De bichos e casas

PAULO LORENZETI¹


OBSERVAÇÃO ATENTA DO PROFESSOR TRANSFORMA CURIOSIDADE DE ALUNO EM PESQUISA QUE ARTICULA CONTEÚDOS PARA ALÉM DA ARTE


Encontrar formas mais significativas de ensinar arte sempre foi um desafio. Como fazer com que os alunos tenham uma experiência  mais profunda em arte e, ao mesmo tempo, que essa experiência possa respeitar a cultura da infância? Respeitar o universo das crianças, o lugar onde vivem, o que veem, o que ouvem, suas maneiras peculiares de se relacionar com o mundo, sua curiosidade natural para a vida, seu contato com a natureza. Há muitos caminhos para isso se considerarmos que os artistas, principalmente os contemporâneos, estabelecem algumas relações com o mundo muito próximas às relações que as crianças estabelecem. Um olhar atento, com curiosidade, invenção, imprevisibilidade, ausência de fronteiras entre as linguagens, colocando o mundo às avessas para reinventá-lo. Ao abrirmos espaços para essas formas de ser das crianças e dos artistas teremos um campo ampliado de ações potencializadoras para a aula de artes, capazes de proporcionar às crianças o desenvolvimento de suas capacidades corporais, intelectuais, afetivas e sociais.

Na Escola Estadual Professora Diva Gomes dos Santos², em uma das aulas de desenho no 2º ano, notamos uma pequena movimentação diferente que vinha do teto. Era um marimbondo solitário que construía uma “casinha” na lâmpada de nossa sala de aula. As crianças não conseguiam se concentrar nos desenhos que estavam fazendo, por causa da movimentação e da imensa curiosidade que pairava no ar. Até que um aluno perguntou:


1 Arte-educador, professor da Escola Diva Gomes dos Santos. É pós-graduado em Linguagens da arte pelo Centro Universitário Maria Antônia – Universidade de São Paulo.
2 Localizada na cidade de Mauá (SP).

– Professor, o que aquele bicho está fazendo ali?

Respondi que era um marimbondo e que estava construindo sua casa. E veio outra pergunta:
– Como ele constrói? Ele faz arte?

Disse que ele construía sobrepondo uma forma chamada de hexágono, mas ele (o marimbondo) não sabia disso. O que eu não previa é que as perguntas feitas naquele instante seriam disparadoras de um grande projeto de estudos sobre artes, que abarcou múltiplas informações de Biologia, de Ciência, de História, de Matemática, entre outras.

Forma inspira pesquisa e criações

O projeto, que mais tarde passou a se chamar “Estudo sobre casas”, aconteceu no decorrer de um ano, nas aulas de artes, sendo duas aulas de 50 minutos por semana, cujo ponto de partida foram as pequenas casas de insetos e animais presentes no ambiente escolar, casas de vespas (marimbondo e outras), aranha, caracol, caramujo e ninho de passarinho. Para cada casa encontrada desenvolvíamos uma série de atividades e pesquisas abordando diversos elementos:

♦ O estudo das formas, incluindo obras de artistas que exploravam essa determinada forma.

♦ As materialidades: de que tipo de material as casas eram feitas e como os seres humanos fizeram uso desse material para criar a arte, entre outras coisas.

♦ Aspectos construtivos: como as casas eram construídas, fazendo sempre um paralelo com a construção
das obras de arte e seus elementos visuais.

Passada a semana daquelas perguntas, elaborei alguns planos de aula para começar a explorar a casa do marimbondo e sua forma hexagonal. Primeiramente, desenhei um hexágono na lousa, demonstrando qual era a forma utilizada pelo marimbondo e como a agrupava para criar sua construção. Esclareci também a formação da palavra hexágono (seis ângulos), falando um pouco sobre a sua origem grega e da paixão dessa civilização pela Matemática. A partir daí, começamos uma série de exercícios de desenhos e pinturas utilizando essa forma, para desenvolver a percepção do equilíbrio das formas no espaço compositivo, de maneira que as crianças percebessem que não podiam desenhar as formas todas de um lado só do papel, mas que deveriam aprender a ocupar o espaço. Iniciamos algumas pesquisas com o intuito de descobrir em quais lugares e objetos encontrávamos a forma hexagonal: calçadas, bola de futebol, propagandas, carapaça da tartaruga, obras de arte.³


3 Como as da artista carioca Ana Holck, cujas esculturas foram por nós apreciadas. Site da artista: www.anaholck.com/obras/view/1/56

No decorrer das atividades, aprendemos que o material utilizado pelo marimbondo para construir sua casa era uma espécie de papel, feita a partir da mastigação de madeira velha, e as crianças ficaram muito surpresas ao saber que o papel que utilizamos também vinha de um processamento da madeira. Além das pinturas e dos desenhos, construímos dois trabalhos tridimensionais, um deles uma colmeia de rolinhos de papel higiênico que continham, dentro deles, pequenos desenhos cujo tema era sobre o que as crianças tinham de mais precioso na vida, fazendo uma referência ao mel.

A segunda construção estudada foi uma casinha de vespa, feita de barro, encontrada nas madeiras que compõem a estrutura do telhado do pá tio. A pesquisa sobre esta casa foi muito interessante porque contrastamos as formas, o material e a maneira de construí-la com o tipo de construção da casa do marimbondo. Aprendemos as diferenças entre as formas orgânicas e geométricas, comparando as casinhas, bem como uma série de imagens de obras de arte. Estudamos sobre o barro e como o ser humano faz uso dele para construir inúmeras coisas, como casas, utensílios, obras de arte etc. Ainda nesse estudo, vimos que o barro serviu de suporte para a escrita e brincamos de fazer plaquinhas de argila para escrevermos códigos inventados por nós numa tentativa de nos comunicar, fazendo com que as crianças compreendessem a função social da escrita, para além do fazer a lição na escola.

Arte como espaço de liberdade

Vale ressaltar que todo esse processo aconteceu nas aulas de artes, momento em que se pode permitir certa liberdade na construção de trabalhos mais específicos de acordo com a realidade da comunidade escolar.

A casa da aranha rendeu grande estudo sobre as linhas, suas diferentes formas – verticais, horizontais, diagonais, onduladas, fortes, fracas – e as sensações visuais delas decorrentes: sensação estática, movimento, continuidade etc. Trabalhos das artistas Edith Derdyk (São Paulo, 1955) e Louise Bougeois (França, 1911-2010), ajudaram-nos a comparar desenho e escultura. A primeira artista, com suas grandes instalações com linhas, nos motivou a criar nossa própria instalação, amarrando as árvores do jardim da escola. A segunda produziu uma escultura de uma aranha gigante, representando simbolicamente a própria mãe. Além disso, na escola, havia um menino do 3º ano, Felipe, que era fascinado por aranhas. Ele nos deu uma aula sobre a maternidade aracnídea. Na sequência, começamos a explorar a forma da espiral para desenhar as teias de aranhas, pois um dos alunos nos trouxe um DVD da série Charlie e Lola4 que demonstra como uma aranha constrói sua teia. Daí para a casa do caracol foi um passo.


4 Charlie e Lola – Meu Grande Irmão. Episódio: “Eu não gosto mesmo de aranha”.

A forma espiralada levou-nos para uma ideia visual de continuidade, de ciclo, de movimento. Conhecemos os objetos óticos do francês Marcel Du champ (França, 1882-1968) e os trabalhos de gravura da artista brasileira Anna Letycia (Rio de Janeiro, 1929). Realizamos trabalhos em pequenos e grandes formatos, com destaque para uma pintura coletiva que se caracterizou como uma intervenção no pátio da escola. Além dos trabalhos visuais, vivenciamos diversas experiências corporais, por meio de jogos e brincadeiras, associadas às formas ou aos temas que estávamos estudando. Brincamos de amarelinha no formato de caracol, interpretamos aranhas e marimbondos em jogos teatrais e musicais, numa tentativa de trazer o corpo inteiro para o aprendizado.

Depois de explorarmos todas essas pequenas casas, era importante revermos os percursos de  aprendizagem, retomando todo o conhecimento aprendido até o momento. Para isso, foram realizadas
várias ações, como a criação de uma música coletiva sobre o material utilizado na construção de uma casa e a forma como é construída, desde o marimbondo até chegar à nossa casa, a casa do ser humano. A música foi composta a partir da apresentação que eu fiz dos primeiros versos: A casa do marimbondo / é feita de madeira velha… Daí em diante a música foi sendo construída com sugestões das crianças.

Outra ação de retomada do conhecimento adquirido sobre casas foi a criação de uma composição visual que unisse todas a formas, dando origem a uma espécie de casa nova, uma casa de imaginação, uma casa da abstração. Esses desenhos serviram de base para uma pintura a guache, culminando em uma exposição intitulada “Arrumadas e misturadas: formas”, com textos, curadoria e conceitos construídos com as crianças. A apreciação das obras da artista Beatriz Milhazes (Rio de Janeiro, 1960) contribuiu muito para o desenvolvimento dessas pinturas e possibilitou discussões sobre os conceitos de arte abstrata e figurativa. Da junção das formas nasceu o personagem Marivesaracolujo. Ao perguntar para o grupo quem era o morador daquela casa tão diferente, a professora Gláucia Faria, polivalente5 da sala, sugeriu que mesclássemos as palavras marimbondo, vespa, aranha, caracol e caramujo. Marivesaracolujo, pouco a pouco em nossas conversas, foi se caracterizando como uma espécie de super-herói defensor da natureza, que nos ensinou sobre preservação e cuidados. “Ele” nos escrevia pequenas cartas sobre a importância de reutilizar papéis, de não desperdiçar a merenda, de não jogar embalagens no pátio e de cuidar das árvores do jardim da escola.

A partir dos ninhos de passarinhos, a tridimensionalidade, e consequentemente a escultura, passou a ser nosso foco. Primeiramente fizemos desenhos de observação de ninhos projetados em uma tevê. Falamos um pouco sobre a forma circular como sinal de proteção, vimos alguns logotipos com essa forma, como os de empresas de segurança, de maternidades, para que as crianças percebessem como a forma circular atuava no desenho e no conceito das empresas. Recolhemos folhas secas do pinheiro do jardim da escola (material utilizado pelos passarinhos que vivem nesse jardim) para construirmos pequenos “ninhos-esculturas”. Em uma conversa, abordamos o cuidado que os passarinhos tinham em construir seus ninhos para acolher e cuidar de seus filhotes; para complementar os nossos “ninhos-esculturas”, criamos pequenos ovos de isopor nos quais foram desenhadas coisas que as crianças gostariam de acolher e cuidar. Surgiram desenhos de pai, mãe, parentes e bens materiais, como videogames, carros, casas etc.

Conhecemos diversos artistas, bem como suas obras, e desenvolvemos uma série de esculturas estimuladas  por eles: Franz Krajcberg (Polônia/Brasil, 1921), Franz Weissman (Brasil, 1911-2005), Luiz Sacilloto (Brasil, 1924-2003) e Sandra Barreiro (Brasil, 1961). Esses dois últimos artistas são do estado de São Paulo, nossa região.

As casas

(letra e música: 2º anos)
A casa do marimbondo
é feita de madeira velha
A casa da outra vespa
é feita do barro que ela pega
A casa da aranha
tem matemática por dentro
É que ela tem oito pernas
em cada perna sete joelhos

Tem bicho
que leva a casa nas costas
E por isso pode morar
em qualquer lugar
É o caramujo,
É a tartaruga
e o jaboti
E que eu me lembre:
O caracol (col, col, col)

O nosso tatu
Se protege com um casco
com um nome (carapaça)
Ele pode morar
num buraco
que ele vai cavar
Ele gosta de morar
bem debaixo da terra
É o tatu, o nosso tatu (tu, tu, tu) 

A casa é o nosso lugar
também conhecida
como lar-doce-lar
pode ser de madeira
pode ser de tijolo
ou de qualquer cor
o importante
é não faltar amor (mor, mor, mor, mor)

Um registro artístico do processo

Concluímos essa primeira parte do estudo com a montagem do livro Estudo sobre as casas – Desenhos. O livro é composto de uma série de desenhos de todas as casas estudadas, escaneados dos cadernos dos alunos de 3 salas dos 2º anos e um CD com três músicas compostas ao longo do projeto: Rap do marimbondo, As casas e Marivesaracolujo (trava-línguas). Como foi possível fazer apenas um exemplar, o livro fica disponível para empréstimo aos alunos.


5 Pedagoga responsável por múltiplas disciplinas do currículo do Ensino Fundamental na Escola.

Rap do marimbondo

Ondo, ondo, ondo
Ei! tu viu?!
A casa desse marimbondo?

Espa, espa, espa
psiu! tu viu?
A casa dessa vespa?

Cada cômodo dessa casa
tem seis paredes iguais
são chamados de alvéolos
hexagonais

Ela não é feita não
Não é feita de papel
mas guarda um tesouro
que é o mel

Marivesaracolujo (trava-línguas)

Marivesaracolujo, Marivesaracolujo
mistura de marimbondo
vespa
aranha
caracol
e
caramujo

Parafraseando Jonh Dewey, uma experiência estética só é estética quando une cognição, afeto e vida.6 Foi esse entrelaçamento que me propus a construir nesse projeto, na tentativa de tornar o contato com a arte mais significativo para as crianças. Ter como ponto de partida a curiosidade dos alunos em relação aos elementos da natureza presentes no ambiente escolar e adentrar, a partir daí, os mais vastos conhecimentos é uma maneira de compreender que as coisas estão interligadas e que é preciso explorar esses pontos de conexão para criar um trabalho mais integrador e, ao mesmo tempo, abarcar a complexidade da relação com o conhecimento no mundo contemporâneo, que é volátil, imprevisível e desafiador. Ficamos mais próximos da arte e dos artistas, não apenas como meros espectadores, mas como quem produz arte para tentar compreender o mundo.

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas (Manoel de Barros)


6 Tendo uma experiência, de John Dewey. São Paulo: Abril, 1974 (Coleção Os Pensadores).
Posted in Revista Avisa lá #54.