Leitura pelo professor – Um projeto para conhecer e apreciar histórias

Com o objetivo de mudar a prática de contar histórias para as crianças, uma escola de São José dos Campos (SP) usou o tempo destinado às reuniões pedagógicas e desenvolveu um trabalho muito bem-sucedido
Pierre Auguste Renoir (1841-1919) - A Leitora acervo Museu do Louvre, Paris

Pierre Auguste Renoir (1841-1919) – A Leitora acervo Museu do Louvre, Paris

A hora da história em nossas escolas não era bem aproveitada. Contávamos histórias para preencher os buracos que havia em nosso tempo didático, mas não tínhamos objetivos específicos e clareza da importância deste trabalho como prática de leitura. Por outro lado, sabíamos que a leitura muitas vezes não era compartilhada em casa pelos pais e familiares das crianças, o que reforçava nosso papel. Ler é direito de todos e a escola tem que fazer diferença é a que propicia às crianças o exercercício desse direito.

O saber prévio dos professores
Para iniciar o projeto fiz um levantamento das dúvidas que os professores tinham sobre ler histórias para crianças. Pude perceber que, apesar de conhecerem variados recursos para contar histórias, não faziam uso deles em sua prática. Também não tinham interiorizado o ato da leitura, dificultando o papel de bom modelo. Por fim, não faziam uso de um ambiente propício para a leitura de histórias. Resumindo, não entendiam que a leitura precede a escrita, por isso era comum contarem histórias só para acalmar a sala, preencher o tempo vazio. Atividade muitas vezes deixada para o último momento, caso sobrasse tempo. O interessante nesse tipo de levantamento é que muitas das ações que queria ajudar a transformar apareceram em forma de perguntas. Isso foi importante para tomarmos pé da realidade, permitindo-nos construir propostas com objetivos que podiam ser compartilhados. A partir daí, elaborei um projeto para orientar meu trabalho com os professores, utilizando estratégias significativas para aproveitar bem nosso H.T.C.1.

Primeira proposta de tematização da prática Uma importante estratégia formativa utilizada por nós foi a tematização da prática: filmamos algumas rodas de história desenvolvidas pelas professoras de nosso próprio grupo para depois discutir, nas nossas reuniões, com toda a equipe. A primeira vez foi muito difícil. Como fiquei insegura! Tive muito receio de não orientar o momento com coerência, o que poderia comprometer a estratégia.

Assisti ao vídeo da professora com antecedência, discuti sobre ele com meu grupo de formação de orientadores pedagógicos e levei-o para a reunião com as professoras. O desenvolvimento das nossas reflexões se deu no coletivo o tempo todo. Houve muito tato e respeito na hora da discussão.

A primeira questão colocava o fato de a professora estar sempre sentada na cadeirinha durante a leitura, enquanto as crianças se sentavam no chão. Algumas das professoras explicaram que isso facilitava a visualização das ilustrações. Outras disseram nunca ter pensado a respeito:
“Como pode! A gente faz as coisas e não percebe os fatos acontecendo na nossa frente!”, comentou uma delas.
Já a professora Fátima disse que se sentia incomodada com a situação das crianças estarem em nível diferente do dela. Por isso, as crianças de sua turma sentavam-se em cadeirinhas, como ela.

Como conclusão, chegamos ao consenso de que as crianças podem acompanhar a história olhando as ilustrações uma a uma, mas também é interessante mostrar as figuras só no final. Para isso é preciso combinar com as crianças e fazer valer este contrato.

O que não devemos fazer com as crianças
Dias depois, num outro H.T.C., planejei uma boa leitura para as professoras. Escolhi textos de uma antologia de Machado de Assis,
partindo do pressuposto de que a leitura a ser partilhada com elas
deveria atender ao princípio de apresentar algo de que eu própria
gostasse muito. A primeira crônica foi A Igreja do Diabo. Achei que ia abafar! Que engano! Foi um fiasco. Quando terminei a leitura, notei as feições das professoras. Parecia que não haviam entendido nada! E eu, tão entretida que estava, entre as vozes diferenciadas de cada personagem e o vocabulário complexo do autor, nem percebi como estava o meu “público”. E o pior: quando me dei conta da situação, sabe o que eu fiz? Perguntei o que elas haviam entendido do texto e, em seguida, completei a história! É isso justamente o que não deve ser feito com as crianças! Foi tão inesperado que eu mesma fiquei sem jeito e caímos todas na risada, já que não dava para chorar. Que lição! Como é difícil a transposição da teoria para a prática.

Posso dizer que senti na pele, pois, quando nos vemos perdidas em uma
situação, a primeira coisa que fazemos é recorrer a conceitos que nos deixam mais seguras e com os pés no chão. Agora sim, como devemos ler para as crianças Num outro dia, tematizamos as atividades das professoras Beth, Regina e Cláudia. Após assistirem aos vídeos, as professoras foram divididas em dois grupos com a proposta de refletirem sobre as questões. Depois cada grupo expôs suas conclusões. Observando a roda de histórias com as crianças, pensamos em nós mesmos como leitores. Foi interessante notar que nós, adultos, muitas vezes deixamos passar despercebidas palavras desconhecidas, pois podemos entendê-las dentro de um contexto. Então, por que deveríamos explicar as palavras difíceis para as crianças, como víamos no vídeo? Se elas se interessarem vão perguntar. Não vão deixar de entender a história por causa de algumas palavras.

Quanto à postura do professor, ficou ainda mais claro o que já sabíamos: é importante que ele seja um bom modelo pois na hora de contar suas histórias as crianças reproduzem suas atitudes. Tiramos conclusões como: “quando estivermos lendo, devemos ser fieis à escrita, caso contrário, é preferível contar, pois podemos passar uma idéia equivocada do que é ler. Contar é diferente de ler.”

Pude perceber, ao final, como mexemos com tantas questões em tão pouco tempo, graças à tematização de atividades gravadas. O olhar voltado para a prática é sem dúvida a melhor estratégia para a transformação. Combinei, por fim, a montagem de uma biblioteca circulante formada por livros trazidos por todos nós. Seriam escolhidos a dedo, ou porque gostamos muito ou porque nos marcaram em alguma época. Quem quisesse ler um daqueles títulos poderia emprestar para levar para casa.

A escolha e a preparação da leitura
Achei que deveria repensar o repertório para aprofundar nossa discussão. A leitura dos textos do livro Bobeiras e Gostosuras da Fanny Abramovich, que se referia à importância das histórias, veio a calhar, esclarecendo muitas das dúvidas que tínhamos, como por exemplo a importância de o livro ser lido antes de apresentá-lo às crianças. Os professores já tinham vivenciado situações desagradáveis, como começar uma leitura e perceber tarde demais que lhe faltava o final da história.

O ponto em que o texto foi bastante crítico é o que dizia respeito
ao fato de o professor poder contar todo tipo de histórias para crianças menores, caindo por terra a idéia de que para elas precisamos escolher histórias curtas. Criar uma atmosfera de envolvimento e encantamento também apareceu como um ponto fundamental para propiciar o clima a ser compartilhado entre professora e alunos.

Leitura de textos literários e técnicos
Continuando as sessões de leitura, apresentei a crônica Onde já se viu? do livro Olhos de Ver da Tatiana Belinky, onde ela retrata uma passagem sua com uma criança de rua que entra na livraria em que ela está e lhe pede para comprar um livro. Desta vez acertei! As professoras entraram na história! Posso dizer que estou realizada com a parte de leitura em meu horário de estudo, principalmente por estar sentindo a emoção e o envolvimento das professoras. Em contrapartida, a leitura do texto Interpretação, Intérpretes e Interpretantes, de Emília Ferreiro, foi de extrema dificuldade para o grupo todo. Quando chegou nas terminologias que deram origem ao título, foi uma polêmica só. Depois de muito diálogo, chegamos a um consenso: entendemos por interpretação aquilo que o sujeito faz ao ler. Quando faz para outra pessoa, como fazemos para as crianças, passa a ser interpretante. Este texto nos trouxe uma afirmação coerente e interessante, que coloca a linguagem que se fala não como uma forma deformada da escrita, mas como um dos aspectos da linguagem.

O texto de Isabel Solel A leitura na escola, lido num outro encontro de H.T.C., foi muito agradável. Quando chegamos no ponto em que ela fala dos analfabetos funcionais, nos lembramos do texto Interpretação, Intérpretes e Interpretantes, pois foi exatamente como nos sentimos quando o lemos. Em continuação aos textos de Isabel Solé, abordamos os tipos de textos que existem e para que serve cada um. Não tínhamos clareza das diferenças, por isso nossas intervenções nem sempre respondiam à especificidade dos textos. Veio à baila principalmente a situação do trabalho com poemas. Nos perguntamos como podemos, por exemplo, pedir que alguém explique o que um poeta quis dizer? Poesia se aprecia ou se explica? Deu para clarear!

Sistematização de conhecimentos
Passamos por mudanças pessoais e profissionais nesse período. Principalmente quanto à valorização dos livros e mudança da disposição dos mesmos em sala de aula, de forma a favorecer o manuseio pelas crianças. Também decidimos incluir e valorizar a roda de história como atividade permanente porque entendemos que, se a leitura precede a escrita, esta deve ser uma prática diária, com objetivos claros e definidos dentro do planejamento do professor.

Todas essas transformações ocorreram porque o grupo estava aberto para que acontecessem, havendo um envolvimento muito grande de todos.Talvez até pelo fato do recorte ser tão fascinante. Ao final de nossas discussões pudemos retornar a nossas dúvidas iniciais. Obtivemos um bom levantamento, que resume o que pudemos aprender sobre rodas de leitura (leia texto abaixo).

Finalização do projeto
Como encerramento do nosso projeto de trabalho com histórias fomos a uma grande livraria.A proposta era que cada professor escolhesse um livro para a escola comprar. Foi uma vivência especial colocarmos em prática o muito do que aprendemos nesse período, apesar de ter-se tornado torturante podermos escolher apenas um único livro.

1Horário de trabalho coletivo

(Emelisa Monteiro, Orientadora pedagógica da região 5 da
Secretaria Municipal de Educação de São José dos Campos)

Eugenio Zampighi (1859-1944) - Itália - Livro de Imagens Josef Mensing Gallery, Hamm-Rhynern

Eugenio Zampighi (1859-1944) – Itália – Livro de Imagens Josef Mensing Gallery, Hamm-Rhynern

As crianças e os livros

  • Realidade e fantasia fazem parte do universo infantil, e propiciar momentos em que as crianças os vivenciem dentro da escola é papel do educador.
  • A criança vai saber diferenciar os dois mundos com o passar do tempo.O que não podemos é tirar a fantasia do mundo da criança, porque a realidade ela já tem.
  • Ao ler histórias ajudamos a ampliar o vocabulário, a imaginação, abrimos as portas do mundo e mostramos que através da leitura podemos conhecer o universo. O principal é que possamos apresentar a leitura como um prazer a ser desfrutado por todos nós.

Regularidade da leitura para crianças

  • A hora da história deve ser uma atividade permanente em sala de aula, visto o que podemos alcançar quando temos os objetivos claros.
  • A hora da história deve acontecer coletivamente ou em pequenos grupos, quando o professor for solicitado para isso.

Seleção de livros

  • Para analisar uma história devemos usar todo o tempo disponível, bem como abrir um espaço no H.T.C. para essa atividade.
  • Devemos ser criteriosos na escolha dos livros para leitura, verificando o conteúdo, os valores que são passados, bem como as ilustrações que o acompanham, e principalmente gostar do que se vai ler para as crianças.
  • Para comprar livros devemos levar em conta todos esses critérios.

Leitura pelo Professor

  • A leitura deve ser fiel ao texto escrito, não devemos fazer simplificações ou misturar ler com contar histórias. A criança deve aprender que a escrita é permanente: toda vez que o professor ler aquele livro, o estará fazendo com as mesmas palavras, o que não acontece quando se conta uma história.
  • Conhecer o autor e o ilustrador do texto é muito importante e deve acontecer sempre, porque além da valorização profissional a criança passa a identificar e conhecer o estilo de determinados autores.
  • No que se refere a mostrar as figuras antes ou após a leitura é um contrato a ser feito com as crianças, no qual o mais importante é respeitá-las, pois as duas maneiras atingem objetivos específicos.
  • Não devemos ter olhos para uma única interpretação possível de uma história, pois as crianças podem ter um olhar diferente. Este olhar não deve ser interpretado como equivocado.
  • As crianças devem ter a liberdade, caso não queiram ouvir a história, de desenvolver outra atividade. A obrigatoriedade corresponde à mesma situação de ler um livro de que não se gosta.
  • Não precisamos explicar o significado das palavras para as crianças, a não ser que elas perguntem, pois a criança entende dentro de um contexto, e as palavras que achamos ser difíceis para elas passam a fazer parte de seu vocabulário interno.

Quando sentamos para ouvir uma história dias atrás, houve a proposta que partiu deles para que, ao invés da professora, um deles contasse a história. Achei uma proposta válida. Quando alguma criança se prontifica a contar, tem a liberdade de fazê-lo para o grupo. Nos momentos livres também, as crianças se reúnem em grupo de três ou quatro e uma conta a história. Estas propostas, na minha opinião, surgiram pela maneira como venho trabalhando a hora da história, com mais freqüência e mais prazer.
Ao escolher um livro de história para contar, procuro na maioria das vezes saber o que diz o texto, no que ele contribui para as crianças. Apresento histórias na quais possam viajar na imaginação e também conhecer mais sobre algum assunto que tenha relação com seu cotidiano, sem tirar o encanto das histórias, pois a meu ver a hora da história tem que ser um momento gostoso e prazeroso.

Conceição, professora

Projeto de Formação de Professores

Conteúdo:
Leitura de histórias pelo professor

Objetivos com relação aos professores

  • Que utilizem recursos variados em sua prática.
  • Que interiorizem o hábito da leitura.
  • Que conheçam o papel da leitura no processo de alfabetização das crianças.
  • Que passem a organizar um ambiente mais propício para a roda de história.

Seqüência de propostas de trabalho

  1.   Fazer um levantamento de como os professores trabalham em sala de aula e listar suas principais dúvidas.
  2. Propor aos professores que tragam para o encontro de HTC o registro de um momento em que tenham trabalhado história em sua sala. Trazer as reflexões para discutir com o grupo.
  3. Combinar com os professores a filmagem dos momentos de leitura de história para análise com o grupo na reunião pedagógica.
  4. Depois de analisar a prática, ler textos específicos, bem como o Referencial Curricular de Educação Infantil (MEC) para entender e justificar o trabalho com leitura.
  5. Organizar momentos de leitura de textos literários para os professores.
  6. Num outro encontro, depois das leituras e da análise dos vídeos, propor que os professores repensem aquelas atividades de leitura a fim de torná-las prazerosas e significativas para as crianças. Combinar com os professores uma nova filmagem das rodas de história.
  7. Trazer as atividades filmadas para analisar e avaliar novamente com o grupo.
  8. Voltar às perguntas iniciais para ver quais já conseguimos responder, sistematizando dessa forma os conhecimentos do grupo.
  9. Levar os professores a uma livraria para que escolham livros para as crianças.

Ficha técnica:

O projeto Leitura pelo Professor foi realizado em três escolas municipais de São José dos Campos – EMEI Profª Norma Lucia Rodrigues de Almeida, EMEI Galo Branco e NEI Freitinhas –, e dele participaram 16 professoras com apoio da equipe diretora.

Para saber Mais

Bibliografia literária

  • Bateu Bobeira. Fany Abramovitch. Ed. Moderna.Tel.: (11) 3788-1094
  • Estratégias de Leitura. Isabel Solé. Ed.Artmed.Tel.: (11) 3083-6160
  • Novas perspectivas sobre os processos de leitura e escrita. Ferreiro & Teberosky. Ed.Artmed.
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