Espelhos

Sabemos que ler diariamente na escola é fundamental, mas serve qualquer livro? Veja aqui a discussão a distância entre profissionais de educação sobre critérios de escolha de acervo literário para crianças

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão.
João Guimarães Rosa. Primeiras estórias. (1962)

Foto: CEMEI Profª Carolina Ferreira Lima (SME Apiaí–SP)

Foto: CEMEI Profª Carolina Ferreira Lima (SME Apiaí–SP)

Neste trecho de Guimarães Rosa fica claro que a ação de se olhar em um espelho, além de ocupar um lugar na história da civilização, tendo iniciado sua existência nas superfícies das águas, também ocupa lugar no imaginário das pessoas. O espelho tem sido personificado na literatura, na mitologia, nas crendices populares, em provérbios e pensamentos. Poderíamos escrever um livro de muitos capítulos sobre esse tão importante objeto e sua relação com o ser humano, mas, para nós, ele pode ser visto a partir de outro prisma, o de ser um utensílio importante para a educação.

Conforme consta do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI)1, um dos objetivos da Educação Infantil é a apropriação da imagem corporal:

A aquisição da consciência dos limites do próprio corpo é um aspecto importante do processo de diferenciação do eu e do outro e da construção da identidade. Por meio das explorações que faz, do contato físico com outras pessoas, da observação daqueles com quem convive, a criança aprende sobre o mundo, sobre si mesma e comunica-se pela linguagem corporal.

Quando a madrasta-bruxa da Branca de Neve pergunta ao espelho “existe alguém mais bela do que eu?”, o que está em jogo não é apenas a vaidade e a inveja, como revela o clássico conto de fada compilado pelos irmãos Grimm, mas a possibilidade de saber de si através da imagem, é o olhar e o que ele pode revelar sobre a identidade de quem está refletido. É a partir dessa ideia que consideramos o espelho um objeto fundamental que deve estar presente no espaço do berçário, nas salas de aula e em diferentes espaços da educação.

Começamos por essa ideia de olhar a imagem refletida. Parece uma ideia simples, mas em se tratando de crianças pequenas, mais especificamente de bebês, poder se reconhecer na imagem refletida pelo espelho é resultado de um processo complexo.

O reconhecimento da própria imagem
No início de seu desenvolvimento, o bebê encontra-se num estado de dispersão e de indiferenciação, percebendo-se como que fundido ao outro, aderido às situações e circunstâncias. Aos poucos, nas diferentes relações que vão sendo estabelecidas, primeiro com a mãe e depois com outros que vão entrando na sua história e fazendo parte de seu contexto social, inicia-se o processo de diferenciação. Segundo Henri Wallon:

O estado inicial da consciência pode ser comparado a uma nebulosa, uma massa difusa, na qual se confundem o próprio sujeito e a realidade exterior. O recém-nascido não se percebe como indivíduo diferenciado. Num estado de simbiose afetiva com o meio, parece misturar-se à sensibilidade ambiente e, a todo instante, repercutir em suas reações, as de seu meio.

A distinção entre o eu e o outro só se adquire progressivamente, num processo que se faz nas e pelas interações sociais (…) É pela interação com os objetos e com seu próprio corpo que a criança estabelece relações entre seus movimentos e suas sensações, e experimenta, sistematicamente, a diferença de sensibilidade entre o que pertence ao mundo exterior e o que pertence ao seu próprio corpo. Por essas experiências torna-se capaz de reconhecer, no plano das sensações, os limites de seu corpo, isto é, constrói-se o recorte corporal.2

Essa é a etapa da formação do eu corporal, que ocorre no primeiro ano de vida. Nessa fase, os bebês miram fixamente para o reflexo no espelho, com a curiosidade de quem olha e se admira, intrigado e pesquisador.

A etapa seguinte nos interessa aqui na conversa sobre espelho. Esse momento refere-se à junção do corpo tal como sentido pelo bebê à sua imagem tal como vista pelos outros. O desenrolar desse processo pode ser acompanhado pelas reações do bebê diante do espelho: leva um tempo até que reconheça como sua a imagem refletida.

Não é raro vermos uma criança no primeiro ano de vida intrigada com o seu reflexo no espelho, tentando tocar sua imagem ou aproximar-se dela como quem chega perto de outra pessoa. Essa imagem refletida ainda não é percebida como própria. É aí que entra a função do espelho nos ambientes educacionais.

O espelho se oferece como elemento importante nessa construção.

O espelho é um importante instrumento para a construção da identidade. Por meio das brincadeiras que faz em frente a ele, a criança começa a reconhecer sua imagem e as características físicas que integram a sua pessoa. É aconselhável que se coloque na sala um espelho grande o suficiente para que várias crianças possam se ver de corpo inteiro e brincar em frente a ele.3

Ao olhar no espelho a criança estranha, reconhece, indaga, pesquisa, apropria-se, surpreende-se, fascina-se. Portanto, é importante que ele tenha um lugar no espaço das salas de berçário e que seja acessível a todas as crianças: que esteja ao alcance de quem engatinha, dos que andam e já procuram sua imagem. Mesmo dos que ainda não se locomovem sozinhos, mas podem ocupar um lugar seguro com almofadas e colchonetes que fiquem na frente do espelho. Olhar para o espelho e ver a própria imagem, ver o outro e o ambiente da sala com oportunidade para experimentar ângulos diferentes do mesmo olhar.

Priscila Antunes do Nascimento e Jucelia Bahia Santos, professoras de Minigrupo II e Berçário II dos Centros de Educação Infantil Pau Brasil e Ipê da Liga Solidária (SP), ajudam a ilustrar esses comportamentos com suas observações:

As crianças demonstram diferentes reações ao se enxergarem no espelho, é como se a cada vez que se olhassem encontrassem coisas diferentes. (…) Já observei alguns rostinhos olhando a barriga e levantando a blusa, observei duplas olhando e passando a mão no espelho, tocando o espelho e achando que estavam tocando o colega ao seu lado.

Para além desses momentos de exclusividade, de diálogo entre criança e espelho, o ambiente coletivo do berçário ou da escola possibilita outros tipos de interação. Adultos e crianças podem conversar na frente do espelho, olhando-se através dele. Assim os pequenos reconhecem sua imagem ao lado da do outro. Nomear as partes do corpo enquanto a criança as reconhece, mudar as expressões de acordo com as narrativas, fazer comentários no momento da conversa, chamando a atenção dela para alguma descoberta específica.

Juliana, da creche Profa Diná Ferreira Batista do Município Apiaí (SP), nos faz o seguinte relato:

Uma das atividades que mais gosto é sentar com as crianças de um ano e seis meses na frente do espelho e mostrar as partes do corpo. Eles adoram. Vou falando e eles vão mostrando no próprio corpo: Cadê o umbigo? O cabelo? Eles colocam a mão. Também cantamos música olhando para o espelho, quando nomeiam as partes do corpo, fazendo gestos, batendo palma. Com os bebezinhos, fazemos a mesma coisa: colocamos na frente do espelho para ver a boca, a língua, mostro a minha e eles olham no espelho. Depois elas brincam sozinhas.

Por que ainda não elegemos os espelhos como recurso de interação?

Em nossa cultura ainda é comum termos medo do espelho: “Quem deixou esse espelho aqui? É perigoso! Temos crianças pequenas!” Ou alguns ditos populares: “Quebrar um espelho dá sete anos de azar! Os espelhos atraem os relâmpagos! Após as refeições não devemos olhar no espelho”. A ideia sobre os perigos do espelho é tão predominante que outro dia um pai nos disse: “Olha, achei um espelho no chão, não é melhor guardá-lo?” (…) É claro que precisamos tomar cuidado. Que tipo de espelho colocar? Quando são retalhos de espelhos, estão lixados para não cortarem a mão? Em qual parede iremos colocar? Quais serão as propostas que iremos desenvolver?

Mas há espelhos para todos os momentos e para todas as idades, não é mesmo? De todos os tamanhos, para contar histórias, para escovar os dentes, para pentear os cabelos, para olhar, olhar, olhar até saber quem sou eu4.

O espelho como recurso pedagógico
O espelho também pode ser utilizado em diferentes atividades e em momentos interativos de desenvolvimento e aprendizagem, que variam de acordo com a idade de cada criança e agrupamento. Para brincar de circo, por exemplo, é preciso ter um espelho para que a criança possa ver como ficou sua fantasia, seja de palhaço ou de bailarina, para “treinar” as caretas engraçadas e para se maquiar para o grande dia.

O reconhecimento da expressão das emoções é importante para as interações, e o espelho pode ajudar a criança a perceber-se triste, alegre, surpresa, desconfiada, assustada, feliz! No desenho do autorretrato, o espelho é fundamental, mesmo que na sequência seja preciso desenhar o outro antes de desenhar a si mesmo. O espelho é como uma foto, por meio da qual a criança identifica seu tom de pele, seus cabelos, seus contornos. Vejam a descrição a seguir referente a uma cena ocorrida depois de várias atividades de observação de obras de arte e de desenhos com espelho:

Era chegada a hora de reproduzir, com caneta, o rosto do amigo. Na frente dos espelho todos demonstravam a intenção de que ficasse igual ao original. “Olha, fiz a presilha do cabelo dela! É assim, né, que faz o cabelo do Caio, enroladinho? É Natalia? A boca tá bem dentuça!” Entre um comentário e outro, muitas gargalhadas dos pequenos e é claro que nós também achamos muita graça dos resultados.

O comentário mais sugestivo foi de um garotinho que, após passar meia hora desenhando, entregou seu trabalho com muito orgulho. O garoto esqueceu a consigna – desenhe o amigo – e se desenhou. Ele desenhou seu próprio rosto, com seus cabelos enrolados e todos os detalhes da vestimenta e personalidade.

Na dúvida, perguntamos: “Caio, esse não se parece muito com o Arthur”.
Caio, cheio de sí respondeu: “Uai, mas não é! Sou eu!”.
Intrigados, perguntamos: “Você não desenhou o Arthur? Veja que ele te desenhou, inclusive seus cachinhos!”
Caio respondeu: “Não, queria que meu desenho ficasse bem bonito e me desenhei!”.

Realmente, não sabemos se, pela influência da constante presença dos espelhos espalhados pela sala, ou pela qualidade do desenho de Caio, ou mesmo pelos diferentes elogios familiares, podemos afirmar que Narciso (assim como Caio) acha feio o que não é espelho!5

O papel na construção de hábitos
O que parece óbvio nem sempre é. Não há casa sem espelho no banheiro. Em muitas escolas é comum não haver espelhos nos banheiros das crianças, quanto mais nas salas… É fundamental ver a sujeira antes de lavar a boca ou o rosto, e ver se ficou limpo, fazer limpeza de nariz na frente do espelho, escovar os dentes, pentear os cabelos… Muitas vezes o adulto faz essas atividades pela criança sem se dar conta de que é uma aprendizagem e que esse momento poderia ser mais bem aproveitado no reconhecimento de si e na construção da autonomia. O adulto chama a criança para si e diz se ficou bom ou não. Ele funciona como um espelho e perde a chance de ensinar a criança a se autoavaliar.

Uma vez, num abrigo, sugerimos aos responsáveis que tivesse um espelho de corpo inteiro perto da porta de entrada, e todas as crianças passaram a ver se estavam “em ordem” antes de sair de casa para ir à escola ou a outro lugar. Da mesma forma que nós não resistimos arrumar o cabelo quando nos deparamos com um espelho num elevador!

Espelhos são usados na decoração de ambientes para ampliar espaços e atenuar a sensação de confinamento. Eles podem ser colocados na sala, em corredores, em pequenos halls. Podem também aumentar a luminosidade em um ambiente por refletir a luz, duplicando-a. Se for colocado um espelho em frente a uma janela, por exemplo, ela será duplicada!

Espelhos podem ser móbiles ou globos que giram e fazem reflexos. Um espelho no teto, em um canto, em dois planos diferentes criam surpresa e ângulos inusitados para se olhar, olhar o outro e o ambiente.

Pois é, é possível e necessário usar espelhos na organização dos ambientes escolares e, melhor ainda, usá-los de forma criativa.

(Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa lá, e Maria Teresa V. de Carvalho, mestre em Psicologia da Educação pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP e formadora do Instituto Avisa lá)

1Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998. Volume 2: Formação Social e Pessoal, p.25.

2Henri Wallon. Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil, de Izabel Galvão. Petrópolis: Vozes, 1995. p.50.

3Referencial Curricular Nacional / Ministério da Educação e dos Desporto, Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998. Volume 2, p. 33.

4“Quem tem medo de espelho ou espelho, espelho meu”, de Juariana Casemiro e Rosana Carvalho. In: O dia a dia nas creches: crônicas brasileiras, de Ana Maria Mello et al. Porto Alegre: Artmed, 2010.

5Narciso acha feio o que não é…”, de Olindina da Cunha e Natalia Bartolacci. In: O dia a dia nas creches: crônicas brasileiras, de Ana Maria Mello et al. Porto Alegre: Artmed, 2010.

Espelho e o mito de Narciso

Em Metamorfoses, Ovídio conta a história de uma ninfa bela e graciosa, tão jovem quanto Narciso, chamada Eco, e que amava o rapaz, em vão. A beleza de Narciso era tão incomparável que ele, embevecido, pensava que era semelhante a um deus, comparável à beleza de Dionísio e Apolo. Como resultado disso, Narciso rejeitou a afeição de Eco até que esta, desesperada, definhou, deixando apenas um leve eco nas cavernas da floresta ali perto, um sussurro débil e melancólico. Para dar uma lição ao rapaz frívolo, a deusa Nemeses condenou Narciso a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se nas margens do rio e definhou, olhando-se na água e se embelezando. As ninfas construíram-lhe uma pira, mas quando foram buscar o corpo, apenas encontraram uma flor no seu lugar: a flor chamada narciso.
Disponível em: http://www.fabulasecontos.com.br

Espelho e história

A primeira manifestação da observação da imagem provavelmente aconteceu quando o homem observou o seu reflexo na água. Por meio desse simples exercício, o homem começou a reconhecer a sua própria imagem e a valorizar superfícies reflexivas.

Segundo o apontamento de alguns pesquisadores, a primeira tentativa de se fabricar um espelho aconteceu na Idade de Bronze, há cerca de 3000 a.C. Através do polimento de metais e pedras, algumas antigas populações do atual Irã seriam responsáveis pela fabricação dos primeiros espelhos de toda a História.

Longe de parecer com os espelhos atuais, os modelos dessa época somente refletiam os contornos de uma imagem bastante distorcida. Somente no fim do século XIII é que espelhos com maior nitidez foram fabricados. Combinando uma camada de vidro e uma fina lâmina de metal, os espelhos podiam agora revelar nitidamente as feições do indivíduo. Contudo, assim como as novidades que aparecem no mercado, os espelhos eram raros e custavam muito caro. Entre os séculos XV e XVI, um espelho de proporções médias poderia valer mais que as pinturas de um pintor renascentista ou um poderoso navio de guerra.

A primeira ação em prol da popularização dos espelhos aconteceu no século XVII. No ano de 1660, o rei francês Luís XIV designou um de seus ministros para que subornasse artesãos venezianos, detentores de uma eficiente técnica de fabricação de espelhos. Graças a essa tramoia, os franceses tiveram condições para construir o lendário salão de espelhos encontrado no Palácio de Versalhes.

A partir da Revolução Industrial, os espelhos começaram a ficar mais baratos. Dessa forma, o útil adereço começou a entrar os ambientes domésticos de famílias das mais variadas classes sociais. Mais do que um simples apetrecho para o exercício da vaidade, os espelhos nos permitem conhecer importantes princípios da Física, integram o funcionamento de várias máquinas e até servem como objeto de decoração.
Disponível em: http://www.alunosonline.com.br/historia/historia-do-espelho.html

Dica de leitura

O espelho, de Tatiana Belinky; ilustração de Daniel Bueno. São Paulo: Caramelo/Ed.Saraiva, 2012

Para saber mais

Livros

  • Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil / Ministério da Educação e dos Desporto, Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF, Volumes 1 e 2.
  • O dia a dia nas creches: crônicas brasileiras, de Ana Maria Mello et al. Porto Alegre: Artmed, 2010.
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