Um mundo novo para as crianças a partir da formação musical

Um trabalho voltado para a formação de ouvintes sensíveis e reflexivos e para a valorização da criação musical infantil


A educação musical no Espaço Gente Jovem Santa Clara2, localizado na zona oeste em São Paulo, tem como objetivo construir conhecimento musical por meio do fazer musical, valorizando o desenvolvimento das qualidades humanas envolvidas nesse processo. Com esse propósito, desenvolvi uma seqüência de atividades no EGJ Santa Clara, que contemplava, de forma integrada, a interpretação, a criação, a escuta e a reflexão sobre a música.

A maioria das crianças de minha turma, de 8 anos, já tinha algum contato com a música, graças ao professor do ano anterior, que lhes ensinara, entre outras coisas, um repertório vivamente relembrado pelo grupo desde o nosso primeiro encontro: Maracangalha; Canto do Povo de Um Lugar; Asa Branca, além de cantigas e brincadeiras tradicionais da cultura infantil, como Bambu Tirabu, Senhora Dona Sancha, A Casinha da Vovó, e outras.

Pela conversa inicial e pelas fitas e cadernos que pude analisar, notei que a turma já havia trabalhado com improvisos e acompanhamento musical, usando alguns instrumentos. E também com timbres, usando como forma de registro o desenho dos próprios instrumentos.

Nesse contexto, um desafio para o grupo seria aprofundar os conhecimentos específicos da música e, para tanto, planejei uma seqüência de trabalho: uma experiência de um semestre, que se iniciou com uma brincadeira rítmica e se encerrou com uma pequena composição coletiva.

As crianças puderam vivenciar todos os processos da produção musical: criação de arranjos, partitura, preparação para uma apresentação e, finalmente, execução do trabalho para um público. A seguir, relato o desenvolvimento desse trabalho, etapa a etapa, com o intuito de sugerir aos leitores desta revista algumas propostas interessantes no eixo da música. A maioria das atividades são bastante simples, do ponto de vista dos materiais que utiliza, mas muito ricas no conteúdo específico da música.

1) Tudo começou com uma brincadeira
Uma brincadeira é sempre um bom jeito de iniciar novas relações. Como estava me apresentando ao grupo, aproveitei a ocasião: propus uma brincadeira tradicional de escolha, na qual se canta o nome de cada um, escolhendo-o para ficar de costas para a roda: ”Bambu Tirabu”.

Em seguida, fiz outra brincadeira que envolvia o nome de cada criança e noções de ritmo. Era um jogo em que, sentadas em roda, cada uma aproveitava a vez para falar ritmicamente seu nome, enquanto as outras acompanhavam com os movimentos sugeridos pelo colega, batendo em partes de seu corpo: palma, perna etc.

Na continuação do jogo, além do nome próprio, as crianças tinham que cantar também o nome de quem estava à sua direita. Aos poucos, acrescentamos a esse ritmo uma melodia que era inventada na hora.

A brincadeira crescia,musicalmente: no lugar dos movimentos, das batidas do corpo, colocamos alguns instrumentos de percussão. As crianças se mostraram interessadíssimas, por isso deixei que matassem a curiosidade pelos instrumentos brincando de Sinal Verde, Sinal Vermelho: um instrumento indicava o sinal vermelho e outro indicava o sinal verde.

Quando o vermelho era tocado, todas tinham que parar de tocar; quando o verde era tocado, todas deveriam voltar a tocar. Quem avançasse o sinal saía da brincadeira. Depois desse momento, voltamos ao jogo dos nomes, dessa vez com os instrumentos: um grupo tocava enquanto os demais cantavam os nomes, ora individualmente, ora em grupo, conforme a regência.

2) Pulso e marcação
Uma outra brincadeira que trabalha com noções de pulso e marcação rítmica é Três Palmas e Quatro Pés, proposta que levei para o grupo, logo depois das apresentações. O desafio dessa brincadeira é executar a seqüência rítmica, combinando três palmas e quatro batidas de pé: quem se atrapalhasse na marcação e batesse palma na hora do pé ou vice-versa, ficaria uma rodada sem jogar.

As crianças se saíam melhor a partir da segunda rodada, porque conseguiam manter um pulso mais regular. Retomei a proposta usando andamentos, diferentes e foi bem divertido. Aproveitando o pulso comum, encontrado nessa brincadeira, propus que caminhássemos pela sala, procurando manter a mesma marcação.

Para ajudar, marquei esse pulso no instrumento de percussão: toda vez que tocasse forte, o grupo teria que mudar a direção do caminhar. Fizemos o mesmo andando de costas, descendo o corpo até nos deitarmos, elevando-o até chegarmos ao plano superior, explorando todo o espaço.

Coloquei, então, uma música para orientar nossa caminhada. Assim, organizávamos o tempo de descida e subida do corpo, experimentando outras formas. Ao final, as crianças sugeriram brincar de pega-pega ao som da música: dividimos a turma em duas partes. Na parte “A” da música, que é mais lenta, um grupo andava se espalhando pela sala, enquanto o outro ficava parado. Na parte “B”, que é mais rápida, aqueles que estavam parados teriam que tentar pegar aqueles que haviam se espalhado pela sala.

Esses, na fuga, deveriam voltar para seus lugares de origem, onde não poderiam ser pegos. Foi tão divertido para as crianças que tive de retomar em outras aulas, a pedido de todas.

3) A execução de uma seqüência rítmica
Para trabalhar a execução de uma seqüência rítmica, iniciamos um jogo, confeccionando suas peças com lápis de cor e papel: a mão desenhada representaria uma batida de palmas e o papel em branco, o silêncio. Em seguida, cada criança procurou seu par, ambas juntaram suas peças e organizaram, no chão, uma seqüência de palmas e silêncios para apresentar aos demais colegas. Foram muito criativas, procurando seqüenciar de modos diferentes.

Num segundo nível da brincadeira, juntei duas duplas que deveriam compor, dessa vez, uma seqüência com oito figuras e ainda integrar um novo elemento: a batida do pé. Na hora de reproduzir os sons, também as provoquei um pouco mais, trabalhando com a memória musical e introduzindo um jogo interessante para esse propósito: Mestre. Uma criança executa a seqüência rítmica desenhada pelos colegas quantas vezes achar necessário, até memorizá-la.

Em seguida sai da sala para que as demais modifiquem algo, alterando a posição das peças e dificultando ao máximo para que o colega adivinhe a mudança. Substituímos essas batidas de pés e mãos por outros sons corporais ou instrumentais, mantendo as pausas, que correspondiam às folhas em branco.

Nos intervalos entre uma seqüência e outra, cada criança apresentava um improviso musical.

4) A primeira composição
Aproveitei as peças do jogo utilizadas na última brincadeira e propus ao grupo que continuasse a explorar os sons corporais e vocais, tentando acompanhar músicas como Bambu Tirabu, Asa Branca e outras conhecidas de todos. A seguir, sugeri que criássemos uma partitura que nos orientasse, usando as figuras de pés, mãos e silêncios. Formei subgrupos de 4 ou 5 crianças que deveriam criar músicas e representá-las.

Cada criança escolheu um instrumento e improvisou com ele. Na montagem da partitura, elas sugeriram a execução de sons separados e outros combinados, usando para cada um figuras diferentes.

Como só tínhamos três tipos, mãos, pés e folhas em branco, as crianças usaram cores diferentes para representar sons diferentes. No final, surpreendi-me com o envolvimento de alguns grupos, que, além de criarem uma partitura, fizeram legendas ou um outro registro paralelo, indicando quando se tratava de um solo e quando os instrumentos tocariam juntos, numa complexidade muito próxima, a princípio, da partitura convencional.

Durante o trabalho, gravei em fita cassete as composições para que, ao final, pudéssemos apreciá-las e acompanhar, lendo na partitura. No momento de ouvir, as crianças se divertiram, achando engraçado, principalmente, a parte dos sons vocais. Foi um momento importante: cada uma queria reconhecer a parte que executou, o que é um bom exercício para distinguir sons, mesmo quando tocados simultaneamente.

Apresentação dos adolescentes para as crianças menores

Kláuber, Ederson e Fagner falaram e cantaram durante a gravação, mas não se tratava de desordem: percebi que o que eles queriam, de fato, era ouvir suas vozes se sobressaindo às outras. Isso me trouxe a idéia de trabalhar, mais tarde, com as vozes, criando momentos nos quais as crianças executassem alguns solos em uma composição coletiva.

5) Pesquisa Sonora e Improvisação
Avaliei que seria interessante para o grupo ampliar as possibilidades de escuta e criação de sons. Então, propus uma brincadeira muito simples: cada criança pegava uma folha de jornal e repetia com ela os gestos e ritmos que eu inventava com a minha folha de jornal, explorando as várias possibilidades sonoras do mesmo.

Iniciei com três sons diferentes e pedi que cada criança descobrisse um novo som, explorando seu jornal como quisesse, batendo no chão, no corpo, riscando o ar etc. Depois, cantamos algumas músicas já conhecidas utilizando o jornal como instrumento de acompanhamento.

Em seguida, ouvimos uma música e nos movimentamos pela sala, ainda brincando com as possibilidades sonoras daquele material tão simples. Ao final da atividade, cada criança criou uma fantasia de jornal. No desfile, todas se apresentaram com as roupas e improvisaram sons para dar pistas às demais, que tentariam adivinhar a personagem que representavam.

Essa atividade foi muito mais prazerosa do que eu imaginava. Todas quiseram levar a produção para casa para continuar brincando.

6) Mais pesquisa, criação e improvisação
A criação musical não é tarefa simples: para que uma criança seja capaz disso, é necessário investir muito na ampliação de seu repertório de sons, levá-la a pesquisar bastante e exercitar a criação. Como tinha a intenção de que as crianças criassem músicas próprias, investi nisso.

Propus, como primeira atividade, que explorassem a sala e trouxessem sons não provenientes de instrumentos musicais. Todas se envolveram e gostaram da pesquisa, empenhando-se em encontrar um som diferente.

Festa junina – Representação do Bumba-meu-boi do Maranhão

Como na sala existe um canto com máquinas de escrever, madeira, borracha e outras coisas mais, além de estante, prateleiras, panela, latas e várias janelas, as crianças tiveram muitas opções. Cada som descoberto era comparado com outros, procurando-se constatar as diferenças de timbre e de altura.

Na hora de cada uma mostrar aos colegas os sons que descobriu, sugeri que coletivamente criássemos uma pequena música para apresentar, através de uma improvisação, esses sons que havíamos pesquisado. A princípio, as crianças ficaram envergonhadas, achando que era difícil, que não seria legal, que os colegas poderiam rir.

Gustavo cantarolou algo, mas com vergonha não quis repetir. Caroline, em tom de brincadeira, achando que era uma bobagem, arriscou cantar uma frase. Juliana e Ederson, encorajados pela amiga, ajudaram a compor, criando um pedacinho a mais.

Cantamos, e, cada vez que repetíamos, uma das crianças improvisava, explorando um som diferente encontrado na sala. Gravamos, ouvimos. Foi divertido. Para encerrar, fomos descobrir no xilofone as notas que poderiam compor aquela música. Fizemos um arranjo bem simples, usando instrumentos musicais, cada um tocando uma das partes e todos improvisando no final, como havíamos feito com os objetos da sala.

Mais tarde, transcrevi para a partitura convencional. Leandro, do outro grupo, também criou uma frase que foi completada pelas rimas dos colegas que acompanhavam a mesma melodia:

Rafael: – O ferro faz um som tão bom.
Daniel: – Ferro e madeira fazem um som que cheira.
Rafael Wilson: – A borracha faz um som que racha.
Larissa: – A mesa faz um som beleza.
Vinícius: – A porta faz um som tam tam.

A composição da turma do Pedro ficou muito engraçada. Primeiro ele escolheu bater em uma lata pequena, depois em uma lata grande e, no final das contas, acabou ficando com uma panela. Mais do que depressa batucou um samba e improvisou no final: A turma gostou da combinação e entrou no embalo:

Camila: – Sobrou pra mim a lousa e a cadeira.
Jonathan: – Sobrou pra mim o ferro e a madeira.
Jeferson: – Sobrou pra mim o ferro e a lata.
Jéssica: – Sobrou pra mim a estante e a caixa.

Como a atividade foi muito interessante para as crianças, organizei-me para que todos pudessem retomar suas produções e tocar no xilofone. Também alimentei o grupo com novos referenciais, apresentando artistas como Uakti, Antúlio Madureira e outros que utilizam instrumentos e objetos sonoros não convencionais.

7) Escuta e Preparação Corporal

Ouvindo a música Concerto para Cravo – 2º Movimento, de J.S. Bach, propus às crianças a exploração de cada parte do corpo, começando pelos dedos, devagarinho, depois mãos, braços, rosto, cabeça, ombros, quadris, pernas, pés, acompanhando o lento e prazeroso andamento da música. Depois andamos pela sala integrando movimentos, usando ora partes do corpo, ora o corpo todo. Foi interessante observá-las: muitas tiveram dificuldade ou vergonha de se tocar ou de parecer ridícula diante dos amigos.

Outras não tiveram o menor constrangimento: Éderson, por exemplo, não hesitou em dizer que estava com meias diferentes e que ninguém reparasse naquilo. Em seguida, ouvimos a música Samba Quente, de Nilo Sérgio1, e pedi ao grupo que me contasse o que percebia nessa música. Santiago não explicou com palavras, mas foi até onde estavam os instrumentos e tocou dois ao mesmo tempo e depois tocou apenas um.

Representação do Auto de Natal: O baile do Deus Menino

Em música, chamamos tutti quando os instrumentos são tocados juntos e solo quando são tocados isoladamente. Propus que brincássemos com isso: quando todos os instrumentos tocassem juntos, movimentaríamos todo o corpo, quando um instrumento tocasse sozinho, movimentaríamos apenas uma parte do corpo. Fizemos, ainda, algumas variações: no tutti dançávamos sozinhos, no solo dançávamos com um amigo; no tutti nos movimentávamos, no solo fazíamos estátuas.

Percebi, nessa brincadeira, que as crianças tinham internalizado o tempo, pois poucas vezes se atrapalharam ao trocar de tutti para solo.

8) Jeitos de incrementar uma composição
A partir dos conhecimentos adquiridos na brincadeira anterior, sugeri que fizéssemos uma composição em que pudéssemos explorar o tutti e o solo. Na primeira turma, Santiago sugeriu que, quando tocássemos juntos, fizéssemos o mesmo ritmo e, quando cada um tocasse sozinho, improvisasse como quisesse.

Foi o que fizemos. O próprio Santiago sugeriu o ritmo do tutti. Houve crianças que, no improviso, usaram vários instrumentos, como se estivessem tocando uma bateria.

Aproveitando as “baterias”, propus que continuássemos a tocar e brincar, mas, dessa vez, com as composições do próprio grupo. Coloquei à disposição delas os xilofones e pus nas estantes2 as primeiras partituras criadas pelas crianças.

Curiosas, queriam ver também as partituras que eu havia transcrito. Carol ficou encantada ao ver uma música que ela havia ajudado a criar transcrita em símbolos tão diferentes. Pediu que eu a xerocasse para todos. Ficou muito tempo olhando para a partitura, cantando e relembrando as notas no xilofone. Mas, na hora de tocar, cada grupo queria seguir seu próprio registro.

Tamires sugeriu que fizéssemos música com três palmas e quatro pés. Leandro criou uma melodia e foi combinando as partes do corpo, que, ao ritmo da música, eram percutidas. Essa brincadeira durou muito tempo, com as mais variadas combinações e ritmos.

9) Arranjos e adaptações
As crianças apreciam a oportunidade de criar músicas e, quando incentivadas, usam a imaginação, compondo músicas fantásticas. Vimos isso acontecer inúmeras vezes, pois sempre tinha alguém com uma boa idéia para musicar, cantar, tocar. Luan, por exemplo, um dia trouxe um livro que encontrou na biblioteca.

Queria fazer uma música a partir dele. A história, contada em forma de poesia, facilitava a acomodação de letra e melodia. Animado, convidou os colegas, utilizando sons de colchonetes, palmas, paredes, cadeiras, como havíamos feito anteriormente.

Música feita pelas crianças da turma da manhã (8 a 10 anos)

Ensaiaram uma última vez e eu, então, gravei. O mais rico foi a utilização de sons vocais que indicavam, como dizia a letra da poesia, que a menina falava demais (blablablá), que sorria (há, há, há) etc., sons que se repetiam durante toda a história como se fosse um refrão.

“Conheço uma menina engraçada e muito bela. Mas tem um grande defeito: ela é muito tagarela”3.

Posteriormente, na hora de escutar, pedi que observassem se estava bom ou se poderíamos melhorar algo. As crianças avaliaram que não se podia ouvir o canto porque o som dos instrumentos era muito forte. Propus que tocassem mais uma vez, fazendo, então, as mudanças necessárias.

10) De onde vem a música?
Saber a origem das músicas é motivo de grande curiosidade para as crianças. É interessante ouvir o que elas pensam a respeito. Heitor, por exemplo, achava que todas as músicas eram tiradas de livros, só porque tinham criado uma música a partir de um livro.

– Será? E as músicas que nós criamos em nossas aulas? Foram tiradas de livros?
– Não! A gente tirou da imaginação. Cada um teve uma idéia e fomos encaixando.

Coloquei para tocar a música Cantiga da moça cativa, do CD O Pavão Misterioso

– Selo Eldorado, e perguntei como imaginavam que o compositor havia feito aquela música.

– Essa música possui letra e melodia. Será que ele pensou nas duas juntas? Será que ele fez cada uma separadamente?

Para responder, bastou retomar nossa própria experiência, adquirida em propostas anteriores: criando melodia e letra juntas, baseando-nos em músicas, em histórias ou personagens já existentes ou criando novos. Aproveitei para falar de outros músicos e poetas. Ouvimos algumas das poesias de Vinícius de Morais que foram musicadas.

Também conversamos sobre Villa Lobos e ouvimos algumas músicas. A mais apreciada pelo grupo foi O Trenzinho do Caipira:

– Ele imitava a chegada e partida de um trem!

Com ganzás, caxixis e reco-recos, fizemos um arranjo para a música, imitando a partida e o movimento de um trem, partindo devagar e aos poucos acelerando. Representamos o trem nos movimentando pela sala, parados, em fila, espalhados pela sala. As crianças se divertiram muito e até pediram a letra para cantar em casa.

11) Escuta atenta e nova produção
Saber avaliar as qualidades da música, dizer quando um instrumento é tocado muito alto ou muito baixo, exige da criança uma escuta atenta, que deve ser trabalhada desde cedo. Há inúmeras propostas com esse objetivo. A que eu trabalhei é apenas uma delas.

Levei para ouvir com as crianças a Sinfonia no 6 C-dur D589 – Scherzo: Presto – Piu Lento, de F. Schubert, na qual o tempo inteiro aparece o contraste entre fraco e forte. Conversamos sobre a dinâmica da música. As crianças disseram que forte é quando o som fica mais alto:

– Quando fica mais alto, parece que acorda a gente – disse uma criança.

– Se estava tranqüila, baixinha, e de repente fica forte, é como se fosse para despertar a gente, porque músicas como essa, só tocada, muitas pessoas usam para relaxar e dormir – completou a outra.

Propus que ouvíssemos novamente, criando um movimento distinto para quando ficasse forte e outro para o fraco. Continuamos nossa investigação ouvindo Samba Quente: o “forte” estava presente na hora em que todos os instrumentos tocavam juntos e o “fraco”, nos solos. Pedi que todos continuassem ouvindo com atenção, mas que, dessa vez, procurassem identificar alguns instrumentos.

– Como conseguimos perceber cada instrumento, se tocam vários ao mesmo tempo?
– perguntei.
– É que eles estão tocando igualzinho
– disse uma das crianças – é que nenhum está mais alto que o outro.

Pronto! Chegaram onde eu queria. Propus que tocássemos novamente a composição produzida na aula passada, gravamos e ouvimos. Na escuta, tentamos perceber se era possível distinguir os vários instrumentos.

Chegamos à conclusão de que alguns tocaram tão fortes que encobriram totalmente outros, tornando a música insuportável de ser ouvida. Tocamos novamente, cuidando para que todos os instrumentos pudessem ser percebidos e para que a música ficasse mais agradável. Gravamos e avaliamos novamente: dessa vez, ficou muito melhor!

12) Escultura musical
Toda música conta uma história, e as crianças precisam aprender a escutar essas histórias. Criar histórias para uma música instrumental ou musicar as que as crianças conhecem podem ser propostas interessantes. Eu escolhi, com meu grupo, escutar atentamente uma música e procurar imaginá-la. Pedi que elas se deitassem comodamente no colchonete, com os braços do lado do corpo, mantendo as palmas das mãos viradas para cima, e fechassem os olhos. Ao som da música Erkundung II, de Herman Urabl4, mantiveram-se quietas enquanto eu colocava uma pedra na mão de cada uma.

Pedi que a tocassem e imaginassem: de onde ela teria vindo? Por que estava ali? Como veio parar ali? As crianças diziam de tudo:

Kláuber: – Veio do mar. Lá havia um peixe, que a deu para um rei que a trouxe para cá.

Heitor: – Um monte de formigas fazia colheita de sementes para o gafanhoto, uma delas queria ajudar, mas atrapalhava. Havia uma princesa que gostava de uma das formigas e ajudava o gafanhoto, mas atrapalhava com suas invenções. Com suas invenções fez com que uma das sementes virasse uma pedra, que cresceu, cresceu. Essa semente era de uma árvore de 97 folhas.

Diógenes: – Essa pedra veio do coração de um homem lá de Goiás que era muito duro. Trabalhava muito para sustentar a família, pois a mulher, a mãe do filho dele, tinha morrido.

Tamires: – Veio da idade da pedra. Um homem que morava lá trouxe uma fada que deu um carro para ele.

Ângelo: – Um passarinho pegou em cima de uma árvore com seu biquinho e me deu.

Tayrine: – Eu estava numa montanha. As outras pedras eram feias. Achei só essa bonita e peguei.

Ederson: – Veio de um vulcão da América Latina. A Juliana foi até lá e o seu cabelo se queimou todo.

Érica: – Veio das pedras que construíam uma casa. Deus foi até lá, pegou-a e jogou a para cá.

Em seguida, cada criança passeou pela sala, conhecendo as pedras dos amigos e mostrando a sua para os colegas. Pedi que cada uma procurasse um par: ao som da mesma música, cada uma conduziria seu par, batendo uma pedra na outra.

Depois, cada uma criou um som vocal para a sua pedra e formamos, assim, uma escultura sonora. Eu ia apontando o dedo para a pedra e o dono dela deveria emitir o seu som. Um grupo criou algo como se fosse um acampamento com sons do fogo, rio, vento e pássaros. Outro criou sons ritmados que, no final, se transformaram num rap. Para finalizar a atividade, fizemos outras brincadeiras com pedras, relembrando algumas já conhecidas, como Monjolo e Escravos de Jó.

Propus, então, que criássemos uma música nova para fazermos brincadeiras com pedrinhas. Cada grupo teve uma idéia diferente: uma turma fez um jogo rítmico, outra combinou ritmo de palmas com canto e a batida das pedras e outras mais.

13) Apresentação final
Como estava chegando o dia marcado pelo EGJ para a apresentação das crianças, começamos a pensar em um planejamento, a fazer os últimos acertos nas composições, preparar os ensaios.

Aproveitamos todas as produções que havíamos realizado em cada um de nossos encontros e que, felizmente, estavam registradas, o que permitiu ao grupo retomá-las. Alguns dos temas foram, inclusive, fruto do trabalho integrado com outros professores do EGJ, como, por exemplo, a criação de músicas para os personagens das histórias em quadrinhos, desenvolvida pela professora Elaine Cristina.

Com ela as crianças estudavam aspectos da linguagem dos quadrinhos, características dos personagens etc. e, comigo, davam musicalidade às idéias. Assim nasceram as músicas da Magali, do Zé Carioca, Capitão América, entre outros.

Alguns arranjos foram melhorados: em uma das músicas, a turma sugeriu substituir o som dos objetos por tambores e incluir, no final, um pouco de percussão corporal, o que deu um efeito muito interessante. Na outra, as crianças resolveram colocar menos instrumentos e mais solos. E assim por diante.

Convidamos outras turmas para assistir, o que foi muito bom, pois deu ao grupo mais segurança para a apresentação final, quando haveria um público maior. Foi um trabalho tão significativo para as crianças que as músicas compostas, resultado do trabalho delas, passaram a ser cantadas por todo o EGJ.

O objetivo maior desse trabalho foi proporcionar a elas o contato com o mais variado repertório musical, criando a possibilidade de conhecerem algo diferente daquilo que é veiculado pela mídia, músicas do Brasil e de outros lugares do mundo.

Conseguimos, de uma maneira divertida e significativa para as crianças, contemplar a música em todas as suas dimensões, proporcionando o prazer de criar, de tocar, de improvisar, de pesquisar e comparar timbres, de compartilhar o aprendido com outros e – o melhor de tudo – de brincar!

(Lucilene da Silva, Professora de música)

1 CD Batucada Fantástica, os ritmistas brasileiros – selo Alpha Record –, produzido por Nilo Sérgio.

2 Tripé com suporte para apoiar a partitura com a notação musical para que o músico possa tocá-la.

3 Extraído do livro: Rafaela tagarela – Adolfo Turbay – editora Harbra.

4 O Pavão Misterioso.


Espaço Gente Jovem Santa Clara
Av. dos Remédios, 810 Vila dos Remédios CEP: 05107-001 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3625-1335 E-mail: centrocomsantaclara@ig.com.br

Posted in Revista Avisa lá #15, Tempo Didádico and tagged , , , , , , , .