Trabalho com obras literárias permite que crianças pequenas construam conhecimentos sobre si e o entorno e façam parte do mundo contemporâneo
O filósofo e historiador holandês Johan Huizinga1 nos propõe o interessante conceito de homo ludens para pensarmos naquela propriedade que caracteriza tão bem a espécie humana e sua capacidade de tornar lúdicas as relações imediatamente perceptíveis. Para além do homo sapiens, para quem a inteligência outorgava-lhe o status de ser superior aos demais, e do homo faber, para quem o trabalho operava de modo dialético como um instrumento humanizante, para Huizinga será o conceito de homo ludens o que melhor definirá nossas capacidades humanizantes e humanizadoras.
O ludens refere-se àquilo que em nós brinca, cria sentidos, opera magias e encantamentos e, para isso, não há faixa etária específica. O ludens refere-se, pois, à capacidade de interpretar e de criar realidades. Estas últimas regidas não mais pela lógica da causalidade e da funcionalidade, mas, se preferirmos, pela lógica do absurdo, da imaginação, da representação. Uma lógica ludens opera com as mais diversas relações inúteis à vida cotidiana, o que significa afirmar que não há lógica nem serventia aparente e que são exatamente tais características que definem sua magia.
Como transpor todo esse saber para a Educação Infantil? Como propor às nossas crianças a possibilidade de aprender a se relacionar com os objetos e com as pessoas de acordo com a lógica ludens? Em uma formação realizada com a rede de creches de Juiz de Fora, em Minas Gerais, nosso foco recaiu sobre o ler e o brincar, eixos que, por excelência, possibilitam às crianças viajar por outros mundos possíveis e, assim, redimensionar as relações que estabelecem com o cotidiano mais imediato, desempenhar papéis, fazer de conta que…, experimentar modos de ser.
O contexto
Fruto de uma parceria entre o Instituto Avisa Lá, O Instituto C&A de Desenvolvimento Social e a Associação Municipal de Apoio Comunitário (AMAC), o projeto Brincar e Ler desenvolve-se há dois anos na cidade de Juiz de Fora (MG). O presente relato toma por referência o trabalho desenvolvido ao longo de 2008 em 23 creches daquele município. O processo ocorreu ao mesmo tempo em quatro frentes: com os pequenos, com os professores, com os gestores e com a equipe técnica responsável pela formação das demais. As atuações foram mediadas por vídeos gravados na sala da turma de 2 a 3 anos. Esse material foi utilizado pela formadora do Instituto Avisa Lá para tematizar o brincar na creche.
Afinando o olhar
Em um primeiro momento procuramos contribuir para tornar observável a todos os envolvidos como acontecia o brincar e o contato com os livros no cotidiano das instituições de educação. Como era o acesso dos pequenos aos brinquedos e livros? Qual a qualidade desses objetos? Como os professores intervinham? Em seguida desenvolvemos práticas desafiadoras com as crianças e trabalhamos concomitantemente com a formação dos professores, gestores e equipe técnica local a partir das situações observadas. Após elaborarmos em conjunto um diagnóstico da rede e discutirmos com as equipes locais os encaminhamentos mais produtivos, iniciamos a formação em contexto de trabalho. Isto é, ao mesmo tempo que atuávamos em um grupo referência, os demais participantes analisavam os filmes gerados na ação, refletiam, elaboravam seus projetos locais e desenvolviam suas ações.
Aprender a fazer fazendo
A primeira intervenção foi organizar uma roda com o grupo de crianças da sala de referência e ler a história do Sapo Bocarrão, de Keith Faulkner na íntegra. As crianças participaram oralmente do enredo quando provocadas no decorrer da leitura: – Eu sou o Sapo Bocarrão e como moscas! – disse o Sapo Bocarrão. – E você, passarinho, come o quê? Uma das provocações feitas às crianças foi a pergunta: “O que será que come o passarinho?”. E as crianças puderam expressar suas hipóteses:
– Arroz!
– Feijão!
– Gu (Angu).
“Então vamos ver!”. Ao saber que o passarinho comia minhocas torcidas e lesmas as crianças se divertiam. Ao avançar a leitura repetia a pergunta cada vez que o Sapo encontrava o próximo animal da história. Foi interessante notar que algumas crianças mantiveram suas hipóteses iniciais para cada animal encontrado pelo Sapo. Outras, gradativamente, se apropriavam do enredo, introduzindo um alimento preferido do animal anterior. Assim, diante de nova pergunta, repetiam:
– Arroz!
– Feijão!
E acrescentavam:
– Minhocas!
A educadora da sala e a coordenadora observavam tudo e, em seguida, nos reuníamos para analisar a ação. A leitura diária, e não apenas a contação de história, era um dos temas recorrentes dessas conversas, assim como o fato de que é possível ler uma obra na íntegra sem cair na tentação de simplificar a linguagem. Os textos literários de boa qualidade permitem estabelecer muitas relações, de modo que não comporta apenas um único entendimento. As crianças compreenderão os textos e se relacionarão com ele de acordo com suas possibilidades, interesses e preferências. Nesse momento, não cabe ao professor intervir na tentativa de garantir o que o texto quis dizer porque ele fala por si.
Apropriação das histórias
A ação formadora com todos os grupos de trabalho aconteceu mensalmente, durante oito meses. A cada encontro, escolhíamos um livro para ler na íntegra aos pequenos, para tematizar com as professoras e com a equipe técnica. Explicitávamos os critérios de seleção e o porquê das intervenções. No intervalo entre uma reunião e outra, os professores liam diariamente às suas turmas a obra eleita, bem como outras de livre escolha. Nossa intenção era ampliar o universo literário de todos. Foram lidos ao grupo os seguintes livros: Sapo Bocarrão; Grunter, a história de um porco insuportável, de Mike Jolley; A casa sonolenta; Bruxa Salomé, ambos de Audrey Wood; e Bruxa, Bruxa venha à minha festa, de Arden Druce. No 5º encontro, em setembro de 2008, com a intenção de proporcionar interrelação entre a narrativa lida e o brincar, após Bruxa, Bruxa venha à minha festa, em que todas as crianças vão fantasiadas a uma grande festa, propusemos ao grupo realizar nosso próprio festejo. Para isso, já ha víamos planejado e organizado o espaço com a professora da turma com massinha tingida de azul e forminhas de brigadeiro para enrolar os docinhos de bruxa. Eis que uma das crianças negou a proposta, assumindo a autoria por seu enredo, propondo outro tipo de faz de conta: fazer bombons de chocolate para vender no mercado. Essa é a magia do brincar: o educador planeja, propõe, organiza, mas o enredo se cria em seu acontecer, e quem o dirige são os meninos e as meninas, os seres ludens que conferem sentido à narrativa.
Diversas histórias foram lidas, e o interesse de todos pelo universo literário do prazer e da fruição foi crescendo a olhos vistos. Nesse percurso, as revistas já não eram mais oferecidas apenas como papel para ser rasgado. O trabalho com as concepções do que é ler e escrever ampliou as possibilidades de as professoras entenderem que esse material é portador textual e, como tal, caracteriza-se como importante fonte de informação e leitura. Algumas crianças já sinalizavam isso desde o primeiro encontro, quando, atentas, procuravam intencionalmente por imagens específicas – carros, batons, brincos –, “liam” seu conteúdo e interagiam entre si.
Atenção à qualidade
A seleção dos livros se baseou em critérios discutidos em nossas reuniões formativas. Na hora da escolha, o que está em jogo não é a linguagem simples, as frases curtas ou a garantia de um entendimento unívoco por parte das crianças, mas a existência de um enredo interessante e inteligente, a presença de ricas ilustrações – que também compõem o texto – e que se afastam das imagens, muitas vezes estereotipadas, que julgamos ser do agrado do público infantil – além, é claro, da presença de autoria. Isso porque sabemos que há publicações que compõem pequenas coleções que têm como intuito adaptar grandes clássicos e, quase sempre, incorrem no erro de simplificar demais a linguagem, fazer uso de ilustrações pobres e, assim, subtrair a riqueza do original.
Possibilitar aos pequenos o acesso a materiais impressos de primeira qualidade é imprescindível à formação do leitor. Não basta dar livrinhos, mas sim livros! Obras bem feitas, pensadas, cuidadas, que, em última instância, agradem a todos, pois a boa obra literária não se dirige apenas à determinada faixa etária.
Papel do educador
Nesse processo de formação conjunta, cada questão formulada pelos grupos participantes da formação nos levava a aprofundar e a ampliar a abordagem. Assim, tivemos a oportunidade de discutir em nossas reuniões mensais sobre o que quer dizer acesso aos livros e como isso se caracteriza na prática. Basta ter livros ao alcance das crianças? É apenas permitir que elas folheiem o livro com relativa liberdade?
Pensar nessa questão nos remete à reflexão sobre vários aspectos, pois o acesso envolve mais de uma instância. Passa pela possibilidade de pegar no livro, folhear suas páginas, recontar seu enredo, pelo modelo leitor que o educador oferece aos pequenos – demonstrando prazer em ler –, por um espaço que comporte a possibilidade de fazer intervenções individualizadas e também coletivas. Sabemos que a presença de publicações é importante para garantir o acesso, mas por si só não é o bastante. Nesse processo, enfatizamos a importância do professor, que ajuda a promover, a dar sentido a esse objeto à medida que ele é o elemento-pivô que medeia a relação. Essa ação é fundamental na concepção de acesso que objetivamos construir ao longo da formação. A história do educador e sua constituição como leitor são outros dois elementos que marcam o modo pelo qual se dará o acesso de suas turmas ao mundo dos livros, reconhecendo-se, portanto, que essa experiência pregressa também é parte constitutiva daquilo que aqui denominamos acesso.
Ao longo do processo de formação, procuramos favorecer o olhar das educadoras para as manifestações lúdicas, tanto durante as leituras, como nas brincadeiras. É certo que esse processo correu paralelamente em grande parte do ano, ou seja, as crianças aprenderam a brincar, a desempenhar papéis, a se fantasiar e a imaginar ao mesmo tempo que se maravilhavam com o mundo paralelo contido em cada livro de história.
Integrando ler e brincar
No 6º encontro, após uma votação, lemos ao grupo o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka. A narrativa dá voz ao Lobo Mau que, segundo sua versão, não é assim tão ruim quanto parece ou como os porquinhos nos fizeram acreditar. Os pequenos ouviram com muita atenção. Logo após a leitura, fomos aos cantos, que estavam arrumados com muitas caixas de papelão vazias. Segue o relato retirado do diário, em outubro de 2008, que revela como se deu a apropriação do espaço e de suas propostas: de início, todos pararam na casinha explorando as novas frutas de plástico e fazendo comidinhas. O canto dos livros também foi logo requisitado. As caixas, de início, não chamaram a atenção do grupo. Talvez não soubessem muito bem como brincar com elas… Eis que elas escutaram “toc, toc, toc” como se alguém batesse à porta. Pedi uma xícara de açúcar para o bolo de minha vovozinha, como na história do lobo. Foi uma boa intervenção: todos foram às caixas brincar de bater à porta e de esconder-se dentro delas. Após um tempo de exploração, as crianças se apropriaram daquele canto de diferentes maneiras: uma delas entrou numa caixa com diversos livros e ficou um tempão lendo suas histórias. Outras duas entraram numa caixa com duas bonecas e as ninavam cantando Boi da cara preta.
Houve, ainda, a Lívia e outros pequenos que queriam se cobrir com panos e fazer de conta que eram bruxas para bater nas casas das colegas. Em meio aos brinquedos novos, as caixas com os tecidos fizeram sucesso, e minha intenção foi mostrar que não são somente os objetos sofisticados que podem render boas brincadeiras. Tudo é uma questão de olhar, observar, planejar e intervir. Esse relato evidencia bem que, junto aos brinquedos novos recém-chegados às unidades, havia muitas caixas, aparentemente sem muita serventia a não ser guardar coisas. Quando transpostos à lógica do brincar, porém, eis que a magia se operou: papelões e panos de diversos tamanhos serviram de base para as histórias. Dessa vez, a narrativa literária invadiu a lógica brincante e diversos enredos coexistiram em um mesmo cenário: as bruxas assustadoras, os lobos soltos, as mamães ninando seus bebês na casinha, o canto resguardado para ler livros.
As crianças nos mostraram que, de acordo com a lógica ludens, tudo pode ser brinquedo: é o significado atribuído por aquele que brinca que outorgará aos objetos seus papéis na ação brincante. E assim que, numa mesma situação objetiva, uma caixa de papelão pode ser casinha, esconderijo, berço ou simplesmente uma caixa de papelão. O papel do educador é auxiliar os pequenos a participar, a criar e desempenhar papéis imersos em certo enredo. A articulação do universo literário com o universo brincante em Juiz de Fora foi uma bonita tentativa de operar na intersecção entre esses dois universos: o fantástico mundo do faz de conta e a poesia do mundo das palavras!
Avaliando o processo
Em nossos últimos encontros, na hora da roda de história, duas opções simultâneas foram oferecidas às crianças no intuito de possibilitar o aprendizado da escolha. “Qual narrativa gostariam de ouvir?”, perguntamos. Interessante notar que, nas primeiras tentativas, não foi nada fácil. Após uma rápida votação, aqueles que não tiveram sua história escolhida ouviam a outra com atenção e, em seguida, cobravam a leitura eleita. A saída foi ler o livro mais votado no início da tarde; o outro, ao fim do dia. A paixão foi fomentada e, nesse grupo de crianças, ficou cada vez mais explícita: a hora da história era uma grande festa! No último encontro, um dos livros lidos foi OH!, de Josse Goffin. Seu texto é puramente imagético. Não há escrita. A obra brinca com os sentidos das imagens e, portanto, toda interpretação é válida. Diante de uma imagem amarela em forma de meialua, algumas crianças diziam: “Uma banana!”, e havia quem a identificasse com uma lua. Em outra, um navio com um cachimbo na “boca”, elas rapidamente associaram-na ao seu repertório mais próximo e enunciaram: “O ‘bico’ do barco!”, fazendo referência às suas chupetas. Recontar histórias, se apropriar dos enredos é isso mesmo: projetar significados de acordo com as vivências e repertórios constitutivos de cada um.
É isso que as crianças fazem quando são convidadas a interagir com os livros, ao mesmo tempo que, a partir do contato com outros pontos de vista, ampliarão seu próprio repertório inicial. A literatura nos ajuda a entender a nós mesmos e o mundo em volta, e relativiza o próprio lugar no mundo. Isso as crianças fazem desde cedo, ao descobrir, por exemplo, que o “bico do barco” daquela imagem chama-se cachimbo. Não havia a preocupação com o certo ou errado. Os pequenos projetavam aquilo que podiam ou identificavam em determinado momento. Foi muito interessante observar o quanto a linguagem oral evoluiu nesses meses de intervenção literária. Se no início a voz das narrativas morava na boca do adulto, ao final do ano eles se tornaram protagonistas das próprias histórias, e essa troca foi riquíssima para o grupo, pois permitiu identificar muito dos repertórios social e cultural de cada um dos presentes.
Concluímos que um projeto com objetivos claros e com foco definido nos possibilitou olhar mais atentamente para os saberes que necessitavam ser construídos pelos membros da equipe como um todo (professores, gestores e equipe técnica). Nesse caso, o trabalho com a leitura e com o brincar nos mostrou que as crianças, mesmo muito pequenas, apreciam, apreendem e recontam diferentes tipos de histórias. A despeito da ideia corrente de que elas têm concentração reduzida e, por isso, participam pouco de rodas, o que observamos com o grupo de crianças de 2 anos no qual ocorreram todas as intervenções é que elas se emocionam, se concentram, antecipam o enredo da narrativa e nomeiam fatos e personagens à medida que se apropriam do enredo. Sendo assim, pensamos que os livros podem e devem habitar o cenário das creches. O contato com esse recurso literário fará com que as crianças, assim como nós, acessem outros mundos, distantes e próximos, construam conhecimentos sobre si e sobre o entorno e façam parte da cultura da escrita que compõe o mundo contemporâneo.
(Marta Picchioni, professora e formadora e Denise Nalini, formadora. Ambas são do Instituto Avisa Lá, em São Paulo)
1Johan Huizinga (1872-1945) foi um professor e historiador holandês, autor da obra Homo Ludens, escrita no ano de 1938 sobre o papel da ludicidade no processo de humanização.
Ficha técnica
Projeto Brincar e Ler
Coordenadora: Denise Nalini
Formadora: Marta Picchioni (na ocasião da formação)
Responsabilidade Técnica: Instituto Avisa Lá
Parceiro: Instituto C&A de Desenvolvimento Social
Desenvolvimento: Associação Municipal de Apoio Comunitário (AMAC)
Endereço: Rua Halfeld, 450, Juiz de Fora – MG, CEP 36070-010 – Tel.: (32) 3235-2668 / 3690-7322
Para saber mais
Livros
- Homo ludens, de Johan Huizinga. Editora Perpectiva. Tel.: (11) 3885-8388.
- A formação social da mente, de Lev S. Vygotsky. Editora Martins Fontes.Tel.: (11) 3106-9133.