Mergulho na Bienal

Instalações favorecem o contato prazeroso com materiais e o fazer artístico das crianças

Este artigo é a continuidade da série especial sobre a relação da criança e de professoras com espaços de Arte, como museus e exposições, iniciada na edição anterior da Revista avisa lá. Nesta oportunidade, o destaque vai para o artista Ernesto Neto1, com foco na formação de professoras. O primeiro trabalho publicado2 destacou a obra de Cildo Meireles3. Apenas para lembrar, a trilogia se encerra com Nelson Leirner4, em novembro deste ano.

Foco na formação
As atividades artísticas na escola são planejadas e elaboradas pelas professoras e desenvolvidas com as crianças das diversas turmas de Educação Infantil. Não existe, na instituição, o modelo de professor especialista em Artes Visuais, com aula específica em um ateliê. Há, inclusive, um ateliê na escola, que fica aberto permanentemente para que as professoras e as turmas o utilizem na hora de “fazer arte”. Tal princípio baseia-se na valorização da Arte como área de conhecimento, que pode ser apropriada pelos sujeitos que se debruçarem sobre ela, seja apreciando ou produzindo Arte. Ela se transforma, assim, em importante ferramenta educativa, atuando diretamente na dimensão sensível e estética das crianças, e criando novas e inusitadas possibilidades de expressão.

Para que esse movimento se constitua em transformação e crescimento, ele necessita ser alimentado e desafiado permanentemente. Para fazê-lo, ninguém melhor do que as professoras que acompanham os pequenos todos os dias, durante o ano letivo, tornando-se partícipes nesse processo de desenvolvimento e de aprendizagem. Contudo, esse modelo de ensino de Arte adotado na escola de manda cuidado e investimento permanente em seu grupo de professoras.

Montagem com as produções feitas pelas crianças da Escola Alfa – SP

Montagem com as produções feitas pelas crianças da Escola Alfa – SP

A formação das professoras na escola tem sido um dos principais alvos de ação da equipe gestora, pois, conforme consta em seu projeto pedagógico como pressuposto, a natureza da formação dos docentes é garantia de educação de qualidade. Assim, a escola desenvolve ações de formação voltadas às diversas áreas do conhecimento e, no caso deste relato, daremos destaque às ações que visam instrumentalizar o trabalho com Artes Visuais.

O desenvolvimento artístico dos profissionais da escola ocorre pelo contato direto com a assessora de Arte, que promove reuniões mensais com as professoras de cada faixa etária e, quando necessário, oferece cursos e oficinas para o ensino de técnica e de teorias, além de organizar visitas a exposições seguidas de discussão e de reflexão sobre a experiência. A cada novo projeto, é necessário, no momento de seu planejamento, uma imersão das professoras no universo artístico que será explorado, de modo que possam vivenciar as emoções, os conhecimentos, as dúvidas, formular questionamentos e, principalmente, se apropriarem do que será trabalhado.

No início de cada ano, a assessora, as coordenadoras pedagógicas e as professoras retomam a avaliação do trabalho desenvolvido no ano anterior e, com base nessa avaliação, elegem com o grupo os eixos que serão priorizados ao longo de cada semestre do ano seguinte e os possíveis projetos a serem desenvolvidos. A partir das linhas estabelecidas pelo coletivo da escola, a assessora passa a construir com as professoras de cada turma o projeto que será desenvolvido, tomando-se por base o cronograma detalhado de atividades que serão realizadas com os pequenos.

A presença das coordenadoras pedagógicas, nesses momentos, é fundamental para fixar a Arte como um importante pilar da ação pedagógica da escola, e também para alinhavar a visão geral de criança, oferecendo informações sobre as características de desenvolvimento de cada faixa etária, suas necessidades e suas potencialidades. Especificamente para o projeto “Nosso terreiro”, do qual esse relato faz parte, uma pasta de cada artista ficou disponível para a equipe docente. Ela continha um texto do histórico da vida do artista, reproduções plastificadas das imagens de suas principais obras, fotografias e ilustrações da figura humana real de cada um, vídeo (quando existia), livros oficiais e catálogos de exposições. Esse material foi fundamental para que cada professora estudasse os nomes que seriam apresentados para suas turmas, o que proporcionou mais envolvimento com a ação pedagógica.

Escolha dos artistas
Cada artista trabalhado ao longo do projeto apresenta características próprias em suas produções e possui fazeres artísticos distintos. Contudo, a diversidade de produção foi um dos critérios norteadores das escolhas. No caso de Ernesto Neto, além das características de suas obras favorecerem contato prazeroso para as crianças pelo manuseio de materiais concretos e extremamente atraentes, também oferecem a possibilidade de construir e desconstruir, fazer de diferentes modos, lidar com materialidades externas, empreendendo esforços para superar o desafio de manipular materiais elásticos, como uma meia de náilon, para inserir outro material qualquer e repetir tal ação inúmeras vezes, enfrentando o desafio de permanecer na mesma ação até conseguir ver o produto de seu esforço – uma pequena bola, uma forma oval…

Essa possibilidade de manuseio, de envolvimento, de exploração dos sentidos, de vivência de situações tão similares às do cotidiano, cria uma situação social de desenvolvimento. Isto favorece a aprendizagem e o acesso da criança a novos modos de se expressar e a inéditos patamares de possibilidades de ação. É essa articulação entre os aspectos constituintes do sujeito, suas características e suas necessidades em cada momento da vida e as materialidades acessadas nas obras de cada artista que, se por um lado, constitui-se em princípio e guia de nossas ações, por outro, parece responsável pelos resultados positivos observados a cada novo projeto.

Atividades de formação para as professoras
Na primeira semana, houve a apresentação do artista. As professoras assistiram a um vídeo sobre o primeiro trabalho dele e, depois, participaram de uma atividade proposta pela assessora de Arte. Como Ernesto Neto utiliza tecidos elásticos em muitos trabalhos, a proposta inicial foi pedir a cada criança que levasse para a escola uma meia-calça de náilon. O objetivo era preenchê-la com diversos tipos de material (pedras, algodão, espuma, bolinhas de isopor, penas, tecidos coloridos etc.) e dar nós ou amarrar com barbante, lã, fios e fitas. Após esse momento individual, a professora, em atividade coletiva e por meio de sorteio, teria de propor a montagem de uma instalação permanente na sala com todos os trabalhos, que poderia ficar suspensa, apoiada ou pregada na parede.

Na segunda semana, cada profissional foi orientada a devolver a produção realizada na semana anterior para as crianças de sua turma, desenvolvendo uma proposta específica para seu grupo, modificando o suporte original. Essa nova ação podia ser coletiva ou individual. Houve pintura com tinta sobre a instalação coletiva, suspensão de uma forma de tecido transparente cheia de objetos significativos para a turma, inclusão de aromas (canela, anis, flores de camomila etc.), amarrações com fitas, costura de guizos e sinos, entre outras. Nessa etapa, as professoras tiveram acompanhamento bem próximo da assessora, de modo que puderam esclarecer dúvidas e, principalmente, foram auxiliadas a superar medos e desafios, atingindo novos patamares na proposição e orientação do pensar e fazer Arte.

Na escola e na Bienal
As atividades desenvolvidas, inspiradas no trabalho de Ernesto Neto, tiveram grande impacto no dia a dia da escola durante todo o semestre, visto a atratividade exercida pelas produções infantis. As instalações pensadas, inicialmente, apenas para a contemplação, passaram a ser buscadas pelos pequenos nos horários livres e de recreio, que queriam interagir com as esculturas, tocando-as, apertando-as, revelando o aspecto lúdico daquele contato.

Esse movimento demonstrou como uma criação se transforma tão logo se objetiva em uma nova obra. Essa transformação só foi possível porque seus criadores – no caso, as crianças – tiveram liberdade para se apropriar de suas criações, conferindo a elas novos significados e sentidos.

O mesmo ocorreu com as professoras, que passaram a ver naquele trabalho mais uma possibilidade de exploração. Essa relação que as crianças estabeleceram com a instalação foi surpreendente e bem aceita pelas professoras, que permitiram o livre uso do espaço, mesmo causando danos e destruição, pois a escultura se transformou em uma peça orgânica, com vida, que cresce, diminui, ganha novas formas e pode desaparecer.

Montagem com as produções feitas pelas crianças da Escola Alfa – SP

Montagem com as produções feitas pelas crianças da Escola Alfa – SP

A importância e o destaque dado a Ernesto Neto pela Bienal foram fundamentais para o sucesso da visita. Como na escola ele marcou todo o processo, as crianças criaram grande expectativa quando souberam que iriam ao local onde havia uma obra dele. Algumas até questionaram se Ernesto Neto morava na Bienal, pois elas queriam vê-lo pessoalmente. No dia da visita, cada criança recebeu um colar de barbante com uma imagem plastificada que estabelecia alguma relação com a exposição. Podia ser uma foto de um dos artistas estudados, uma obra vista por eles ou fotos dos trabalhos dos pequenos realizados na escola. Foi uma maneira de aproximá-los entre si, pois cada um queria saber sobre o colar do outro e, principalmente, criou-se um elo com todo o trabalho realizado.

A instalação da Bienal realizada por Ernesto Neto – o espaço de convívio do terreiro Lembrança e esquecimento – serviu como momento de pausa e de diversão. Ao se aproximarem da grande tenda montada, todos se sentiram automaticamente atraídos e saíram correndo para penetrar os colchões expostos e pular ou deitar neles. O ato de tirar o sapato liberou as crianças para soltarem o corpo. Os cheiros do espaço convidavam a desvendá-lo. Foi, sem dúvida, um momento mágico para elas.

Em outro momento, os pais foram convidados para visitar a escola não só para apreciar o que havia sido produzido pelos filhos, mas também para participar de algumas atividades. Essa é mais uma preocupação da escola: estender o conhecimento produzido na escola para a comunidade.

No dia do encerramento do projeto, o terreiro do artista continuou a encantar a todos. Pais e filhos permaneceram por horas enchendo meias, dando nós, amarrando tecidos e transformando o pátio coberto da escola em outra instalação do artista. A obra resultante foi algo parecido com uma teia de aranha. Nós, idealizadoras do projeto, sentimo-nos abrigadas e acolhidas entre tantos sorrisos de satisfação, e com a sensação de fazermos parte daquela teia que nos protege, nos liga ao mundo e nos liberta, porque ela pode ser desmontada e refeita de outras formas e por outros motivos.

(Carla Gorga Guimarães, coordenadora pedagógica, Cecília Pereira de Almeida Assumpção, diretora e Fernanda Assumpção, assessora de arte. Todas da Escola ALFA, em São Paulo – SP)

1Ernesto Neto (Rio de Janeiro, 1964) expande a prática da escultura utilizando-se, na maior parte das vezes, de tecidos com elasticidade, de temperos e de isopor como principais materiais, e da força da gravidade como elemento determinante. A interação física é outro aspecto fundamental de seu trabalho.

2O artigo Nosso terreiro, de Fernanda Assumpção, foi publicado na seção SUSTANÇA, da Revista avisa lá, no 46 – Maio de 2011.

3Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948) é um artista multimídia. Sua apresentação está publicada na seção SUSTANÇA, da Revista avisa lá, no 46 – Maio de 2011.

4Nelson Leirner (São Paulo, 1932) é considerado um artista polêmico. Sua apresentação está publicada na seção SUSTANÇA, da Revista avisa lá, no 46 – Maio de 2011.

Ficha Técnica

  • Escola ALFA
    Endereço: Rua dos Macunis, 333 – Alto de Pinheiros. CEP: 05444-000. São Paulo – SP
    Tel.: (11) 3031-8656/3819-4567
    E-mail: alfa@escolaalfa.com
    Site: www.escolaalfa.com
    Diretora pedagógica: Cecília Pereira de Almeida Assumpção
    E-mail: cecilia@escolaalfa.com
    Diretora administrativa: Sandra Opice
    Assessora institucional: Vera Trevisan de Souza
    Coordenadora: Carla Gorga Guimarães
    Assessora de Arte: Fernanda Assumpção
    E-mail: paraafe@hotmail.com
Riqueza de materiais e de experiências (foto: Fernanda Assumpção)

Riqueza de materiais e de experiências (foto: Fernanda Assumpção)

Entrevista com Rosa Iavelberg1

Revista avisa lá – Considerando que o professor de Educação Infantil é polivalente e que nem toda escola tem um especialista em Artes Visuais, como é possível realizar um bom trabalho com as crianças?
Rosa Iavelberg –
Como hoje se considera que, desde a Educação Infantil, a criança faz arte com base no seu fazer, no fazer de seus pares e no acesso que tem à produção social artística, são necessários, aos professores, saberes sobre aprendizagem em Arte e sobre Arte.

Revista avisa lá – Qual a importância da articulação entre o fazer artístico, a apreciação e a reflexão para a prática do professor em Artes Visuais?
Rosa Iavelberg –
Os três eixos da aprendizagem em Arte mencionados anteriormente devem ser promovidos em sala de aula e vivenciados na formação e no cotidiano dos professores para que a Arte se integre aos seus interesses e hábitos. Para o aluno, a aprendizagem nos três eixos é complexa, embora mais completa, porque ele assimila o que artistas e profissionais da área praticam na sociedade.

Revista avisa lá – A relação entre a escola e as instituições artístico-culturais é fundamental tanto para a ampliação cultural dos professores como das crianças e de suas aprendizagens. No entanto, o que fazer quando a cidade não tem uma instituição desse tipo?
Rosa Iavelberg –
Pode-se visitar feiras e ateliês de artistas, olarias, oficinas de artesãos e convidar artistas para conversar com as crianças nas escolas. Muitas visitas podem ser realizadas virtualmente, se houver recursos para isso.

Revista avisa lá – Há professores que têm dificuldades para planejar atividades para as crianças baseadas na Arte Contemporânea. Por que isso acontece?
Rosa Iavelberg –
A Arte Contemporânea causa estranhamento por sua própria intencionalidade. O público que a desconhece costuma não reconhecer as produções contemporâneas como Arte. Vários professores podem não ter familiaridade com esse recorte da história da Arte. É o desconhecimento que os afasta do desejo de planejar ações com a produção contemporânea.

Revista avisa lá – Por que é interessante que haja diversidade de experimentações e de projetos em Artes Visuais propostos pelos professores das diferentes turmas em uma mesma escola?
Rosa Iavelberg –
A diversidade é sempre interessante para quem aprende. Se as turmas forem da mesma faixa etária, por exemplo, e os resultados puderem ser comparados em sua diversidade pelas crianças, isso também se configura como boa situação de aprendizagem.

Revista avisa lá – Por que as obras de instalações artísticas envolvem e fascinam tanto as crianças pequenas?
Rosa Iavelberg –
Porque elas podem agir. A ação é o meio mais poderoso de aprendizagem em Arte na Educação Infantil. Ação e pensamento não se dissociam, mas a ação física é fundamental.

1 Professora de Arte da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e coordenadora do Curso de Especialização em Linguagens da Arte no Centro Universitário Maria Antônia, da Universidade de São Paulo, ambos em São Paulo – SP.

Ernesto Neto: as formas orgânicas e a interação com o corpo

Na obra de Ernesto Neto, o espectador é convidado a participar ativamente, tocando, cheirando ou adentrando o espaço da escultura. As formas orgânicas relacionam-se com a observação do corpo como representação da paisagem interna do organismo, ou em uma analogia entre o corpo e a arquitetura.

Suas esculturas são compostas por elementos em tecidos de lycra, algodão e poliamida, recheados com bolinhas de chumbo, polipropileno, especiarias, miçangas, espuma, ervas, entre outros. Inúmeras vezes, a união entre esses elementos cria grandes redes, chamadas pelo artista de colônias. A mistura de materiais inusitados com a utilização de tensão, força, resistência e equilíbrio é o que aguça a curiosidade de quem aprecia a obra. A arte de Ernesto Neto é uma experiência que gera associações com o corpo e com algo orgânico. Ele descreve sua obra como uma exploração e uma representação da paisagem interna do organismo.

Em algumas obras, os amontoados de temperos são dispostos no chão enquanto as extremidades dos tubos de tecido são presas ao teto, gerando a verticalidade das esculturas e a interação com o espaço expositivo. As esculturas apresentam alusões ao corpo humano, no tecido que se assemelha à epiderme e nas formas sinuosas que se estabelecem no espaço.

Para Saber Mais

  • Catálogo da 29a Bienal de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar, de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos (orgs.). Fundação Bienal de São Paulo. Tel.: (11) 5576-7611. E-mail: educativo@fbsp.org.br
  • A formação social da mente, de Lev Vigotsky. Editora Martins Fontes. Tel.: (11) 3106-9133. E-mail: livraria@martinseditora.com.br. Site: www.livrariamartinseditora.com.br
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