sido usadas como conteúdos matemáticos principalmente na Educação Infantil. O que você acha disso?

MEQ – Isso faz parte das mesmas transposições da teoria piagetiana para as práticas educativas. Piaget havia mostrado, do ponto de vista epistemológico, o que ele chama ideia de número, que é a equivalência entre diferentes conjuntos com o mesmo cardinal. Para ele, a pessoa chega ao desenvolvimento dessa equivalência por meio de uma síntese das classificações e das seriações, das relações de classificação e das relações de ordem. Muito bem! Isso é uma aquisição do desenvolvimento individual que as crianças realizam independentemente da escola, independentemente de assistir às aulas. É uma construção que vai sendo feita a partir das interações sociais com o mundo físico e social, não necessariamente intermediadas pelo ensino. O que isso quer dizer? Há todo um leque de conhecimentos numéricos sumamente interessantes e ricos que a escola precisa ter como objeto de trabalho e que não esperam que a criança tenha adquirido as operações concretas e a conservação das quantidades discretas que seria a noção de número. As noções de classificar e seriar vão acontecer independentemente de um trabalho sistemático. Então, parece mais proveitoso trabalhar outras questões na escola, cujo desenvolvimento não será o mesmo se não forem ensinadas. Estou pensando em procedimentos ligados à contagem, ao uso de numeração oral, à numeração escrita, aos sistemas convencionais para representar os números. O que queremos dizer com isso? Durante muito tempo trabalhamos com atividades de classificação e de seriação pensando que isso era importante, que alimentava o trabalho numérico das crianças. Na verdade, mal não causa; também não alimenta o trabalho numérico. Por causa disso deixamos de fazer coisas fundamentais. Então nos perguntamos se vale a pena propor classificação, correspondência, seriação…

Avisa lá – E o uso de material estruturado, como o material dourado e o ábaco?

MEQ – Durante muito tempo foram utilizados materiais diversos para materializar os agrupamentos do sistema de numeração e para concretizar a posicionalidade, como no caso do ábaco. Bem, no caso dos materiais que representam os agrupamentos, poderíamos dizer que os representam, e não que problematizam o agrupamento. Defendemos que os conhecimentos matemáticos apareçam como respostas aos problemas. Por outro lado, hoje sabemos, com base em pesquisas de [Delia] Lerner e [Patricia] Sadovsky, que as crianças se aproximam das propriedades do sistema de numeração pelo uso e descobrimento de regularidades, e, posteriormente, vão conseguindo descobrir e compreender
as relações multiplicativas e aditivas do sistema de numeração. Já está amplamente demonstrado que as crianças, quando veem os agrupamentos, respondem às questões de maneira mecânica e que isso não amplia a compreensão do sistema de numeração, das regras de funcionamento desse sistema. Isto não quer dizer que não se possa sugerir problemas que envolvam os agrupamentos no momento de trabalhar as relações multiplicativas. Por exemplo, é possível, no Ensino Fundamental, propor problemas que envolvam agrupamentos como: em uma sacola há 153 balas e queremos formar pacotinhos com 10 balas. Quantos pacotinhos completos podemos formar? Nesse problema, os agrupamentos não estão visíveis. É preciso pensar sobre eles e colocá-los em prática para resolver o problema. Por outro lado, como se pode observar em um artigo de Delia Lerner e de Patricia Sadovsky, traduzido em português em uma compilação antiga, esses materiais, que estão de alguma maneira representando os agrupamentos, não representam a relação posicional do sistema, ou seja, os valores não dependem da posição ocupada.


María Emilia Quaranta é psicopedagoga, assessora na Diretoria de Capacitação e Diretoria de Educação Inicial da Província de Buenos Aires (Argentina), na área de Matemática. Professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e da Escola de Capacitação da Secretaria de Educação de Buenos Aires. Membro da equipe de pesquisa da Universidade de Buenos Aires Ciência e Tecnologia do projeto: “El sistema de numeración: enseñanza, aprendizaje escolar y cons trucción de conocimientos”, dirigido por Delia Lerner na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires.


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