Beleza se põe à mesa

“Beleza não põe a mesa.” Reinterpretando o ditado, cozinheiras de creches provam que valorizar a parte estética do ambiente das refeições torna mais agradável e harmonioso o hábito de comer. Com gestos simples, como usar toalhas de tecido, trocar pratos de plástico por de vidro, bacias por travessas coloridas, elas melhoram sensivelmente os momentos de refeições das crianças. Saiba mais sobre as sutis relações entre beleza, harmonia e alimentação na entrevista com Elza Corsi1, especialista em degustar com os olhos

Mesas com poucas crianças, toalhas, guardanapos, garfos, facas e, para enfeitar, flores. Creche Lar Veneranda – Santos

hora da alimentação é bastante privilegiada na rotina das creches: as crianças chegam a se alimentar, em alguns casos, cinco vezes ao dia. Em geral, esses momentos acontecem em locais frios e impessoais, bem diferentes dos espaços onde as pessoas se alimentam em suas casas ou restaurantes.

Elza Corsi ajuda a refletir sobre o lugar do belo na hora das refeições. Para ela, a instituição de educação, ao valorizar os momentos das refeições, cumpre o importante papel na socialização das pessoas numa prática que o adulto provê e a criança usufrui.

Cuidados com a mesa, além de estimular a criança a comer mais e melhor, ajudam a construir um hábito social saudável e agregador como é a alimentação. Não basta dar comida. É importante também garantir o direito a um prato bonito, bem servido, saboroso e nutritivo, num espaço agradável onde se pode conversar com os amigos enquanto se alimenta.

Nesta entrevista, Elza Corsi conta como tem trabalhado para realizar esses propósitos a partir de reflexões sobre as relações entre a alimentação e a estética (considerada aqui no senso comum como reflexão a respeito da beleza sensível despertada pelos objetos).

avisa lá: Como a discussão sobre a estética foi parar na cozinha?

Elza: A estética tem a ver com refletir sobre o belo, sobre a diversidade de emoções e sentimentos que ele suscita no ser humano e também envolve valores socialmente construídos. A roupa que usamos, um quadro, ou objeto de decoração que escolhemos, o tipo de comida e o jeito de comer dizem muito sobre o nosso senso estético. Portanto, ainda que não consciente, a estética é parte do cotidiano, e torná-la visível abre caminhos inusitados para cozinheiras e demais profissionais envolvidos.

Ao afinarem o olhar para o belo, modificam o jeito de apresentar “suas produções” expressando diferentes valores sobre a alimentação, as crianças, o próprio trabalho e a identidade profissional. Comecei a pensar sobre essas relações quando trabalhava com um grupo de cozinheiras de São Paulo, na época de implantação do self-service em algumas creches.

A mudança na organização do almoço retirou algumas funções da cozinheira, como fazer um a um, os pratos das crianças, em compensação foi possível valorizar a forma de apresentação dos alimentos.

Eu brincava com o ditado “beleza não põe a mesa”, mas dizia que era possível “por beleza na mesa”, afinal outro dito popular diz que comemos com os olhos. Então as cozinheiras passaram a apresentar melhor a comida para as crianças, que escolhiam o quê e quanto comer.

Ao escolher o que vai comer, arranjar cuidadosamente os alimentos no prato, a criança é incentivada a comer melhor

avisa lá: Que mudanças foram empreendidas para assegurar a beleza, o aconchego e a harmonia à mesa?

Elza: Primeiro passamos a usar jogos americanos confeccionados pelas crianças, a partir de um trabalho de artes, porque, antes, elas comiam em mesas de fórmica, sem toalha, frias, impessoais, empobrecidas, típicas dos ambientes coletivos.

A simples presença desse elemento já melhorou muito o aspecto do refeitório. Depois organizamos uma bancada bonita e funcional para colocar os pratos com a comida. Logo trocamos todos os utensílios. Nessa época ganhei, das diretoras e cozinheiras com as quais eu trabalhava, o livro “Na mesa com Renoir”. Veio na hora certa e foi uma verdadeira bênção para os olhos.

Passei a usar o livro nos encontros de formação, propondo leitura de imagens, consultando estilos, pesquisando para saber mais sobre a arte dos gourmets etc. As cozinheiras, alimentadas por essas e outras imagens, passaram a enfeitar os pratos utilizando coisas muito simples como, por exemplo, um galhinho de salsinha para enfeitar um prato de arroz.

Com um gesto simples transformavam aquele mesmo arroz, que antes era servido numa panela, num prato atraente e bonito. As cozinheiras compreendiam a beleza temporária, frágil e efêmera da culinária, que dá trabalho para montar e que desaparece com as primeiras garfadas.

A modificação na forma de apresentar os pratos gerou um efeito cascata que resultou em outras mudanças. À medida que mexíamos e reconhecíamos que os pratos estavam mais bem compostos, mais harmoniosos, ficávamos mais exigentes com outros detalhes: a toalha deveria valorizar o prato que estava sendo servido. E o refeitório deveria ser mais convidativo. E assim fomos do prato para a mesa, da mesa para as paredes, e das paredes em diante, mudando o refeitório como um todo.

avisa lá: Que dificuldades você encontrou nesse percurso?

Elza: A substituição dos pratos de plástico, comum em muitas instituições, costuma ser polêmica. Há um mito acerca da praticidade e durabilidade do plástico. Na verdade, ele se deteriora rápido, torna-se anti-higiênico, é desagradável ao tato e aos olhos. O uso de pratos de vidro resistentes, duráveis, fáceis de limpar e mais bonitos, no entanto, apresenta resistência.

As justificativas para não utilizá-los concentram-se no fato de que as crianças não vão saber manuseá-los, ocasionando a quebra. Mas isso não é verdade. Uma das crianças, ao ver a novidade, disse para a cozinheira:

“Na minha casa eu sempre como no prato de vidro. Na creche é que a gente come no prato de plástico. Meu irmão vai para a escola e ele também come com prato de plástico. Mas em casa a gente come no de vidro e usa garfo. Não é só colher.”

Isso trouxe para os profissionais um maior entendimento sobre o universo dessas crianças, o repertório delas. As famílias freqüentemente utilizam o prato tradicional de vidro ou louça, e as crianças usam os mesmos talheres dos adultos. Percebemos, na prática, que elas raramente quebravam um prato. Isso acontecia mais no processo de lavagem, na cozinha. Em geral, quando acontecem acidentes no refeitório, é porque tem algum problema na organização que o adulto propôs.

Por exemplo: uma mesa colocada num canto inadequado, impedindo a circulação. Outras vezes tem a ver com o adulto que está trabalhando com aquele grupo específico de crianças e que não tem prática para organizar esse momento e precisa de ajuda.

avisa lá: Você acha que há um modelo ideal para a organização desses ambientes?

Elza: Eu tenho um pouco de medo de falar de modelos ideais porque o senso estético varia muito.O padrão de beleza deve ser construído, recriado, tem que ter uma releitura do que é importante, como marca do lugar, das pessoas. Eu, por exemplo, olho para um vazinho de girassol artificial, sozinho, na prateleira de uma loja, e isso não me diz nada. Mas quando vejo um conjunto deles no refeitório de um centro de juventude, no São Domingos, lá em Dourado, por exemplo, me diz muito!

Vejo mesas para seis crianças, com toalhinhas de tecido xadrez azul e branco, com babadinho, plástico grosso e transparente em cima e um vazinho com três girassoizinhos em cada mesa e reconheço as pessoas. Não sei se eu teria a idéia de decorar as mesas assim, mas a equipe de lá teve. Fizeram uma reunião, decidiram, compraram, arrumaram, e realmente ficou bom, aconchegante, respeitoso. Todo mundo acha lindo porque é a cara daquela equipe.

Já nas creches da Obra do Berço, uma entidade social de São Paulo, os pratos são azul escuros, as toalhas brancas e contrastam com a parede pintada de amarelo clarinho. Também é lindo, porque é daquele lugar e fica bom lá, com aquelas pessoas, que usam e cuidam daquilo tudo. Soluções existem: o problema é a falta de referência que em geral as pessoas têm.

É preciso alimentar o olhar das cozinheiras e faxineiras para apreciar a beleza, apresentar diferentes fotos e imagens de espaços agradáveis onde se pode comer, para que escolham e decidam o que é bonito para elas, o que cabe ali, naquele lugar, com aquelas pessoas e tudo o que elas representam. As soluções estéticas dependem de uma construção coletiva da instituição.

No lar Veneranda, em Santos, flores e frutas bem arranjadas e travessas adequadas incentivam as crianças a servirem-se sozinhas

avisa lá: E do ponto de vista da praticidade, podemos pensar em critérios?

Elza: Quanto mais simples for o local onde a criança vai comer e os utensílios que vai utilizar, melhor. É preciso conciliar o que é bonito, prático e seguro. Pratos de vidro ou louça sem muitos relevos e garfos lisos, de inox, sem muito floreado, fáceis de lavar, parecidos com os que usamos no cotidiano.

É interessante usar, no refeitório, sobretudo nas paredes, cores mais quentes, do ocre ao laranja, passando pelo amarelo, porque estimulam o apetite e tornam o ambiente mais aconchegante. Toalhas também são fundamentais porque é próprio da nossa cultura utilizá-las. Cores neutras como branco ou amarelo destacam melhor o prato. Podem ser forradas com plástico grosso e transparente.

Os móveis também devem ser bem escolhidos: mesas com 4 ou 6 lugares são mais interessantes porque permitem que as crianças conversem, pratiquem a socialização. Deve-se evitar a todo custo mesas enormes para muitas crianças, parecendo com as de um asilo. Pode-se decorá-las com arranjos simples e delicados, como um cachepô pequeno com florzinhas secas, que duram bastante.

Há também que se pensar nos demais utensílios: travessas transparentes que permitam que se enxergue os alimentos, tigelas, saladeiras, compoteiras etc., de boa qualidade, adequadas para servir diferentes pratos.

avisa lá: Como as crianças reagiram a tantas mudanças no momento da refeição?

Elza: Nas creches de Osasco, elas perguntavam nos primeiros dias: “é festa? Vai ter festa?” Como se só pudessem receber coisas bonitas em momentos festivos. E a gente dizia:“não, vai ter sempre tudo isso”.A primeira conquista visível é que as crianças passaram a ser mais cuidadosas com o espaço: se derrubavam algo, tratavam de recolher e muitas ajudavam as crianças menores na limpeza. Passaram a cuidar melhor do seu lugar na mesa, do seu prato ao se servir, dos seus talheres etc., e a degustar a comida, a dedicar mais tempo a isso, aproveitar aquele momento não só para “encher a barriga e matar a fome”.

Um percurso parecido aconteceu no Centro de Juventude, em Dourado. Nos primeiros dias algumas crianças puxavam disfarçadamente os vasinhos que decoravam as mesas para colocar mais próximo de seus pratos, como se fossem só delas. Elas não acreditavam que aquele espaço ia ficar bonito todos os dias.

Hoje, oito meses depois, não há mais um vasinho fora do lugar, nenhuma florzinha estragada e as crianças se comportam de um jeito muito diferente. Antes, pegavam o prato e saíam andando e comendo em pé, de qualquer jeito, mas hoje se sentam à mesa.

O uso de talheres adequados possibilita à criança aprender a manuseá-los

avisa lá: As famílias percebem a mudança de hábitos das crianças? Como elas avaliam esse trabalho?

Elza: É um preconceito achar que as famílias porque são pobres não ligam e não valorizam esses cuidados. Há inúmeros depoimentos de mães comentando sobre as conquistas em relação à autonomia, com as crianças querendo servir-se sozinhas, pedindo para usar outros talheres e não só a colher, e ainda cuidando de organizar melhor seu lugar na mesa. A criança sabe o que é bom para ela. E do que é bom e prazeroso, ela se apropria com facilidade.

As crianças levam novas demandas para casa, que ajudam a família a ver de forma diferente o ato da alimentação. Assim como a instituição pode oferecer novos referenciais para as famílias, é importante que ela incorpore hábitos alimentares saudáveis das famílias, ampliando a integração interinstitucional.

avisa lá: O cuidado com a organização das mesas e dos pratos é exclusivo da cozinha? Ou todos na instituição têm que estar envolvidos?

Elza: Pode se iniciar na cozinha. Quando as cozinheiras começam a apresentar os pratos de forma mais cuidadosa, em geral passam a receber muita ajuda dos educadores. Eles vão ficando mais sensíveis às questões da alimentação e trabalham com as crianças os diferentes combinados para os momentos das refeições.

Vários trabalhos de artes, por exemplo, são utilizados para compor painéis decorativos do refeitório. E as faxineiras também participam, se responsabilizando por embelezar com plantas e conservando sempre bonito aquele ambiente. A diretora tem que garantir tempo para que a cozinheira e todo o pessoal de apoio possa refletir, planejar e cuidar dos espaços.

Um refeitório que tem toalha, flores, plantas etc. vai precisar de mais tempo para ser cuidado, de gente que limpe e deixe tudo organizado. Não é muito complicado: em 10 minutos dá para arrumar de uma forma mais bonita.

avisa lá: Como cuidar da formação das cozinheiras nesse processo?

Elza: É preciso que a direção assuma esse compromisso e crie um projeto de formação dos funcionários, para que eles possam conhecer outras experiências, refletir sobre os cuidados com o espaço, com as pessoas e tomar providências no cotidiano. Deve também ser garantido o acesso a outras referências, materiais sobre o assunto. É fácil encontrá-los.

Com esse boom de novas receitas, do resgate do hábito de fazer comida, das tradições culinárias de várias regiões do país, muita coisa foi publicada.

Há uma enorme variedade de livros sobre culinária. Em qualquer banca de jornal há revistas interessantes que servem para tirar receitas e admirar arranjos de pratos e mesas.

Tudo isso pode ser objeto de estudo das cozinheiras. Conhecendo mais sobre a arte culinária, elas podem aprender desde a combinação de cores numa salada até como decorar pratos que vão à mesa. Aprendem assim a cuidar da cor e da forma. Esse trabalho auxilia a construção da identidade profissional e também pessoal.

Quando as pessoas valorizam seu trabalho, tendem a fazer o melhor e, conseqüentemente, são mais valorizadas e passam também a cuidar melhor de si mesmas. As cozinheiras começam a pôr uma presilha aqui, um colar ali, trazem roupas para trocar e se arrumar para a ho-

1Nutricionista e formadora em saúde e gerenciamento nos projetos de formação continuada do Instituto Avisa lá.

Na AME, os livros de receita têm lugar reservado nas prateleiras da cozinha

Bibliografia:

  • Bernard Naldin, Dujean e outros. À mesa com Renoir. Salamandra Consultoria Editorial.Tel.: (21) 240-6306.
  • Bolaffi, Gabriel. A saga da comida: receitas e história. Distribuidora Record de Serviços de Impressão.Tel.: (21) 585-2000.
  • Louis Flandrin, Jean e Mássimo Montanari. História da Alimentação. Ed. Estação Liberdade.Tel.: (11) 3824-0020.

Sites: www.casadoazeite.com

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