Contextos de alfabetização na Era Tecnologica

Gostando ou não, isto é fato: não se alfabetiza mais crianças como antigamente. Em tempo de avanços tecnológicos e diante das pesquisas sobre a didática da alfabetização, faz-se necessário pensar novos contextos para se ensinar a ler e a escrever


Trabalhei com muitos grupos de educadores. E nenhum ou apenas um dos integrantes sabia realizar operações muito simples com aparelhos e recursos audiovisuais, e raras foram as situações em que esses recursos eram de boa qualidade e funcionavam.

Costumava brincar dizendo que, definitivamente, educação e tecnologia não andam juntas. É uma brincadeira, mas junto com o riso vem o triste reconhecimento de quanto nós, da educação, estamos desinformados e distantes dos recursos tecnológicos existentes no mundo em que vivemos.

O resultado é que, como cidadãos, usamos pouco desses recursos, por falta de conhecimento, e como profissionais da educação, não podemos tornar disponíveis às crianças ou potencializar as oportunidades de aprendizagem que a era digital coloca à disposição, pois não usamos os recursos e as tecnologias mais elementares.

À parte, todas as questões de verbas, que afligem as instituições públicas e também as privadas, criam reais impedimentos de acesso à tecnologia. É preciso pensar nas dificuldades criadas pelos educadores, receosos de experimentar e ousar inovações.

Comento a seguir um pouco do que pudemos fazer com a presença do computador nas salas de educação infantil e do quanto isso mudou o envolvimento das crianças e o ânimo dos professores, mostrando o impacto da tecnologia na motivação e na produção final.

Tivemos o cuidado de, em meio à possibilidade real de ter tecnologia disponível em sala de aula, não fazer dela um fim em si mesma, não abrir mão de nossos compromissos e concepções sobre ensinar, mesmo deslumbrados com o que tínhamos.

A tecnologia é apenas mais uma possibilidade, mais um recurso que deve estar à nossa disposição para propósitos educativos.

Alfabetização e tecnologia da escrita
A produção de textos no computador é uma proposta que traz outras possibilidades e desafios, que não eram tão explorados ao se escrever manualmente.

A edição de texto é um exemplo: quantas vezes as crianças precisavam escrever e reescrever até concluir uma versão final de seu texto? Provavelmente, um número de vezes suficiente para achar que a escrita é uma tarefa repetitiva e sem sentido.

Já os editores de texto permitem um outro tipo de acabamento e, por isso mesmo, uma forma de as crianças irem além, de produzirem mais e melhor, podendo voltar à produção para revisá-la e corrigi-la com maior agilidade, cumprindo seus propósitos iniciais.

Sabemos hoje que há crianças que aprendem a escrever no computador antes de fazê-lo com lápis e papel. Sobre elas e seus professores, Emília Ferreiro comenta2:

Alguns professores me procuram, completamente apavorados com isso. Digo-lhes que não fiquem apavorados, que o computador é um instrumento para escrever, como o lápis. Não se deve confundir o instrumento usado para escrever com a compreensão do sistema de marcas da escrita. Entender o significado das marcas que se produzem com os instrumentos é outra coisa, um problema conceitual.

Além do mais, o teclado do computador, similar ao de uma máquina de escrever, tem a vantagem de acabar com certos pseudoproblemas pedagógicos, que davam lugar a tantas discussões inúteis: deve-se escrever com caracteres separados ou ligados? Com letras cursivas ou de imprensa? O que fazer com os canhotos? No computador cada um escreve como quiser: escolhe o tipo de letra, pode ligar os caracteres separados com uma instrução muito simples. E escreve-se com as duas mãos. É ótimo poder liquidar problemas pseudopedagógicos, pois sobra mais tempo para refletir sobre os verdadeiros problemas.

Ilustração de uma estrofe do Poema das Cores elaborado a partir do Programa Paint

Há, no Brasil e em São Paulo, professores realizando trabalhos muito interessantes com o computador na sala de aula. Não para passatempo, ou somente para uso de softwares pseudo-educativos, mas para a realização de práticas de leitura e escrita. Crianças e professores sentem-se valorizados com o uso da tecnologia no cotidiano e ficam mais estimulados e receptivos às mudanças.

Para além do ler e escrever, do alfabetizar, é importante pensarmos sobre a relação educação/contemporaneidade ou, traduzindo, educação/tecnologia. Um trabalho preocupado com a inclusão digital e a alfabetização deveria abordar, simultaneamente, a questão das aprendizagens da leitura e da escrita e das novas tecnologias não como processos paralelos e/ou distintos, mas como processos simultâneos e complementares.

Garantir coerência de princípios nas propostas é condição fundamental para que as situações didáticas possibilitem às crianças cada vez mais reflexão e construção de conhecimento sobre a linguagem e sobre o uso do computador.

Partindo desses pressupostos, o projeto KidSmart buscou integrar o uso do computador e as práticas sociais deleitura e escrita e ainda possibilitar às professoras a reflexão sobre a prática pedagógica. As crianças, usando a tecnologia, puderam efetuar diferentes produções: as listas de nomes dos alunos, agendas e o livro Não Confunda3.

Participaram deste trabalho, no Rio de Janeiro, a creche do Centro de Educação Infantil do Instituto Pão de Açúcar – CEI e a escola municipal Friedenreich. O relato a seguir descreve trechos do percurso dos professores e das crianças no uso do computador na sala de aula.

Utilizando um editor de texto para aprender a escrever
No CEI, com o computador integrado aos cantos e as crianças já habituadas aos softwares – tendo aprendido a reconhecer ícones e a manejar bem o mouse –, aventuramo-nos um pouco mais. Conversamos em roda sobre as atividades dos softwares de que as crianças mais gostavam e combinamos escrever o nome e a atividade preferida no computador, em um “lugar de escrever e guardar o escrito”.

Antes elas escreveram em cartões seus nomes e a atividade preferida, porque avaliamos que os desafios que colocamos para a escrita, acrescidos aos do uso computador, eram excessivos para elas. Os cartões serviriam como apoio para a escrita no computador – elas liam o que tinham escrito e copiavam ou faziam correções a partir dessa leitura. Em duplas, se revezavam no computador.

Mostrei a elas os programas para desenhar e escrever. No paint (editor de imagem), adoraram desenhar e experimentar todas as possibilidades.O manejo é mais difícil que o dos softwares, exige maior controle e precisão nos movimentos; até a escolha da cor demanda mais habilidade. Depois escrevemos no wordpad (editor de texto). Abri uma página tipo diário, com data e uma introdução.

Elas escreveram seus nomes e o que mais gostavam de fazer. Os nomes foram escritos tranqüilamente, mas a escrita não memorizada resultou menos rica no computador.Abri uma pasta, minimizei e maximizei programas, comentando com elas.

Produzindo em grupo a escrita de um cartão

Observei, e depois as professoras confirmaram, que muitas já sabiam espaçar, apagar, fazer parágrafo, e que isso virou uma espécie de brincadeira. Há crianças, claro, com muito menos domínio, mas todas com um percurso grande de aprendizagem.

Depois, as agendas de endereços…
Levei algumas agendas para as crianças manusearem e comentarem. Não sabiam o que era, mas gostaram daqueles “livrinhos”. Folheavam, queriam ver as ilustrações de uma delas, todas queriam pegar, segurar. Fui ajudando a olhar: folheava as páginas perguntando:

– O que tem aqui?
– Tá escrito.
– Tem letra.
– Só letras?
– Não, tem um monte de número aqui.

Apontavam para as letras, para os números, para as ilustrações, definindo e nomeando aspectos, fragmentos do queeu apresentava, mas claramente não reconheciam o que era uma agenda e muito menos sua função, precisavam de ajuda para relacionar e organizar o que viam.

Fui apontando, de modo que elas observassem o tipo de escrita e onde estava: “nomes”… “números”…, e atentassem para a distribuição: uma coluna de nomes, outra de números … e perguntei: números de quê? Alguém já viu um “caderninho assim?” “Meu pai tem, é pra telefonar”,“É pra quando precisa escrever o número do telefone” etc.

E aí, dei as informações restantes: este “caderninho” se chama agenda e serve exatamente para marcar os números de telefone dos amigos e de pessoas que a gente conhece.“E por que será que eu trouxe as agendas para mostrar pra vocês?” Novamente o mesmo percurso: “pra gente escrever”, desenhar, telefonar… Telefonar pra quem? Telefones de quem? “Não sei.”

Nova ajuda; mostrei as matrizes de agenda e expliquei que era para fazermos uma agenda da classe. Perguntei quem tinha telefone. Todas. Ficaram eufóricas com a idéia de fazer sua própria agenda, queriam fazer na hora, pegar tudo, a maior excitação. Trabalhei com duas crianças por vez no computador da sala, enquanto isso as outras fizeram as ilustrações com as canetinhas novas.

Desenvolvi uma atividade semelhante àquela proposta por Ana Teberosky, em que a criança tem que assinalar seu nome entre três grafias diferentes, buscando a forma correta. Adaptei e pedi que elas apagassem os errados, para que só permanecessem, na lista que faríamos, os nomes escritos corretamente.

Na creche Educandário São Domingos as crianças produzem textos usando
diferentes recursos.

Escrevi o título da lista, e comecei a atividade, explicando como apagariam, ora usando o delete, ora o backspace. Nas escritas, evitei mexer com as iniciais ou finais, porque elas já tinham passado dessa fase; assim, repetia vogais ou consoantes no meio da palavra. De um modo geral, olhando com atenção e tranqüilidade, conseguiram ir resolvendo o problema.

Foi muito rico, porque demandou outro tipo de atenção à escrita, muitas crianças vinham na leitura automática, mas quando viam que as diferenças entre as três escritas eram muito menores do que a existente entre os vários nomes da sala, tiveram que ajustar o olhar e ler com mais atenção e cuidado. Sabiam justificar, depois de olhar detidamente, “meu nome não tem dois As, dois Eles, dois Erres” etc.

A atenção seguinte tinha que ser para o controle do mouse, levando o cursor à palavra e apagando apenas as escritas que não interessavam. Com muitas, mais afobadas, que apagaram tudo, usei e nomeei o desfazer ou o Ctrl z, que, claro, amaram.

A grande surpresa foi com Mylena, que, ao reconhecer onde seu nome estava grafado errado e ser instruída a usar a tecla Del, foi com o cursor à letra excedente e apagou apenas aquela, tornando a escrita correta (assim: Myllena – apagou um l). Vibrei e pedi que ela socializasse o que fez com a maior parte das crianças. Quando finalizamos a lista, salvei o arquivo descrevendo os procedimentos para Fernanda e Lana, que estavam comigo.

Informei como continuariam o trabalho nos próximos dias e o que fariam com a professora Lauriê. Quando falei que gravariam a lista em um disquete, Rafaela estranhou a palavra “gravariam” e quis saber o que queria dizer. Gabriela respondeu que “é quando, no dia seguinte, a gente quer ver o que escreveu”.

Já na Friedenreich, com o mesmo planejamento de atividade, fiz modificações. Ao trabalhar com as duplas de crianças de 5 anos percebi que precisava mudar o meu encaminhamento. Não dava para eu escrever os três nomes e elas apagarem o errado, por dois motivos: estavam loucas para escrever, sabiam muito sobre os nomes e queriam mostrar. Mudei e foi muito interessante, elas ficaram superenvolvidas.

Abri o wordpad, escrevi o título “lista..” , disse a que se destinava e descrevi isso a todas que se sentavam. Eu pedia a cada criança que escrevesse o seu nome, depois que fechasse os olhos, Então eu fazia alterações. Depois perguntava quais alterações haviam sido feitas.

Exemplos: o menino escreveu Cláudio, alterei para Claudia, Claudionor e Craudio; ele não soube ler nenhuma delas, mas estranhou muito, sendo que não faziam parte de seu nome. Eu lia o que havia ficado e elas riam muito. Foi divertido: Eduardo, depois Eduarda, Edualdo; Danilo, depois Danila, Danillo, ou, para as que já podiam ler convencionalmente, como Maria Clara, depois Mara Clara, Maria Clera, Mari Clara, ou ainda, para as que tinham menor condição de autonomia na leitura, como Arthur, que é deficiente auditivo e tem alguma dificuldade, só marquei mudanças que causassem grande estranhamento, como Arttthur, AAArthur.

Foi muito produtivo, elas pensaram, foram desafiadas e resolveram os problemas colocados, desenvolvendo uma real atividade de reflexão sobre a língua. O interessante foi que, feita no computador, trouxe ainda a necessidade de atenção e orientação com relação a outros aspectos.

Professora e crianças em ação na Escola Friedenreich, Rio de Janeiro

Criada a necessidade de apagar, quando usar o backspace, quando o delete? Como mover o cursor sem mover o mouse? Como apagar uma só letra no meio da palavra? Como separar os nomes compostos? Quando e como recuperar o que se desfez por imperícia, o uso do Ctrl z e o desfazer etc.

Produzindo o nosso próprio “NÃO CONFUNDA”
Em minha nova visita ao CEI, notei mudanças na sala: o móvel infantil que envolve o computador havia chegado e a impressora também. Encantadas, as crianças mostraram-me a história do Stanley (um dos softwares) que escreveram e imprimiram.

Ela começa com a apresentação das personagens, algo como Stanley, Sammy… e José, e vai enveredando por aventuras com festa, sorveteria, passeio… À medida que fui folheando e lendo, num trecho, em que havia nova menção a todas as personagens, alguém lembrou e comentou:

– O José tinha sumido, aí a gente botô ele.

Lauriê explicou que foram perdendo personagens durante a narrativa e que, na revisão, os recuperaram. Esse tipo de fala de uma criança mostra o quanto elas de fato participaram como produtoras do texto e acompanharam todo o seu processo de produção.

Apresento e leio o NÃO CONFUNDA, de Eva Furnari, que brinca com rimas. No início houve um certo estranhamento, não era uma história como as outras, não havia uma narrativa convencional. Mas, à medida que as crianças foram se desligando das expectativas do texto convencional e compreendendo a “aventura” que estava proposta neste, começou a curtição. Morriam de rir das rimas e pediam para eu repetir. Logo nas primeiras, alguém sacou: “é de rima”.

Ótimo gancho para o trabalho que faríamos. Fui variando o modo como lia cada nova dobradinha de páginas: lia as duas, lia uma e depois a outra, lia uma e brincava com a antecipação da possível rima que viria, foi divertidíssimo!

Quando finalmente consegui terminar a leitura, mostrei o livro feito pelas crianças da Escola Logos e propus que fizéssemos o mesmo. Contei como. Listamos rimas possíveis com os nomes das crianças.

Algumas não conseguiam rimar, outras já podiam tanto que até brincavam, irônicas. Levantamos todas as rimas que pudemos para cada nome e, numa segunda rodada, cada criança escolheu a sua preferida.

Com papel e lápis na mão, elas escreveram o nome e a rima para não esquecer e depois, com a sala organizada com cantos por Lauriê, fomos ao computador, duas crianças por vez, para fazer a lista de rimas.

Algumas das escritas:

Como se pode ver, esta foi uma ótima atividade avaliativa. As crianças ficaram experts na escrita de nomes, tanto manual quanto no computador. Na escrita das rimas, somente Mayara se destaca, com um conhecimento bem diferente do restante do grupo: ela vai alinhando letras, quase que interminavelmente, aparentemente sem atentar para relações de valor sonoro, mas,mesmo assim, procurando variá-las:

MGHJUUZ7BBJJICCDVQA7J

Mesmo com uma escrita aquém à do grupo, vi que ela se divertia muito na aventura de escrever e apagar, ocupadíssima com a tarefa que lhe dei. (Ela era tão tímida que mal pegava no lápis, morria de vergonha de fazer as atividades na minha presença, estava sempre desligada e alheia a tudo. Vi seus olhos brilharem desta vez.)

Grande parte das crianças estava silábica ou quase, algumas sem valor sonoro, mas é impressionante a diferença que mostraram nesse momento no ato de escrever, a atenção à escolha das letras, a reflexão, a busca da melhor solução.

No encontro seguinte, levei as escritas dos nomes e as rimas, separei em blocos, relacionando os nomes das crianças e suas respectivas rimas, e os dispus no centro da roda. O que é isso? O que acham que está escrito aqui? E elas, rapidinho: é do livro, é do livro. Que livro? Esse que você leu. Então, o que está escrito aqui? Em pouquíssimo tempo, juntando os indícios que conheciam, contextualizando e apoiando-se na memória, todas sabiam o que estava escrito e de quem era cada texto.

Agrupamos as crianças em trios, recortei, decompondo ainda mais o texto, que ficou em três pedaços: um com a escrita NÃO CONFUNDA,outro com a escrita do nome e o último com a rima. Cada criança tinha que separar os pedaços que compunham seu jogo e depois colar na folha que já estava desenhada e com a moldura impressa. Precisaram de ajuda para saber onde colar e para finalizar o trabalho, mas para a leitura foram muito independentes.

Fui ao computador para fazer com elas o texto introdutório. Elas ditavam e eu escrevia. Fizemos um esboço e combinamos que voltariam a ele e me mandariam, para finalizar o livro.

Na Friedenreich, na classe de 6 anos, li o “Não Confunda” e elas amaram. Vibraram, riam muito, identificaram as rimas e pudemos brincar muito fazendo novas rimas para os textos da Eva Furnari.

Mostrei o livro da Logos, e Alan,um menino muito atento, perguntou se faríamos um igual para eles. Eu disse que sim, e aí a folia foi geral. Muitos já se adiantaram, pensando rimas para seus nomes, outros demoraram e precisaram de ajuda, mas o trabalho com eles foi bem produtivo.

Página do livro Não Confunda, produzido pelo grupo do Pré da Escola Friedenreich

É impressionante o salto que as crianças deram na escrita e na leitura, depois destaquei isso para a professora Janete. Quase todos escreveram alfabeticamente e com muita desenvoltura e independência.

No encontro seguinte, a atividade foi a mesma que realizei no CEI, mas a condição das crianças era outra, por isso trabalhei com elas agrupadas em 4 (com o critério de heterogeneidade) e com os textos todos decompostos em palavras e misturados. A tarefa era encontrar e recompor o próprio texto – e não o dos amigos da mesa –, colar e ilustrar.

A ajuda que precisaram foi para a leitura e distinção de palavras e nomes muito semelhantes, como Leonardo e leopardo, por exemplo. Janete e eu ficamos por perto e ajudamos na resolução das questões que iam se transformando em impedimentos para a realização da tarefa, mas a ajuda principal incidiu sobre questões de organização para o trabalho em grupo e com autonomia.

Depois, fomos redigir a apresentação. Optei por fazer com elas um roteiro na lousa do que seria falado, para que depois escrevessem o texto com Janete, porque achei que eram numerosas e com pouca organização para ficarem todas amontoadas em frente ao computador para uma tarefa desse tipo.

Elas tinham pouca experiência com linguagem escrita, o que reflete o pouco que se trabalha dentro da concepção de letramento, e isso foi expresso lindamente por um menino chamado João Ricardo que disse, quando organizávamos um dos itens na forma de frase completa: “Mas não cabe tudo isso na minha cachola, é muita coisa”.

Acho que isso reflete onde estava o problema principal nessa classe de alfabetização, e foi em torno disso que depois conversei com a professora.

Com os professores, refletimos sobre a prática
Iniciamos a reflexão destacando com os professores a relação entre o ensino da língua e a tecnologia e a exclusão. Lemos trechos de Emília Ferreiro3:

“Não se trata de reinstaurar o já velho debate entre televisão e lousa; ou seja, não se trata de lamentar as horas que as crianças passam na frente de um aparelho de TV, que pouco ou nada tem de interativo e muito de consumismo passivo. Também não se trata de idealizar as horas passadas diante da lousa, como se fossem, por definição, mais proveitosas que as outras. Trata-se de permanecer alerta às mudanças que estão acontecendo – que podem envolver profundas mudanças na relação dos já letrados com os textos, e no modo em que as novas gerações são alfabetizadas – e de reconhecer que as mudanças necessárias em nível educativo são muito drásticas, de fato, porque já agora a escola pública está imensamente desatualizada. Se a tecnologia da informática chegar a servir, como se fosse um gatilho para repensar o que acontece na escola, que ela seja bemvinda.”

Ela é danada mesmo, tocou todos os corações:“estou animada com a perspectiva de um trabalho novo, o computador será parte do cotidiano, mas dá um pouco de medo” (Patrícia), ou “vai ser uma forma de eu me atualizar, a informática vai abrir as portas para uma alfabetização muito mais voltada para o tempo que estamos vivendo” (Janete).

O outro conteúdo que não poderia faltar era, com certeza, a produção de texto oral com destino escrito.Assistindo a um vídeo, com a atividade da professora Clélia4, discutimos: por que a professora faz esses encaminhamentos, o que ela entende que é alfabetizar? E o encaminhamento da produção de texto oral com destino escrito (Fazem? Com que freqüência? Como encaminham? Por que é tão importante?). E o uso do computador (observar formas de introduzir o computador no cotidiano, de modo a possibilitar que as crianças pensem mais sobre a função da escrita e da tecnologia).

Capa do livro de poemas Arco-Íris, produzido pelo grupo do Pré da Escola
Friedenreich

Sobre a escrita do bilhete: O que destacar para as crianças antes da escrita? Como levantar o que deve conter? Algumas professoras disseram que “não há nada de novo no vídeo, só não escrevemos na frente das crianças”. Perguntei por que será que ocorreu à professora do vídeo escrever na frente das crianças e a elas não, o que será que a professora sabe que a fez pensar na atividade?

E sobre o uso do computador:o que é novo? O que acharam interessante? E algumas disseram novamente: fazemos tudo, nada é novidade, só não usamos o computador. Novamente fiz uma intervenção. E o que faz um professor ter a idéia? É só uma questão de ter idéias luminosas? “A própria necessidade”, alguém responde. A necessidade existe sempre ou o professor criou essa?

Fechamos com destaque para a importância de o professor saber aproveitar ou criar situações do cotidiano para escrita e leitura e saber pensar encaminhamentos e boas intervenções para o andamento destas atividades.

Definimos que teriam que confeccionar com as crianças cartões com nomes, no computador, com o padrão Arial 72 em maiúscula. Esses cartões seriam usados como modelo para grafar todas as produções, e as crianças seriam insitadas a escrever de próprio punho.

Posteriormente, ao analisar os resultados das sondagens (as escritas do nome e do que mais gostavam de fazer), as professoras deram-se conta de que ler e escrever são conhecimentos distintos e que as aprendizagens que pareciam consolidadas, eram na verdade escrita de memória sem apropriação do código.

Assim, começaram a aparecer alguns dos nossos problemas. Às crianças, poucas vezes era dada a oportunidade de realizar escritas de próprio punho. Começou a fazer sentido para as professoras a necessidade de criar novas situações de escrita significativa, escritas sem tanta previsibilidade, fora do controlável e do consultável, no sentido da cópia.

Enumeramos possibilidades: agenda de endereços com participação parcial e depois total das crianças; fazer letras no computador e organizar letras móveis para escrita de canções, versos, brincadeiras; escrever listas de palavras e nomes que interessavam a elas: jogadores, times, brincadeiras, títulos de livros etc. fazer uma discussão sobre as escritas com o grupo.

O importante é usar computador para a produção de textos e comunicação com outras escolas, fazer textos mais densos e mais escritas de próprio punho, voltar às escritas, com mais investimento na qualidade e menos quantidade.
– À medida que realizavam mais atividades de escrita e leitura com seus alunos, as professoras contavam, como Janete, a surpresa de “descobrir realmente o que sabe cada criança”.

Indicação de leitura feita pelas crianças do Centro de Educação Infantil do Instituto Pão de Açúcar de Desenvolvimento Humano – RJ

A importância da constância desse tipo de proposta é algo sobre o que todas concordamos. Definimos juntas como aproveitar melhor o wordpad no cotidiano da sala de aula. Listamos as possibilidades de uso: nomes, agendas, bilhetes, histórias, cartões, convites, calendários, cartazes, lembretes, confeccionar jogos e atividades, listas etc., já no computador, praticando procedimentos para iniciar, formatar, escolher letras, salvar, copiar, etc. Levei muitos exemplos de atividades para fazerem no computador com participação total ou parcial das crianças na formatação.

A seguir, exponho e comento os exemplos que trouxe, para discutir dúvidas de encaminhamento das professoras no manejo da tecnologia. A essa altura, todas estavam empolgadíssimas com o trabalho apoiado na tecnologia. Nas palavras de Patrícia, sentindo-se “pioneira, uma professora do futuro”, e nas de Janete, que acha “que um computador por sala realmente atende as crianças, na sala de informática você não atende. Na sala de aula, faz parte da vida delas”.

Lauriê, professora do CEI, em uma das supervisões, mostrou, animada, a escrita de seus alunos – uma lista do que levariam para um passeio em Vila Izabel – e descreveu para as outras como efetuou as atividades. É impressionante a mudança (cerca de dois meses atrás eram, quase todos, pré-silábicos) depois que começaram realmente a escrever.

Alguns exemplos:

Gabriela Lopes: todinho:OIO, biscoito:IOO;
Bárbara: bis: IBX, guaraná:AARA, hambúrguer: UUE.
Lucas Silva escreveu seu nome usando a tecla do espaço para separar o nome e o sobrenome.

Na Friedenreich, numa das supervisões, observamos que as crianças estranharam novas modalidades de atividades e, que, às vezes, o problema é esse e não o conteúdo. É necessário dar tempo para que pensem e falem, deixando claro o que se quer que elas façam. Falo da gestão de classe, que é fundamental para o funcionamento do computador, para conseguir dar atenção às crianças e ensinar novos procedimentos.

Novos softwares, novas atividades, novas modalidades de trabalho e socialização de procedimentos são os desafios: Ctrl z, delete, backspace, espaço, enter, desfazer, precisam ser do domínio do maior número possível de crianças. Mas isso exige tempo e planejamento específicos do professor.

Lemos e discutimos sobre os conceitos de letramento e alfabetização. E as professoras, ao final: “Agora a gente começa a entender melhor por que o trabalho com texto; a gente vai entendendo que não é o escrever só, mas o lidar na sociedade, como se portar nas diferentes situações, quando as crianças sabem o que é para fazer, o escrever passa a ser uma conseqüência”, diz Lauriê.

“Agora vemos que as crianças têm saberes diferentes entre elas, que não é só o grupo, que isso não existe”, interrompe Kelly.

E Lauriê retoma: “Ontem fizemos uma atividade em que deveriam marcar os nomes, não havia só os nomes deles. Rafaela Dias me intrigou muito, sabe explicar tudo o que lê e escreve, de modo que eu fiquei tão surpresa que nem tive mais o que perguntar”.

E mostra uma escrita de rotina e conta que, para escrever sono, primeiro Rafaela escreveu SOO; Lauriê perguntou se era com os dois Os juntos mesmo, ela respondeu que achava que não, pensou e escreveu SOAO. Eu a vi depois na sala e ela é uma figurinha adorável, muito atenta a tudo o que acontece, funciona como uma espécie de segunda professora.

Nas primeiras supervisões, com Janete e Patrícia, no Friedenreich, ao analisarmos as escritas das crianças, ficou clara a necessidade de criar situações em que faça sentido a escrita espontânea.

Avaliamos também quão pouco letradas são as crianças ainda e nos demos conta da importância de diversificar as leituras, de realizá-las com freqüência e em paralelo a atividades de escrita e produção de texto.

As professoras passaram a se arriscar mais, a realizar mais atividades organizadas em seqüência e com maior intencionalidade. O resultado foi que, em poucas semanas, ao analisarmos as escritas dos alunos de Janete, perguntei se ela tinha dado conta do salto, e ela, meio orgulhosa, meio tímida, falou que estava muito feliz e que tinha trabalhado muito para isso. Falamos sobre ser leitor, compreender o significado, ler para aprender a ler, escrever para aprender a escrever, enfim, essas coisas que fazem muita diferença no modo como se encaminha a atividade.

Em nosso último encontro, li o artigo “A arte de produzir fome”, de Rubem Alves. É maravilhoso, sintoniza o professor com o que é essencial na tarefa de ensinar: fazer com que seus alunos se interessem em aprender. Li também porque o tema do encontro fez parte do planejamento 2003, e essa foi a estratégia que encontrei de fazer, ao mesmo tempo, a nossa avaliação de 2002 – do que aprenderam, sabem fazer, etc., pondo em jogo esse conhecimento para resolver um problema – o próximo planejamento, em uma situação em que eu pudesse ajudá-las a “usar o que sabem e aprender mais com a resolução de um problema”.

Isso foi muito produtivo e uma forma efetiva de ajuda que pude dar a elas. Contaram dos jogos de memória e dominó, que ficaram lindos, e mostraram quanta coisa as crianças aprenderam sobre manejo do computador como ferramenta de trabalho e o quanto elas aprenderam sobre encaminhamento de atividades, onde se vê, junto com as marcas de transição de uma concepção para outra, sua ousadia, apesar de todas as adversidades, da carência de orientação sistemática no cotidiano.

E em 2003, o que farão? À medida que pensavam, revelavam desejos, fui ajudando a dar corpo e coerência ao que queriam, pensando projetos, atividades permanentes de língua e de uso do computador, e o resultado foi que os jogos fizeram tanto sucesso que querem repetir e ampliar.

Crianças da Casa do Aprender, Osasco/SP, imprimindo um trabalho

Haverá mais tipos de jogos com outras possibilidades e outros objetivos sociais. Farão jogos para a sala e para doar a outras escolas. Além disso, darão início à Internet

  1. visitar museus, conhecer o mundo virtual pelo computador como material de apoio; e Internet
  2. cartas, correspondência por e-mail como atividade permanente, cartas para pesquisar, elogiar, reclamar, para autoridades.

E as atividades permanentes? Leitura pelo professor: histórias de bruxas, com tipologia de bruxas e fichas com personagens, listas, trabalho com nomes e produção de texto oral com destino escrito.

O fato de o trabalho ter intercalado ações com crianças e professores possibilitou que avançassem juntos. Quanto mais viam os conhecimentos das crianças sobre escrita e leitura postos em ação nas atividades, mais as professoras compreendiam a proposta e se encantavam com ela, ganhando uma melhor condição para realizar intervenções e encaminhamentos das atividades com maior autonomia.

Muito elas fizeram por conta própria: projeto de coletânea de poemas com introdução das crianças; livro do folclore, indicações de leitura e outros. Ver a força e o impacto da presença do computador e dos softwares nas professoras e crianças trouxe-me a percepção de um sentido para esse trabalho que eu não tinha alcançado.

A tecnologia trouxe para as professoras, para essas que eu vi, uma motivação e um ânimo novo. O apelo para o nosso compromisso com a dupla alfabetização e o nosso “não” à exclusão das crianças de baixa renda do mundo letrado e da tecnologia trouxeram para a cena profissionais entusiasmadas com o ofício de ensinar e interessadas em aprender.

(Maria Virgínia Gastaldi, Consultora em educação e formadora do Instituto Avisa lá)

1 Entrevista publicada na Revista Criança n.o 35 – Dezembro/2001 – MEC.

2 De autoria de Eva Furnari – editora Moderna. O livro, ricamente ilustrado, traz, a cada dupla de páginas, uma nova rima, sempre seguindo a mesma estrutura:“não confunda … com …”

3 Ferreiro, Emília. A revolução informática e os processos de leitura e de escrita. In: Carvajal Pérez, Francisco; Ramos Garcia, Joaquín. Ensinar ou Aprender a Ler e a Escrever? Porto Alegre, Artmed, 2001, p. 163.

4 É uma atividade de produção de texto oral com destino escrito, no caso um bilhete, com posterior digitação e impressão. O bilhete é para os pais, sobre o funcionamento do empréstimo de livros na classe e os cuidados que precisam tomar.

Página do livro Não Confunda, produzido por Thamiris da Escola Friedenreich

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