Ver além dos rabiscos

Uma das competências mais importantes de um professor de educação infantil é saber observar as crianças com o suporte de um apoio teórico consistente. Neste relato, a professora conta como acompanhou atentamente os desenhos dos alunos eduardo e vitória

Nas primeiras atividades desenvolvidas com o grupo de crianças na faixa etária de quatro anos, me senti frustrada por ver apenas alguns rabiscos que para mim nada diziam. Porém, com os textos que passei a estudar, fui compreendendo o exercício do desenho. A partir daí comecei a observar as crianças individualmente e percebi que a maioria delas já modificava a garatuja e que nem todas permaneciam na mesma linha de conduta. Muitas estavam no movimento longitudinal1 desordenado e não tinham apropriação na forma de segurar o lápis, mas algumas faziam círculos soltos e já enovelavam. Vale lembrar também que todas nomeavam os desenhos. Com base no que fui aprendendo, escolhi as produções do Eduardo e da Vitória, ambos com quatro anos, para relatar a evolução dos desenhos.

No traçado de Eduardo
Ao colocar as atividades em ordem cronológica, constatei que sua primeira atividade era uma linha fluida aberta, seguida de um círculo simples. Na atividade seguinte, observei que o desenho era formado por círculos imperfeitos, o que me levou a pensar que aquela representação queria dizer algo (abaixo).
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O desempenho dele nos desenhos é cada vez mais interessante. Com a ajuda do texto da Rodha Kellog2 e seus estudos de que a escrita também se oferece como desenho para a criança, percebi que, de fato, não demorou muito para que ele começasse a inserir letras em seus trabalhos (abaixo).
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Os desenhos do Eduardo apresentam equilíbrio e regularidade, concretizando-se a seqüência dentro dos padrões de análise instituídos pela Rodha Kellog (abaixo).
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A seguir, ele passa do exercício ao símbolo, desenhando formas variadas não reconhecíveis ainda como figura humana. Ele segue preparando o caminho para diferentes imagens, mas ainda não tem uma organização destas figuras no espaço (abaixo).
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Mandalas de Vitória
Entre os desenhos do Eduardo e os da Vitória, constatei que eles passam pelas mesmas etapas, só que ela mostra-se mais expansiva, realizando círculos com linhas múltiplas e círculos superpostos Vitória entra num processo de metamorfose gráfica. Começam a aparecer no desenho linhas de voltas múltiplas, diagramas e círculos (abaixo).
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As linhas significantes no desenho dela expressam um movimento rítmico e vigoroso, demonstrando prazer no ato de desenhar (abaixo).
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Aqui o desenho nasceu de um rabisco, um círculo imperfeito. Ela continuou a rabiscar, e rabiscando descobriu que causava um efeito interessante ao agregar mandalas. O surgimento das mandalas3 no desenho de Vitória faz com que eles começassem a diferenciar-se dos desenhos do Eduardo, povoados pela escrita (abaixo).
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Ela também passa por uma fase de idas e vindas, mas hoje sei que nem todos os dias as crianças estão com o mesmo interesse ou a mesma vontade. Suas motivações mudam e também suas produções. Mas quando a inspiração volta, Vitória mostra-se preocupada com a figura representada. Percebe-se, em uma série de desenhos, o imenso e curioso caminho de expressividade que ela percorre em busca da figura.

Está pouco preocupada com o traçado de formas precisas. O modo como se dedica à ocupação do espaço (papel) com rabiscos mostra seu esforço e a percepção, mas como diz a Rodha “a tendência das crianças de fazer formas é tão forte e profunda que parece ser inato”. Sinto-me realizada por compreender agora o rico momento de exploração pelo qual ela passa, e fico curiosa para ver suas produções.

Esses desenhos continuam soltos e com diagramas, mas significam um repertório com expressão do seu pensamento, demonstrando a conquista de novas formas. Vitória também procura resolver os desafios, como é possível conferir no desenho com interferência (a partir de um recorte de revista). Ela o completou de forma tão clara e precisa que causa espanto. Observe o traçado das pernas, as roupas, a tentativa de diferenciar o rosto (masculino e feminino). Me parece que aqui podemos concordar com Rhoda, quando diz que a criança desenha “não o que viu, mas o que ela sabe das coisas”.
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Os traços básicos4
Alguns traços se confundem com outros, ou mesmo passam de um para outro. É difícil identificar estes registros isolados no trabalho da criança de 2 anos, pois geralmente eles estão misturados e sobrepostos.

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(Jucilene Leite Da Silva Oliveira, educadora do CEI Padre Pedro Ballint, bairro de Heliópolis, São Paulo/SP)

1No caso dos desenhos das crianças, o movimento longitudinal está relacionado ao comprimento dos rabiscos. Confira

2Analisis de la expresión plástica del preescolar, Rodha Kellog. Ed. Kapeluz, Buenos Aires, 1986.

3Em sânscrito, a palavra “mandala” significa círculo. As mandalas são, muitas vezes, constituídas por uma série de círculos concêntricos, cercados por um quadrado que, por sua vez, é cercado por outro círculo.

4Fonte: Analisis de la expresión plástica del preescolar, Rodha Kellog. Ed. Kapeluz, Buenos Aires, 1986.

“Todos temos talento”

Em 1954, Rhoda Kellog observou que o símbolo oriental mandala era desenhado espontaneamente por crianças de três anos no Ocidente. A partir desta descoberta, ela partiu para uma pesquisa de observação da produção infantil, levantando as suas semelhanças e classificando-as. O que ela procurou foram formas e traçados que ocorrem regular e bem claramente nos desenhos de muitas crianças (a pesquisa foi feita durante um período de 20 anos, 5 dias por semana, com crianças de várias culturas e lugares do mundo).

Com suas descobertas, esta autora nos trouxe a idéia de que praticamente todos temos um talento artístico, ou seja, a produção gráfica é inerente ao ser humano. “Rabiscos, como um registro da visão e ação de humanos jovens, oferecem um meio de discernir mais claramente o desenvolvimento da visão da criança e do processo mental, e talvez para trabalhar uma reforma na educação das crianças pequenas.”

Segundo a autora, são 20 tipos de rabiscos (formação de linhas elementares que podem ser encontradas em qualquer desenho) feitos por crianças a partir de dois anos mais ou menos. Para fazer este registro gráfico não é necessário o controle da atividade motora pela visão, mas isto pode acontecer. As combinações dos rabiscos variam. Eles são os “tijolos” da arte e uma detalhada e compreensiva visão do trabalho da criança. As crianças se lembram com facilidade de rabiscos que sugerem formas do mundo que as cercam (ovais, triângulos, círculos, troncos de árvores, lua etc.), e a evolução geral de formas na arte das crianças se mostra independente de tais observações.

(Analisis de la expresión plástica del preescolar, Rodha Kellog. Ed. Kapeluz, Buenos Aires, 1986)

Estágios da Produção Gráfica da Criança5

Estágio dos padrões (2 anos de idade ou menos)
Características: fazem rabiscos básicos e desenham alguns em padrões de colocação

Estágio das formas (2 a 3 anos de idade)
Características: fazem diagramas (formas definidas delineadas) e diagramas emergentes

Estágio do desenho (4 anos de idade)
Características: Fazem combinados (dois diagramas) e agregados (três ou mais diagramas). Durante este período a criança começa a fazer formas de linhas equilibradas denominadas sóis, mandalas e radiais.

Estágio pictórico (a partir dos 4 anos)
Características: fazem desenhos humanos, casas, construções, vegetais e outras representações.

5 Analisis de la expresión plástica del preescolar, Rodha Kellog. Ed. Kapeluz, Buenos Aires, 1986.

Ficha técnica

Responsabilidade Técnica: Instituto Avisa Lá
Apoio: Nestlé Brasil Ltda. Site: www.nestle.com.br
Parceria: União de Núcleos e Associações de Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco – UNAS – Endereço: Rua da Mina, 38 – Tel.: (11) 2272-0140. E-mail: unas@uol.com.br
Presidente: João Miranda Neto
Coordenadora dos projetos: Simone Baleeiros
Realização: Centro de Educação Infantil Padre Pedro Ballint – Endereço: Rua Japaratuba no 65 – Tel.: (11) 6168-5273 – E-mail: mariavalderlei@click21.com.br
Gerente: Maria Aparecida Ferreira Valderley
Coordenadora pedagógica: Silvana Coelho Rodrigues de Souza
Formadoras de apoio: Clélia Cortez e Silvana Augusto
Educadora: Jucilene Leite da Silva Oliveira

Para saber mais

Livros

  • “Entre o acaso e a intenção – Como a criança pode conquistar autonomia para criar”, Valéria Pimentel. In Revista Avisa lá, edição no 8, outubro /2001.
  • “Evolução do Grafismo – Desenhando a criança revela sua natureza emocional e psíquica”. In Revista do Professor no 86 – Edição de abril-junho/2006. Tel.: (51) 3731-1061.
  • Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/ SEF, 1998. Vol. 3. Disponíveis no site: www.mec.gov.br
  • Criança e desenho uma conversa para o olhar/pensar arte, Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, 1990. (Movimento de Reorientação Curricular – Doc. 4). Ed. Espaço Pedagógico.
  • Uma concepção dialética do desenho infantil, Izabel Galvão e Henri Wallon. Ed. Vozes.Tel.: (24) 2223-9000.

Sites

  • Site da Rhoda Kellogg (em Inglês) – http://www1.appstate.edu /~carpentr/Art_files/frame.htm
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