Planejamento especial para quem entra e para quem sai de uma instituição educativa
Todos os anos, creches e pré-escolas recebem crianças
pequenas, nos grupos iniciais, e promovem as despedidas
das maiores que, aos 6 anos, deverão ocupar vagas na
primeira série do ensino fundamental. Estes momentos –
ingresso e saída de uma instituição de educação infantil –
marcam passagens importantes na vida das crianças, nem
sempre vividas sem alguma dor ou inquietação. Pais e educadores,
que convivem diretamente com os conflitos próprios
desta fase, são peças importantes para assegurar dias mais tranqüilos.
Mas, ainda assim, é fundamental que as instituições se organizem e
planejem para acolher e ajudar quem entra e quem sai a cada ano
A vida na escola
um planejamento para quem está chegando
Para crianças pequenas, o ingresso na educação
infantil geralmente significa a primeira
inserção num grupo social diferente da família.
Por isso, conhecer o ambiente e a rotina, espaços
e pessoas, reconhecer seus pertences e os
de seus colegas, são coisas importantes com as
quais as crianças devem se envolver quando
chegam à escola pela primeira vez. Estes saberes
tornam possíveis a diferenciação entre casa
e escola e a identificação das relações sociais
que se estabelecem em ambientes coletivos.
São estas intenções que estão por trás das
nossas propostas para os pequenos, de 1 ano,
quando chegam à escola Carlitos1; quem guia
este processo de descobertas é o projeto “A
Vida na Escola”, desenvolvido todos os anos no
Grupo 1. Planejamos nosso cotidiano para
apresentar, ao longo dos primeiros dias,
desafios que possam contribuir para que as crianças
desvendem diversos espaços, brinquedos,
pessoas e estabeleçam novos relacionamentos.
As descobertas são sempre comemoradas
em grupo, estimulando a iniciativa e a
curiosidade, fortalecendo as relações e os vínculos
afetivos com adultos, promovendo a
socialização de conquistas.
Dentre as várias propostas, destaco algumas
realizadas com minha turma, no início de 2000:
atividades que, aos poucos, ampliaram e enriqueceram
a rotina pedagógica.
Quem faz parte do meu grupo
Logo que chegavam, as crianças se dirigiam
ao lugar onde guardávamos os cartões de presença
com nomes e fotos de cada criança da
turma. Nós os utilizávamos durante as rodas,
fazendo uma espécie de chamada:
– Martina está na roda? – iniciava perguntando
ao sortear seu nome.
– Tá aqui – apontavam os amigos.
Os cartões dos presentes eram afixados,pelas próprias crianças, numa louza imantada.
Serviam para identificar as crianças e ajudar o
grupo a descobrir quem veio e quem não veio
à escola.
A famílias do meu grupo
O registro com as fotos das famílias foi um
dos recursos mais explorados e apreciados
pelas crianças, desde a apresentação das fotos
até sua preparação e finalização no mural. As
crianças identificavam com facilidade apenas
seus familiares, mas, tempos depois, percebemos
que o grupo conhecia e identificava também
as famílias dos amigos. Quando conversávamos
ou simplesmente mencionávamos o
nome de algum pai ou mãe, era comum dirigirem-
se ao mural, apontar e ainda perguntar:
– Esse?
As roupas que usamos aqui
Como parte da investigação
desse novo lugar, pesquisávamos
com as crianças, nas rodas
de conversa, as roupas que
vestimos na escola. As crianças
apontavam o uniforme dos
amigos, procurando o logotipo
presente na roupa de
todos na escola, ausente nas
roupas que usamos em casa.
O que tem em casa que não
tem na escola?
– Berço tem em casa, não na escola – constataram
logo.
A comparação de fotos trazidas de casa
com as da escola ajudou o grupo a decidir o
principal diferencial, do ponto de vista deles.
O que tem na escola que não
tem em casa?
Os passeios pela escola resultaram no conhecimento
do espaço e das pessoas da instituição,
contribuindo para a segurança e autonomia
do grupo.
Como atração de nossas caminhadas, propusemos
a pesquisa de pequenos bichos que
vivem na escola. As crianças encontraram
primeiro os peixes do aquário, depois as formigas,
tatus-bolas, minhocas, borboletas e os pássaros
no pátio. Rapidamente aprenderam os
lugares em que esses bichos se encontravam, e
a partir de então era raro o dia em que desciam
ao pátio sem procurar:
– Cadê miga? – dizia uma criança, buscando
a formiga.
– Cadê bóia? – retrucava o amigo.
A pesquisa também despertou a curiosidade
por ouvir e identificar os sons da escola: o
som dos pássaros, o ruído dos carros e dos
aviões, dados que ajudam a comparar e conhecer
a paisagem da escola Carlitos, lugar onde
vão viver um ano importante nas suas vidas.
Luly Nascimento
Projeto despedida
um planejamento para quem está saindo
Entre seis e sete anos, as crianças vivem
novamente uma transição importante: a saída
da escola de educação infantil e o ingresso na
escola de ensino fundamental. Muitas crianças
apresentam dificuldades de entender, elaborar
e expressar os sentimentos que giram em torno
dos fantasmas; encarar a primeira série numa
escola absolutamente desconhecida, na maioria
das vezes, e ainda deixar para trás os brinquedos,
os espaços e os antigos amigos, pode
parecer assustador. “O professor de educação
infantil deve considerar esse fato desde o início
do ano.” – orienta o RCNEI2. Para tanto, é
importante que ele esteja disponível e atento
para as questões e atitudes que as crianças
possam manifestar. E mais, “é interessante
fazer um ritual de despedida, marcando para
as crianças este momento de passagem com
um evento significativo. Essas ações ajudam a
desenvolver uma disposição positiva frente às
futuras mudanças demonstrando que, apesar
das perdas, há também crescimento”. Entender
o que se passa com as crianças –”manhas”,
brigas, choros e outras reações confundidas
com “malcriação”, “indisciplina” e “agressividade”
–, sem puni-las por mau comportamento,
e buscar uma saída pedagógica para planejar
uma despedida menos tortuosa, é um
grande desafio. Foi o que eu vivi como professora
do pré da escola Criarte3, no segundo
semestre de 1999.
Abrindo espaço para conversar
sobre o assunto
Era muito estranho, mas o fato é que ao
final de agosto comecei a notar que as crianças
da minha turma, que já estavam com 6 anos,
prestes a ir para a primeira série, não falavam
sobre a saída da Criarte. As mães estavam visitando
escolas para escolher aquela onde os filhos
cursariam o ensino fundamental. Algumas
crianças até participavam de vivências e testes,
mas, mesmo assim, a maioria do grupo não
tocava no assunto. Eu sondava as crianças,
puxava conversa nas rodas, pedia opiniões
sobre as mudanças que se apresentavam, perguntava
sobre o que estavam sentindo, etc.
mas elas logo desconversavam, mudavam de
assunto ou simplesmente se levantavam da
roda, preparando-se para a próxima atividade,
reclamando:
– Bia, essa roda tá muito chata!
– Já estou cansado de ficar sentado!
Dava para perceber que não queriam falar
sobre aquele assunto. Não devia ser fácil: para
a maioria das crianças a Criarte era a única
escola que conheciam, o lugar que freqüentavam
desde bebês. Insisti outros dias e de
tanto insistir as crianças começaram a trazer
seus sentimentos, verbalizando claramente o
que até então escondiam:
– Eu não quero sair da escola – disse uma
delas.
– Por que aqui não tem 1ª série? – perguntou
a outra.
– Eu não queria crescer, queria voltar pro
Grupo1! – sintetizou o menino que, diante
dos relatos dos amigos, conseguiu dizer o seu
real desejo, impossível de ser alcançado.
– Na escola que minha mãe foi visitar tem
cantina pra gente comprar lanche. Eu tô
querendo conhecer logo, mas não queria sair
daqui. Eu adoro a Criarte! – comentou a quarta
criança, que ouvia atentamente o que os
outros diziam, provavelmente reconhecendo
aqueles sentimentos, vividos também por ela.
– Nem eu! Vou estudar na escola que a
minha mãe estudou, mas acho que nenhuma
das minhas amigas vai pra lá – lamentou a
quinta criança que entrou nessa conversa.
Eu as ouvia, pensava também nas minhas
experiências de separação, até mesmo na
adaptação de meus filhos, e à medida queentendia melhor tentava ajudá-las, mostrando como era possível resolver alguns problemas:
– A amizade continua! – dizia eu – Se
cada um for para uma escola, vocês não vão
se encontrar diariamente, claro, mas, toda
vez que sentirem saudade dos amigos, podem
telefonar para conversar e combinar de se
encontrar nos finais de semana ou nas férias.
– Meu irmão continua amigo de uns
meninos que estudavam aqui no Criarte no
pré! – lembrou uma criança.
– Vocês não vão perder estes amigos.
Vão conhecer outros mais! – insistia, na tentativa
de mostrar que, sem dúvida, perderiam
algo, mas também ganhariam.
– Quando a gente vier aqui para visitar, que
nem o Armando faz, você vai deixar a gente
entrar na classe e participar da atividade?
– Vamos conversar um pouco, vou querer
saber sobre o que você está fazendo na
1ª série, mas participar da atividade junto
com as crianças do pré não vai ser possível –
disse francamente.
– Então eu venho na hora do pátio, tá? –
propôs, numa tentativa de resolver o problema
positivamente.
– Combinado!
Depois dessa conversa, notei uma maior
disponibilidade das crianças para falar sobre a
saída da escola. As visitas às novas escolas
começaram a acontecer com maior freqüência.
Os comentários nas rodas de conversa
também: as crianças conversavam sobre o
assunto diariamente, mas quase sempre se
lamentando.
Como enfrentar a mudança de
comportamento
Paralelamente a isso, notei também que os
desafios aos limites colocados por mim e os
atritos entre as crianças do grupo intensificaram-
se por essa época. Havia muito tumulto
e brigas. No auge de uma discussão, era
comum ouvir uma criança dizer ao amigo ou
mesmo para mim:
– Você é muito chata! Ainda bem que eu
vou mudar desta escola!
Conversando com a Márcia4, orientadora da
escola, resolvemos estudar o assunto e encarar
a dificuldade não como um desvio de comportamento
das crianças, mas como um problema
do grupo, a ser trabalhado por nós. Foi assim
que nasceu o ‘Projeto Despedida’.
Pensamos em atividades e momentos nos
quais o grupo pudesse falar mais sobre a saída
da escola e tudo o mais que essa separação
representava, suas expectativas e também seus
medos. Comecei a contar fatos que aconteceram
comigo quando tinha a mesma idade
delas, alguns engraçados, outros em que passei
por momentos de ansiedade.
As crianças
gostaram bastante de saber que eu passei
pelo que elas também estavam passando.
Riram ou se solidarizaram com as minhas
aflições e aproveitaram para falar sobre fatos
que aconteceram com elas.
Em outubro, na Reunião de Pais, conversamos sobre a dificuldade das crianças e pedimos
que falassem mais sobre a saída da préescola
e a entrada na escola de ensino fundamental,
que participassem de eventos que a
nova escola estivesse promovendo, contassem
também fatos de quando eram crianças, relacionados
com a escola e enfatizassem que
crescer faz parte da vida.
Para formalizar a saída, programei atividades
ligadas aos projetos do semestre, para que as
crianças pudessem deixar marcas que trariam a
lembrança delas aos que aqui ficassem e, também,
atividades cujos resultados fossem as marcas
do que elas levariam para se lembrar da
história delas nessa escola. Foram elas:
- Jogos de Memória – para as crianças do
grupo 1, 2, 3 e para eles próprios, com
desenhos feitos por todos os amigos do
pré. As crianças pesquisaram o jogo em
cada sala para saber quantas peças teriam
que fazer para cada turma, considerando os
diferentes níveis de dificuldade. - Dicas de livros infantis apreciados por elas
e resenhas – para compor o ‘Painel dos
Pais’, fixado na entrada da escola. A lista de
sugestões de leitura, elaborada pelas
crianças, foi encaminhada ao dono da
livraria mais próxima para que os pais
pudessem comprar aqueles livros para seus
filhos. - Decoração do banheiro das crianças – com
canetas de retroprojetor as crianças
desenharam lindos motivos que deram um
colorido especial àquele espaço. - Reforma e pintura da casinha de madeira –
realizada sob a coordenação da professora
Débora5, que na época pensou uma
seqüência de atividades de pintura especialmente
para decorar a casinha do parque.
Pude notar que, após realizar essas atividades
e conversar sobre a saída, as crianças
ficaram um pouco mais tranqüilas. Ao dizer ‘vai
ser diferente’, ‘vai ter muito mais lição’
mostravam-se atraídas, de alguma forma, pela
novidade que não era mais tão assustadora
quanto parecia.
Confesso que esse projeto de despedida
também foi bom para mim, pois acompanhei
as descobertas da maior parte desse grupo
desde os quatro anos de idade, e era difícil vêlos
partir. Também senti saudade. Mas fiquei
aguardando as visitas, torcendo para que continuassem
assim como são, curiosos, sempre
querendo saber o porquê de tudo.
(Beatriz Vannucchi Leme)
Para saber mais
ARTIGO
Entre adaptar-se e ser acolhido. Cisele Ortiz. avisa lá nº 2.
Sustança
DICA DE LEITURA
Quem é professor de crianças entre 4 e 6 anos e está planejando atividades
para os primeiros dias do ano, ou preparando a passagem para os primeiros dias
numa nova escola, não pode perder “A professora de desenho e outras histórias”,
de Marcelo Coelho, Cia. das Letrinhas. São cinco episódios contados por ele ao
se lembrar de sua passagem pela escola: a paixão pela bela professora de
desenho, a adaptação à nova escola, a primeira namoradinha e as festas de
aniversário, as aulas particulares para o amigo que não aprendia muito bem e o
clássico episódio “xixi nas calças”. Uma ótima dica para as rodas de leitura e um
interessante assunto para as primeiras rodas de conversa: as crianças poderão
falar sobre suas experiências, ouvir Marcelo Coelho e descobrir que os adultos
também já foram criança e passaram pelo que elas passam agora. Aproveitem!
Elefantes
Meu primeiro dia na escola foi bem ruim.
Hoje em dia as crianças não sabem direito
como é o primeiro dia em que a gente entra na
escola. Elas começam muito pequenas, com três anos estão
no maternal. Comigo foi diferente.
Eu já era meio grande.
Tinha seis anos.
Imagine. Seis
anos. Quer dizer que,
desde que eu nasci,
até ter seis anos, eu
ficava em casa. Sem fazer
nada. Brincava um pouco. Mas
meus irmãos eram muito mais velhos, e
criei o costume de brincar sozinho.
Era meio chato.
Até que chegou o dia de entrar
na escola. Minha mãe foi logo
avisando.
– Olha, Marcelo. Lá na escola,
não pode ficar falando palavra feia. Bunda, cocô, xixi.
Não usa essas palavras.
Tocaram a buzina. Era o ônibus da escola.
Eu estava de uniforme. Calça azul curta, camisa branca.
Eu tinha uma camisa branca que me dava sorte. Era
uma com uma pintinha no colarinho. Gostava daquela
pintinha preta. Mas no primeiro dia de aula justo essa
camisa tinha ido lavar. Fui com outra. Que não dava sorte.Bom, daí a aula começou, teve o recreio, eu não conhecia
ninguém, tirei um sanduíche da lancheira, o lanche
sempre ficava com um gosto de plástico por causa da
lancheira, mas eu não sabia disso ainda, porque era a
primeira vez que eu usava lancheira, então tocou o sinal e
fui de novo para a classe.
Até que deu certo no começo. A professora explicou
alguma coisa sobre os elefantes. Falou que eles tinham
dentes grandes, e que esses dentes eram muito valiosos.
Então ela perguntou:
– Alguém sabe qual o nome dos dentes do elefante?
Ou melhor, ela falou assim:
– Alguém sabe para que serve os dentes dos elefantes?
Vai ver que ela queria perguntar: “Qual o material precioso
que é tirado das presas do elefante?”.
O fato é que eu sabia a resposta e gritei:
– O marfim!
A professora me olhou muito contente. Os meus colegas
também me olharam, mas não pareciam tão contentes.
Ela brincou:
– Puxa, você está afiado, heim?
Eu não respondi mas fiquei inchado de alegria, como
se fosse um elefantizinho. Dentes afiados.Tinha sido um bom começo.
Mas aí vieram os problemas.
Fui ficando com a maior vontade de fazer xixi.
Segurei.
A professora continuava a falar sobre os elefantes.
Assunto mais louco para um primeiro dia de aula.
E a vontade de fazer xixi ia aumentando.
Cruzar as pernas não adianta nessa hora.
Olhei para um coleguinha no banco da frente. Tive inveja
dele. Ele estava ali, tranqüilo. Sem nenhum aperto. Como
é que seria estar no lugar dele? Pedir para ele, pedir emprestado
o corpo dele por algum tempo? Como alguém pode ficar
sem vontade de fazer xixi? Sem nem pensar no problema?
Eu estava ficando meio desesperado. Eu era meio tímido
também. Levantei a mão. A professora perguntou o que
eu queria.
– Posso ir no banheiro?
– Espere um pouco, tá?
Ela devia estar achando muito importante aquela
história toda de elefantes. Começou a explicar como os elefantes
bebiam água. Eles enchiam a tromba, seguravam
bem, e daí chuáá …
Levantei a mão de novo.
– Preciso ir no banheiro, professora …
Ela nem respondeu. Fez só um gesto com a mão. Para
eu esperar mais.
Na certa, ela estava pensando que, no primeiro dia de
aula, é importante não facilitar. Não dar moleza. Devia
imaginar que todo mundo inventa que quer ir ao banheiro
só para passear um pouco e não ficar ali assistindo aula.
Professora mais idiota.
Levantei a mão pela terceira vez.
Eu realmente não agüentava mais.
Só que a professora nem precisou responder.
Tinha tocado o sinal. Fim da aula.
Era só correr até o banheiro.
Levantei da carteira. A gente era obrigado a sair em fila.
Faltava pouco.
Claro que não deu.
Fiz o maior xixi. Dentro da classe.
Logo eu, que nunca fui de fazergrandes xixis. Mas aquele foi fenomenal.
Parecia um elefante. Coisa de fazer
barulho no chão. Chuáá …
A professora
chegou perto de
mim.
– Você
estava apertado?
Por
que não me avisou?
Eu não soube o
que responder. Mas
entendi algumas
coisas.
A coisa mais óbvia é que, quando você tem vontade de
fazer xixi, vai e faz. Dane-se a professora. Coisa mais idiota
é ficar pedindo para alguém
deixar a gente ir ao banheiro.
Banheiro é assunto meu.
Outra coisa é que as
pessoas, em geral, não
ligam para o
que a gente
está sentindo.
Para mim, a
vontade de fazer
xixi era a coisa mais
importante do mundo. Para a
professora, a coisa mais importante
do mundo era ficar falando
de elefantes.
É como se cada pessoa
tivesse um filme dentro da cabeça. É só prestar atenção
nesse filme. Filme dos elefantes, filme do xixi.
Mais uma coisa. Quando a gente precisa muito, a
gente tem de gritar para valer. Eu devia ter gritado:
– Professora, tenho vontade de fazer xixi.
Ou, se quisesse evitar a palavra feia:
– Professora, tenho absoluta urgência de urinar.
Não seria bonito, mas até que seria certo dizer:
– Vou dar uma mijada, pô.
Mas o pior é ficar levantando a mão e dizendo baixinho:
– Professora, posso ir no banheiro?
– Vai ver que eu estava falando tão baixo que ela nem
escutou.
As pessoas nunca escutam muito bem o que a gente diz.Uma última coisa.
Aquele xixi não teve importância nenhuma. Eu fiquei
envergonhado. Ainda mais no primeiro dia de aula. Só
que, alguns dias depois, o vexame tinha passado. Tudo
ficou normal. Tive amigos e inimigos na classe, fiz lição,
respondi chamada, e nem a professora, nem meus amigos,
nem meus inimigos, ninguém se lembrou do meu xixi.
Sabe por quê? É porque já estava passando outro filme na
cabeça deles. Cada pessoa tem outras coisas em que pensar:
a briga que os pais estão tendo, o irmão mais velho que é
chato, o presente que vai ganhar de aniversário… Só eu liguei
de verdade para o caso do xixi. As outras pessoas estão sempre
tratando de assuntos mais sérios. Elefantes, por exemplo.(Coelho, Marcelo. A professora de desenho e outras
histórias. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995.
Tel.: (0XX11) 826-1822 – Fax (0XX11) 826-5523.
e.mail: coltras@mtecnetsp.com.br)