Produzir um livro de autobiografias com crianças em processo de alfabetização coloca em evidência a sua competência escritora
Em 2001, coordenei um projeto didático, ou seja, uma modalidade de trabalho que tinha uma seqüência de atividades com vistas a um produto final. No caso, um livro1. Desde o início, as crianças já sabiam que iriam escrever autobiografias e se empenharam em todas as atividades para alcançar o melhor resultado. Essa é a diferença mais relevante para outras formas de organizar os saberes culturais, quer dizer, os pequenos compartilham o objetivo do estudo, sabem por que estão realizando determinadas tarefas, qual é a funcionalidade delas e, com isso, esforçam-se e envolvem-se porque atribuem sentido a elas, condição determinante para uma relação favorável com o conhecimento.
Condições didáticas
Tudo começou com o grupo mostrando o que conhecia sobre autobiografias e biografias (leia a definição abaixo) por meio do contato com livros que foram selecionados previamente. Folheando e lendo as publicações, as crianças foram reconhecendo algumas leituras já feitas. O menino Mário Gabriel definiu o gênero com base no que conhecia: “São livros que contam a vida de pessoas que já morreram. Às vezes, elas escrevem sobre sua vida antes de morrer. Falam o nome dos filhos, da mulher, o que gostavam de fazer, sobre o trabalho”. Caroline completou: “No livro do Drácula, não foi ele que escreveu. Foi outra pessoa”.
Seguimos com a leitura de personalidades da música, pintura e literatura. Com isso, os pequenos foram se familiarizando com esse tipo de texto e conhecendo um pouco da vida de Cândido Portinari2, da magnitude da obra de Mozart4, encantando-se com as férias de Monteiro Lobato5 no sítio e indignando-se com a infância de Heitor Villa-Lobos6, que tinha suas pernas amarradas pelo pai para fazer a lição. A partir desse repertório, eles prepararam um roteiro contemplando todos os assuntos que gostariam de escrever nas autobiografias: nome, local de nascimento, nomes dos pais e irmãos, o que mais gostavam de fazer na escola, as comidas preferidas e as histórias mais queridas.
Etapas bem definidas
O passo seguinte foi fazer uma biografia coletiva de alguém do grupo para experimentar a produção do que acabavam de conhecer. Depois, passaram à revisão com base na seguinte pergunta: “O que precisamos fazer para que ela fique mais bonita e mais gostosa de ler?”. Para obter a resposta, eu e a professora da turma lemos várias histórias de pessoas conhecidas, como Monteiro Lobato, Irmãos Grimm7 e Bram Stoker8. Depois, pedimos que os pequenos dissessem quais eram as palavras mais bonitas utilizadas e quais as estratégias dos autores para deixar o registro tão gostoso de ler. Chamamos essa atividade de análise de texto bem escrito. As respostas foram precisas. Rápidos e fulminantes nas escolhas, eles sabem o que faz a diferença e percebem que a linguagem escrita é diferente da falada – apenas precisam de oportunidade para pensar e dizer.
Em seguida, listaram as expressões, os conectivos e as palavras que também gostariam de utilizar, como “desde então”, “tal qual”, “predileta”, “emocionante”, “porém” e “silenciosamente”. Daí em diante, tivemos uma temporada intensa de produção, revisão e ajustes de textos. Uma cadência de tarefas embaladas por uma atmosfera colaborativa. Líamos as biografias e juntos revisávamos e definíamos uma versão aprimorada.
Diferentes ritmos
Alguns criaram e grafaram sozinhos, enquanto outros o fizeram oralmente, ou seja, ditaram para um escriba. Isso quer dizer que, de um jeito ou de outro, todos foram autores de suas histórias. Um dos imperativos da sala é a diversidade nos ritmos de aprendizagem. As crianças são diferentes e nós, educadores, as respeitamos, apresentando desafios ajustados para cada uma, cuidando para que a “música não vibre alta demais” para um corpo. A heterogeneidade faz parte da vida escolar e a nós cabe considerar e planejar boas situações para que todos aprendam.
Algumas escreveram de próprio punho, pois já grafavam alfabeticamente, mas ainda não conseguiam coordenar o registro com a necessidade de segmentar as palavras ou de pontuar, o que é natural quando estão estabilizando a compreensão sobre o sistema de escrita. Em outros casos, a produção infantil foi colocada em uma coluna e, ao lado, sua tradução. Isso é natural quando estão diante do desafio de fazer um texto e grafá-lo. Elas o fazem silabicamente, ou seja, emitem uma letra para cada sílaba.
Ênfase na autoria
Nosso objetivo não era apresentar um texto perfeito com todos os aspectos corrigidos, pois isso não seria possível naquele momento da aprendizagem dos pequenos. Alguns estavam estabilizando a escrita alfabética e tinham como desafio criar uma autobiografia, considerando as questões estéticas discutidas. O foco da reflexão deles era a autoria. As questões ortográficas, gramaticais e de pontuação foram deixadas para os anos seguintes. Naquele momento, o motivo de celebração era a capacidade criadora e a apropriação da linguagem. Considerando as necessidades de aprendizagem de todos, o projeto foi a escolha certa e precisa. O livro é uma amostra da competência escritora deles, que revelaram a cada instante a capacidade de transformar a curiosidade em trabalho intelectual.
(Beatriz Gouveia, formadora do Instituto Avisa Lá, coordenadora e consultora do Programa Além das Letras)
1O projeto foi desenvolvido pela professora Mônica Batista, com o grupo Alfa (crianças de 6 anos), na escola See-Saw/Panamby Bilingual School, em São Paulo (SP). O texto foi extraído de um relatório escrito pela autora aos pais dessa turma.
2Pintor modernista brasileiro (1903-1962).
3Compositor austríaco (1756-1791), um dos mais importantes representantes da música clássica.
4Escritor brasileiro (1882-1948), um dos mais influentes do século XX.
5Compositor brasileiro (1887-1959).
6Autores alemães que, entre 1785 e 1863, se dedicaram ao
registro de várias fábulas infantis.
7Escritor irlandês (1847-1912), bastante conhecido por ter sido o autor de Drácula, a principal obra no desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro.
História pessoal
Segundo Ana María Kaufman e María Helena Rodríguez, em Escola, Leitura e Produção de Textos (Ed. Artmed), uma narração feita por alguém sobre a vida de outra pessoa é definida como biografia. A autobiografia é quando o autor conta sobre a própria vida. Geralmente, esses textos apresentam cronologia e etapas decisivas da existência de personagens relevantes para a história. Os dados biográficos ordenam-se, em geral, progressivamente, e, já que a temporalidade é uma variável essencial em sua construção, predominam recursos lingüísticos que asseguram a conectividade temporal: advérbios, construções de valor semântico adverbial, proposições temporais etc.
A veracidade que exigem os textos de informação científica manifesta-se nas biografias por meio de citações das fontes, enquanto a ótica do autor é expressa na seleção e no modo de apresentação deles. É possível empregar a técnica de acumulação simples de informações organizadas cronologicamente ou cada um pode aparecer acompanhado pelas valorações do autor, de acordo com a importância que a eles atribui.
Projeto autobiografia
Objetivo compartilhado com as crianças (produto final): Escrever um livro de autobiografias do grupo.
Justificativa:
Criar um espaço de reflexão sobre as características da linguagem escrita e promover situações de leitura e escrita de biografias e autobiografias. A opção pelo livro como produto final se justifica por ele significar um destino real e interessante para quem executa as tarefas, o que contribui para que se esforce e se dedique em todas as etapas, e para que atribua sentido a todas as revisões necessárias antes do lançamento.
O que se quer que os pequenos aprendam:
1. Que todos podem fazer bons textos, mesmo antes de saber a grafia das palavras, desde que ditem para o professor ou para outro colega mais experiente.
2. As características específicas das biografias: tipo de linguagem usual, expressões utilizadas e apresentação da estrutura textual.
3. Alguns procedimentos de revisão (reler cada parte, verificando a articulação com o que já foi escrito e planejando o que falta escrever, fazer rascunhos etc.), com a ajuda de um educador.
4. Ações de revisão de texto bem escrito, como anotar as palavras e expressões de que mais gostou e gostaria de utilizar, destacar a forma que o autor utilizou para comunicar uma idéia ou um acontecimento, com a orientação do professor.
5. Montar um roteiro para a produção.
6. Escrever coletivamente uma biografia.
7. Revisar o próprio registro, inserindo palavras e expressões que destacou de outras leituras no contexto adequado.
8. Valorizar o trabalho em grupo.
O que se deve garantir no decorrer do trabalho:
1. Selecionar biografias e autobiografias de personalidades conhecidas da turma.
2. Incentivar a análise sobre a estrutura dos textos por meio de perguntas como: “O que sempre tem escrito neles?” e “Como eles começam e terminam?”.
3. Disponibilizar, diariamente, todas as publicações referentes ao projeto.
4. Garantir, sempre que possível, o trabalho em grupos, para que meninos e meninas sejam parceiros, colocando em jogo os saberes individuais.
5. Incluir a participação de todos a cada retomada do planejamento.
6. Favorecer as iniciativas individuais e coletivas, acolhendo as idéias e possibilitando que elas sejam postas em prática.
Etapas previstas:
1. Disponibilizar histórias de personalidades conhecidas para que a turma manuseie e leia.
2. Ler sobre a vida de pessoas conhecidas e conversar sobre as características dos textos e sobre o que os diferencia de outros.
3. Compartilhar com o grupo o objetivo do projeto.
4. Apresentar outras biografias feitas por crianças para conhecerem um modelo.
5. Escrever junto com a classe um roteiro com os aspectos que todos gostariam de abordar em suas produções.
6. Promover a escrita coletiva da história de um integrante para que os pequenos experimentem fazer o texto que está sendo estudado.
7. Propor a revisão do primeiro texto coletivo a partir da pergunta: “O que precisamos fazer para que ele fique mais bonito e mais gostoso de ler?”.
8. Ler biografias bem escritas e de personalidades conhecidas para revisão.
9. Propor que eles destaquem as palavras e expressões mais bonitas empregadas pelos autores e que gostariam de utilizar.
10. Registrar essas palavras e expressões para posterior consulta quando estiverem escrevendo.
11. Sugerir que façam a primeira versão partindo do roteiro e da lista com as palavras e expressões eleitas.
12. Colocar-se no lugar de escriba para os que não escrevem convencionalmente.
13. Promover revisões individuais e coletivas, considerando o roteiro proposto e a adequação das palavras que retiraram da lista ao contexto.
14. Propor que escrevam a segunda versão, conforme as revisões realizadas.
15. Fazer procedimentos de revisão já descritos anteriormente.
16. Realizar a terceira revisão se for necessário.
17. Elaborar sequência de desenhos de auto-retrato para ilustrar o livro.
18. Elaborar o índice e a capa.
19. Digitar as autobiografias e encadernar os exemplares.
20. Organizar o lançamento da publicação com tarde de autógrafos para os pais.
Ficha técnica
Escola See-Saw/Panamby Bilingual School – Rua: Visconde de Nacar, 86 – Real Parque – CEP.: 05685-010 – São Paulo – SP – Tel.: (11) 3758-2241 – Site: www.see-saw.com.br
Diretora: Maria Cecília Materón Botelho
Coordenadora em 2001: Beatriz Gouveia
Professora em 2001: Mônica Batista.
Para saber mais
- O Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato – Ilustrações de Paulo Borges – Ed. Globo – www.editoraglobo.com.br.
- Contos de Grimm, de Wilhelm e Jacob Grimm – Ilustrações de Elzbieta Gaudasinska – Trad. Heloísa Jahn – Ed. Companhia das Letrinhas – Tel. (11) 3707-3500.
- Contos de Fadas, de Wilhelm e Jacob Grimm – Trad. Celso M. Paciornik – Ed. Iluminuras – Tel. (11) 3031-6161.
- Escola, Leitura e Produção de Textos, de Ana María Kaufman e María Helena Rodríguez – Ed. Artmed – Tel. 0800-703-3444.