O despertar do olhar e da escuta

Diálogo entre música de vanguarda e arte visual contemporânea favorece a experiência de fruir arte pelas crianças pequenas

A prática educativa deve instigar, provocar, levar à reflexão e, sobretudo, abrir portas para a compreensão da arte que se produz hoje, pois ela caminha na contramão do que a mídia oferece. Deve, portanto, buscar novas estratégias para aproximar essas produções artísticas da realidade infantil. É desse princípio que partimos ao desenvolver um trabalho de artes com criança.

Produção das crianças da Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo – SP

Produção das crianças da Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo – SP

Esse percurso apresentado aqui é parte do projeto “O despertar do olhar e da escuta…”, que realizamos desde 2009 na Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA1), com crianças de cinco e seis anos. Essa experiência surge da integração das linguagens musical e visual, que é uma prática nessa escola em que as artes são apresentadas de forma integrada para as crianças. Nosso planejamento de 2009 surgiu como uma proposta para aproximar as crianças da arte contemporânea e da música de vanguarda e, desde então, investimos nesse trabalho.

O objetivo é proporcionar tempo e espaço para a criação nas duas linguagens, além de levar as crianças ao processo de fruição da arte contemporânea e da música de vanguarda.1

Esse trabalho encontra-se fundamentado na chamada “segunda geração de educadores musicais”. Os educadores musicais desse período alinham-se às propostas da música nova e buscam incorporar à prática da educação musical nas escolas os mesmos procedimentos dos compositores de vanguarda, privilegiando a criação, a escuta ativa, a ênfase no som e em suas características, e evitando a reprodução vocal e instrumental do que denominam “música do passado”.

Em artes visuais, a arte contemporânea é resultado de um longo processo de quebras de paradigmas que surgem no cenário da arte internacional e que acontecem de maneira acentuada a partir da década de 1950. Em linhas gerais, esse percurso desemboca nas ideias da arte como processo que expande o suporte e o objeto artístico para muito além do plano bidimensional ou tridimensional. O objeto artístico torna-se híbrido e passa a permear os espaços. Os artistas passam a ter como palavra de ordem: libertação de regras e da tradição.

O recorte escolhido foi desenvolvido em um conjunto de dez encontros de duas horas cada um. O projeto todo durou cinco meses. Conversa sonora e construção com sons Durante as primeiras aulas do projeto, oferecemos às crianças diversos materiais do cotidiano, para que elas experimentassem diferentes maneiras de exploração sonora sem a condução do professor, que agia como mediador de uma “conversa sonora” feita com tampas de panela, escadas, um ventilador, canecas, conduítes, banquinhos e a mesa da sala de aula, potes de plástico, latinhas de metal, colheres de pau, baldes, entre tantos outros.

Durante o processo, uma criança de cada vez experimentava o objeto e as demais escutavam. O envolvimento foi muito grande e elas ficaram muito motivadas em realizar a brincadeira com sons. Houve uma sincronicidade entre fazer som e silenciar, o que gerou uma construção sonora com texturas e timbres muito variados.

Em seguida, foi proposta a ideia da construção com sons. O que direcionava a sequência sonora em grupo era a escuta ativa, na qual as crianças, sem a regência do professor, iniciavam o som do objeto que haviam escolhido previamente e também o silenciavam.

Depois disso, foram convidadas a criar uma composição tridimensional coletiva com esses mesmos objetos. Foi pensado para esse momento do trabalho um primeiro espaço, contendo as mesas da sala de aula, formadas por duas portas montadas com cavaletes. Propusemos a seguinte dinâmica:

uma criança de cada vez observava e escolhia um dos objetos e o posicionava sobre as mesas, da maneira que lhe parecesse mais interessante para iniciar a construção coletiva, enquanto o grupo observava o processo. Depois de todos terem participado do processo chegou o momento de ver, de fato, o que se criou e lapidar o que havia sido construído.

Perguntamos para o grupo quem gostaria de fazer alterações, e as crianças que tinham interesse em modificar os elementos do lugar assim o fizeram. Essa intervenção já é praticada no grupo de seis anos e é uma experiência nova para os de cinco anos. Nos dois grupos, as crianças aceitaram tranquilamente todo o processo. Estavam bastante empolgadas com o que estavam produzindo.

Quando decidimos que o trabalho estava pronto foi o momento de observar e conversar com o grupo. Nesse instante, os pequenos perceberam que a construção poderia ser observada por todos os lados e em diversos ângulos. Introduzimos as primeiras noções que diferem a modelagem (adição de material) da escultura (subtração de material) e da construção tridimensional (acrescentar e organizar
materiais diversos).

Espaço construído
Num segundo momento, a dinâmica foi invertida: partimos da construção para, em seguida, explorá-la musicalmente. O exercício da construção aconteceu em um espaço ampliado, o chão da sala toda. As crianças tinham praticamente seis metros quadrados para criar. Repetimos o processo de observação, de escolha e de construção. Os banquinhos, para nossa surpresa, eram empilhados até o máximo de seu equilíbrio. A brincadeira era organizar os elementos até que este atingisse seu limite.

Uma vez pronta a construção, as crianças, em dupla, buscavam a sonoridade dos objetos com as mãos e, às vezes, com baquetas de instrumentos de percussão. Descobriam, assim, diferentes timbres e iniciavam um processo de improvisação musical.

Nesse dia, finalizamos nossas experiências, com a proposta de registrar, por meio do desenho, o espaço construído a partir da observação. Percebemos que algumas crianças fizeram o desenho reproduzindo a obra o mais próximo do real, outras desenharam a partir da imaginação. Banquinhos, mesa e sucatas transformaram-se em castelos, reinos, espaçonaves e mundos estranhos, envoltos numa trilha sonora colorida.

Para esse momento, nós escolhemos obras de artistas que utilizavam em sua poética de trabalho esse mesmo processo criativo vivenciado pelas crianças. A primeira apreciação musical foi com a obra Living Room do compositor John Cage, na versão do grupo suíço We spoke.

Seguindo a linha de exploração dos objetos do cotidiano, as crianças trouxeram seus brinquedos eletrônicos para a sessão de improvisação musical. As sequências sonoras eram encadeamentos de varinhas mágicas, dinossauros, carrinhos e videogames.

Nesse dia, utilizamos o microfone e o som pôde ser amplificado. Gravamos e comentamos a composição musical do grupo. Dessa vez, a apreciação musical foi da obra Parcours de l’Entité do compositor brasileiro Flo Menezes, que trabalha com sons eletrônicos como matéria-prima. A obra escolhida permitiu um diálogo com o som da obra de Flo Menezes e os sons que as crianças produziam em seus brinquedos.

Em artes visuais, apreciamos alguns trabalhos do artista norte-americano Richard Serra, que utiliza verbos, ações e construções em sua poética.

Paisagem sonora: uma relação entre o som e a visualidade
O trabalho seguiu com a exploração sonora e visual do parque onde está situada a escola. Fundamentado no trabalho de Raymond Murray Schafer (1933-), músico canadense, autor do livro O ouvido pensante4, o despertar da escuta atenta ao mundo é uma forma de encontrar as qualidades do som no cotidiano. Ao conjunto de sons encontrados num espaço e tempo determinados ele denominou “paisagem sonora”. A partir daí o estudo do som se faz com o material encontrado no dia a dia. Parte do princípio de que o som não é só proveniente de instrumentos musicais, e que se pode compor com esses sons não convencionais.

As crianças caminharam pelo parque com o objetivo de perceber a “paisagem sonora”. Depois do passeio, nós fizemos uma roda e as crianças falaram sobre os sons que mais gostaram, os que as irritaram e desenharam a respeito de suas percepções.

Um desdobramento desse trabalho é refletir sobre os sons que nos desagradam no dia a dia e, a partir daí, conversarmos sobre a poluição sonora. De que maneira ela está presente em nossa vida, será que é só no trânsito? Tentamos identificar com as crianças como é a paisagem sonora da sua casa, da escola, do passeio, e elas relataram o quanto existe de poluição sonora nesses lugares. E perguntamos: Como é possível melhorar essa paisagem sonora e torná-la menos poluída?

As sugestões das crianças foram as mais variadas: falar mais baixo, abaixar o volume da TV e até tirar os “barulhinhos” do computador. Ainda na esteira dos pensamentos dos materiais de uso comum, tivemos a ideia de embalar o parque com papel alumínio e filme de PVC.

foto: Sheila Christina Ortega

foto: Sheila Christina Ortega

O material foi providenciado pelos pais e fizemos uma excursão até o parquinho de brinquedos e embrulhamos quase tudo! Esse empacotamento gerou espaços transparentes proporcionados pelo material, resultando planos para o desenho que foi feito em seguida: as crianças receberam canetas permanentes e registraram o contorno de tudo o que viam naquele espaço. Esse processo foi recuperado em sala de aula quando empacotamos o mobiliário da sala e nele desenhamos.

Com o intuito de ampliar a bagagem visual das crianças, apresentamos o conjunto de obras do artista norte-americano Christo (1935-), que embala arquiteturas e espaços naturais como ilhas, monumentos e pontes. E também a artista brasileira Regina Silveira (1939-), que se apropria de espaços urbanos e arquiteturas em seus trabalhos.

Pensamos que todo o percurso vivenciado pelas crianças, aqui exposto, seja o pilar que aproxima a produção infantil da arte contemporânea. Aproximar a criança da visualidade contemporânea faz parte do processo de construir o “alfabeto visual” desse indivíduo. Ele se tornará um leitor da produção visual da atualidade, um leitor crítico, que sempre terá algo a dizer. As crianças vivenciaram um rico movimento de pesquisa e de experimentação, e as produções estéticas aconteceram no desenrolar desse percurso. Estar sempre junto, educador e aprendiz, nesse processo dinâmico é a atitude que nós, ar tistas-educa doras, acreditamos legitimar o fazer desse trabalho e é a prin cipal contribuição que queremos deixar registrada. Com partilhar. E relembrando as palavras do crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981): Arte é o exercício experimental da liberdade.

( Liliana Maria Bertolini, musicista, professora de musicalização e de flauta transversal na Escola Municipal de Iniciação Artística – EMIA -, em São Paulo-SP, formadora de professores da rede municipal de ensino do programa “A rede em rede: a formação continuada na Educação Infantil” da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo – SMESP. Atua como flautista e pianista dos grupos AUM e Chorando por aí. Sheila Christina Ortega, artista plástica e mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp. Atua como arte-educadora na EMIA, como formadora de professores do programa “A rede em rede: a formação continuada na Educação Infantil” da SMESP e como docente no Centro Universitário Metropolitano de São Paulo – FIG-Unimesp)

1Música, teatro, dança e artes visuais.

2Ideia relacionada a diversas teorias de apreciação estética para o processo de leitura da obra (conferir os trabalhos de Robert Ott, Michael Parsons, Ana Mae Barbosa, Abigail Housen, Fernando Hernández).

3Música de vanguarda é um termo genérico utilizado para agrupar as tendências da música erudita surgidas após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Fora desse âmbito, refere-se a qualquer obra que utilize técnicas de expressão inovadoras e radicalmente diferentes do que tradicionalmente é feito, assumindo, logo, um caráter quase exclusivamente experimental. Devido às variadas vertentes que perfazem o vanguardismo, torna-se difícil, se não impossível, analisá-lo plenamente, sendo necessário acompanhar o desenvolvimento de cada escola individualmente. Entre os estilos englobados pela música de vanguarda estão o serialismo integral, a musique concrète, o minimalismo, a música eletrônica, a música pontilhista, a música aleatória e a música microtonal. São comuns também misturas entre esses estilos, gerando composições, por vezes, inclassificáveis em uma única tendência, que engloba técnicas da música concreta e da música eletrônica.

4Publicado pela Editora Unesp, 1991.

John Cage

John Cage (1912-1992) surgiu no cenário musical norte-americano na década de 1950. Seu envolvimento com o Zen Budismo e as demais formas de pensamento oriental influenciaram fortemente sua produção musical. Trouxe a presença do silêncio enfaticamente em seu trabalho, assim como a utilização de objetos inusitados para as suas construções musicais.

A obra escolhida é executada com os objetos disponíveis numa sala de estar, como móveis, jornal, a cafeteira, um aquário, uma mesa de jogo, entre outros, e, nessa versão, os músicos fazem uma apresentação cênica.

Flo Menezes

Flo Menezes (1962-) é um compositor brasileiro que vive na cidade de São Paulo e desenvolve um importante trabalho com a música eletrônica. Criador do Studio PANaroma, seu estúdio situado na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) é um laboratório composto de equipamentos que lhe permitem gerar novos sons a partir de programas de computador e utilizar esse material em suas composições. Professor e diretor do departamento de Música da Unesp, Flo Menezes realiza performances com suas composições no auditório da Universidade que atualmente contém 37 caixas acústicas espalhadas por todo o auditório (palco e plateia).

Richard Serra

Richard Serra (1939-) desenvolve sua pesquisa plástica com diversos materiais industriais como a borracha, o aço e o chumbo. Participa do cenário internacional desde 1960, junto aos artistas que pesquisam a desconstrução e o minimalismo. Busca relacionar a obra com o espaço público por meio de trabalhos desenvolvidos em grandes dimensões, mudando a percepção que o fruidor pode ter do local no qual a obra foi instalada.

Regina Silveira e Javacheff Christo

Regina Silveira (Porto Alegre, 1939) participou de diversas bienais internacionais, entre elas a Bienal de São Paulo (1983,1998), a Bienal do Mercosul (2001, 2011) e a 6a Bienal de Taipei (2006). Em sua obra há diversos materiais (vídeos, gravuras, pinturas e objetos), e ela discute e pesquisa exaustivamente as ilusões sobre a representação. http://reginasilveira.com/

Javacheff Christo nasceu em Gabrovo, na Bulgária, mudou-se para Nova Iorque (Estados Unidos da América) em 1964 onde se tornou cidadão americano. O artista convida o espectador a perceber, de maneira diferente, o que é por ele embalado. Muitas vezes embala lugares que gostaria de sinalizar, que passavam despercebidos. A ideia de revestir objetos facilmente identificáveis com uma nova pele aproxima-se da prática de transformação de objetos familiares bastante difundida pelos novos realistas na década de 1960. O principal eixo que norteia o trabalho do artista é a vontade de esconder e de transformar objetos presentes no imaginário do público.

Ficha Técnica

  • EMIA – Escola Municipal de Iniciação Artística
    Endereço: Rua Volkswagen, s/no. CEP: 04344-020 – São Paulo – SP
    Tel.:5017-7552/5016-0179
    Site: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/iniciacao_artistica/
    Diretora: Márcia Soares de Andrade
    E-mails: liliana.bertolini@yahoo.com.br / sheila.ortega@uol.com.br

Para saber mais

Livros

  • A música da cultura Infantil, de Lydia Hortélio. In: VI curso de educação musical, de Z. Kodály. São Paulo, 1998.
  • Caminhos metodológicos, de Maria Cristina de S. Rizzi. In: Ana Mae Barbosa (org). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2003.
  • Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical, de Teca Alencar Brito. São Paulo: Peirópolis, 2001.
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