Os alunos do Instituto Materno Infantil Flávio Lenzi, na Cidade de São José dos Campos, interior paulista, descobrem a poesia, transformam versos e produzem seus próprios livros, lançados e vendidos na escola
É cada vez mais comum que as crianças se interessem pela escrita. Em nossa escola procuro, como coordenadora, incentivar os professores a realizarem propostas que desafiem ainda mais esse interesse de seu grupo. Creio que, pelo caminho da autoria, podemos oferecer boas oportunidades de aprendizagem, pois, ao produzir seus textos, as crianças participam do processo de construção de conhecimento.
Desde 2003, realizamos nas salas da Educação Infantil IV (crianças com seis anos) um projeto de produção de livros escritos pelas crianças e editados com apoio da Divisão de Publicações Técnicas da Secretaria Municipal de Educação e da Gráfica da Secretaria Municipal de Educação. Sem dúvida, uma edição bonita dos textos dá ao grupo motivo de orgulho, além da possibilidade de socializá-los com mais pessoas.
A primeira edição do projeto fez tanto sucesso que o repetimos a cada ano. Desde então, a turma produz um livro que ganha lugar especial na nossa biblioteca. Em 2003: Transformando Poesias. Em 2004: Transformando as Músicas. Em 2005: Transformando Versos. Em geral, a produção do livro é feita no segundo semestre, pois as crianças estão mais competentes quanto às suas hipóteses de leitura e escrita.
Conhecer para criar
Produzir um primeiro livro não é fácil. As crianças necessitam de ajuda nesse processo, precisam conhecer muito bem o gênero textual a partir do qual vão se aventurar na escrita. Pensando desta forma, a cada ano elegemos um gênero. Escolhemos gêneros que geram textos que podem ser facilmente memorizados. Por isso, a escolha de versos, poesias e músicas. As crianças, sabendo o texto, precisam apenas se preocupar com a escrita e com um outro desafio: o da autoria compartilhada com o autor original do texto. Explico melhor: as crianças transformam textos conhecidos em versões próprias. Tal proposta nos parece muito adequada para a faixa etária. Percebo que isso dá às crianças uma sensação de competência e satisfação com o que produzem, o que é importante para quem está iniciando no campo da escrita.
Em 2005, foi escolhida a transformação de versos. Uma vez que a professora já havia proposto às crianças que transformassem textos conhecidos em textos de sua autoria, para publicá-los em um livro, pude mostrar-lhes os trabalhos realizados pelas turmas anteriores. É muito importante esta socialização, bem como a valorização da produção dos alunos. Assim que a proposta foi lançada, o grupo abraçou a idéia com muito entusiasmo. A primeira etapa do projeto é conhecer muito o gênero textual que vamos trabalhar, para que as crianças possam se familiarizar com ele, desfrutar desse tipo de linguagem, e assim desejar participar da recriação de textos já conhecidos.
Podemos também pesquisar quais os textos mais populares entre os familiares e comunidade. Temos sempre o cuidado de oferecer uma literatura de qualidade, com autores que saibam lidar com o universo infantil. Alguns textos são eleitos pelas próprias crianças, e outros pela professora. Depois de coletados os versos preferidos da rica cultura popular, eles são registrados no livro, para não cair no esquecimento. Chega então a vez de recriá-los. Essa é uma forma interessante de a criança se colocar no papel de produtor de cultura.
Propusemos, portanto, a transformação coletiva de alguns versos conhecidos. A professora torna-se a escriba de um grupo de crianças repletas de idéias. Esta atividade coletiva é um bom aquecimento para a criação posterior em grupos menores.
As quadrinhas
Propusemos a leitura e recriação de algumas quadrinhas populares. (Quadrinhas são poemas rimados em estrofes de quatro versos. Esta forma poético-literária foi muito popular em jornais e almanaques da primeira metade do século 20, servindo mesmo como um veículo de crítica e difusão cultural de idéias e ideologias). Começamos com a famosa “Batatinha quando nasce…”. Vale lembrar que, nestes famosos versos, a palavra “esparrama” popularizou-se no lugar de “espalha ramas”.
Batatinha quando nasce,
esparrama pelo chão,
menininha quando dorme,
põe a mão no coração
Logo veio a transformação feita coletivamente pelas crianças:
Moranguinho quando nasce
Esparrama pelo chão
Bebezinho quando dorme
Derruba a chupeta no chão
Depois que realizam este trabalho algumas vezes em grupo, as crianças ganham competência para fazer o mesmo com mais autonomia. É a vez de trabalharem em duplas. Cada uma delas se diverte criando novas rimas para versos já conhecidos. A criação das duplas é bastante produtiva, faz com que troquem idéias e também possam dividir os papéis. Assim, uma criança assume o papel de ditante e a outra de escriba, segundo suas competências.
Lendo poesia
O desafio é grande. Primeiro, a turma precisa escrever, de maneira legível, mesmo que sem a ortografia correta. Além do mais, há que se pensar em rimas que combinem. Quando a situação fica difícil, a dupla conta com a intervenção da turma e da professora. É um momento muito estimulante, e os colegas também podem ajudar. É importante saber que o processo de escrita, como todo processo, está em constante transformação. Saber que o autor precisa trabalhar, burilar o texto para ele se tornar mais belo.
É interessante, sempre que possível, mostrar produções de poetas e seus esboços de escritas, para acabar com a idéia de que a poesia nasce pronta. A seguir, alguns exemplos dos trechos de poemas que trabalhamos:
Tarde de autógrafos
As crianças se empolgam a cada transformação, e constatamos que há avanço significativo na evolução da escrita de todos. Os que já são alfabéticos tentam resolver suas questões ortográficas, e os que estão quase lá têm um avanço considerável. Ao final do projeto, com o livro já produzido, as crianças fazem uma tarde de autógrafos. Neste evento, elas recebem o livro que produziram e colocam à venda os demais exemplares. O dinheiro arrecadado é sempre revertido para o passeio de despedida da turma que está deixando a escola. É emocionante ver as crianças usarem a escrita para realizar um sonho.
Podemos afirmar que 95% das crianças passam para a 1ª série alfabéticas, competentes na produção de textos, na leitura e sua compreensão. Não é à toa: neste projeto e em outras propostas realizadas por nossos professores, procuramos sempre trazer o universo da escrita para a sala de aula, com toda a sua complexidade.
(Denise Moreira Da Silva Gomes, coordenadora pedagógica do Instituto Materno Infantil Flávio Lenzi, da Rede de Ensino Municipal de São José dos Campos-SP)
1Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador paulista, é autor de mais de cem livros para crianças e jovens.
2José Paulo Paes, poeta, tradutor, crítico e ensaísta. Tem 16 livros de poemas publicados, sendo sete deles dirigidos ao público infanto-juvenil.
Três tarefas Importantes
- Memorizar para quê? – Entre outros objetivos, a memorização serve para aprender a verbalizar textos escritos com suas características próprias, diferentes da versão oral. Reforça também o valor do escrito e a verbalização como jogo, entretenimento e prazer. Se o texto está bem escrito, ele educa a sensibilidade estética.
- Memorizar e escrever – A escrita de textos memorizados tem um grau menor de complexidade. E é muito útil na fase dos três a oito anos de idade. Se, ao começarem a escrever, os alunos sabem de memória o conteúdo do que vão escrever – uma canção ou poesia, por exemplo – o ato de escrever chama a atenção para os aspectos mais simples da escrita. Não é preciso pensar o que se escreve (a criança dita para si própria), mas sim em como se escreve. Ao concentrar a atenção da criança nestes aspectos, podemos trabalhar mais especificamente com a aprendizagem e as dificuldades relacionadas à análise fonética, correspondência entre o som segmentado e a grafia, dúvidas ortográficas, separação silábica, caligrafia, etc.
- Você dita, eu escrevo – A produção de textos em duplas de alunos tem demonstrado ser um excelente recurso para a aprendizagem da escrita. Partilhar as tarefas ajuda a melhorar a produção e, sem dúvida, constitui um potente modo de aprendizagem interativa. Os dois alunos compartilham o tema, o conhecimento sobre o texto, o formato, o objetivo, etc. Se um dita o texto, enquanto o outro escreve no papel, o primeiro costuma supervisionar a produção do outro, executando assim a tarefa de revisão, identificação, dúvidas e correção, enquanto o segundo se aplica nos aspectos caligráficos e ortográficos. Muitas vezes, espontaneamente, as duplas de alunos organizam a tarefa em turnos: cada um escreve uma linha, um parágrafo, etc. Intercambiam seus papéis e enriquecem sua experiência. No entanto, o professor deve estar atento à composição da dupla, para assegurar que ambos possam cooperar corretamente.
Escrever e Ler – Vol.1
Luís Maruny Curto, Maribel Ministral Morillo, Manuel Miralles Teixidó. Ed. Artmed, Porto Alegre, 2000. Págs. 129, 157 e 158.
Ficha técnica
Projeto Transformação de Versos – Instituto Materno Infantil Flávio Lenzi – Praça das Gaivotas, 535, Vila Tatetuba – São José dos Campos – SP – Tel: (12) 3912-3027 – E-mail: demsilva@uol.com.br, flavialenzi@ig.com.br
Equipe
Diretora: Ana Beatriz Garcia Machado
Coordenadora pedagógica: Denise Moreira Silva
Professora: Débora Cristina Capelo de Oliveira
Auxiliares de desenvolvimento infantil (ADIs): Liriane Christie da Silva, Fátima Aparecida Dias de Moraes e Elizete da Silva Conceição
Para saber mais
Livros
- Antologia do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo. Ed. Global. Tel.: (11) 3277-7999.
- Cantos Populares do Brasil, Sílvio Romero. Ed. Landy. Tel.: (11) 3361-8350
- Contos Tradicionais do Brasil, Câmara Cascudo. Ed. Global. Tel.: Tel.: (11) 3277-7999.
- Ler e Escrever na Escola. O real, o Possível e o Necessário, Delia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444
- Nova Antologia Poética, Mário Quintana. Editora Globo. Tel.: (11) 3362-2000.
- O Tesouro das Cantigas para Crianças, org. Ana Maria Machado, Ed. Nova Fronteira. Tel.: (21) 2131-1111.
- Rodas e Brincadeiras Cantadas, org. Jacqueline Baumgratz. Cia Cultural Bola de Meia, São José dos Campos. – Tel.:(12) 3923 2524.
Sites
- Carlos Drummond de Andrade: www.revista.agulha.nom.br/drumm.html e www.memoriaviva.com.br/drummond
- Companhia Musical Bola de Meia: www.ciabolademeia.org.br
- José Paulo Paes: www.paubrasil.com.br/paes
- Mário Quintana: www.ccmq.rs.gov.br
- Poemas e poesias: www.releituras.com
- Ricardo Azevedo: www.ricardoazevedo.com.br
- Vinícius de Moraes: www.viniciusdemoraes.com.br