O papel do jogo na educação das crianças

Conhecer como e por quê as crianças brincam é caminho seguro para uma prática educativa que respeita o seu fazer lúdico. A observação atenta das brincadeiras e o respaldo teórico colaboram para que as intervenções dos educadores sejam apropriadas


O presente artigo1 pretende tecer algumas considerações a respeito do jogo de faz-de-conta infantil e o papel que ocupa no desenvolvimento e educação das crianças. Para tanto, baseia-se fundamentalmente nas concepções elaboradas pela psicologia e pedagogia soviéticas, representadas pelos investigadores D.B. ELKONIN, L.S.VIGOTSKY, A.N. LEONTIEV e pelos pedagogos A.V. ZAPAROZHETZ e A.P. USOVA. Estes cientistas, durante o período compreendido pelos anos 20 e 40 deste século, aprofundaram estudos relativos à origem e desenvolvimento do jogo infantil entre as crianças da URSS, organizando propostas para a utilização dos mesmos como recurso pedagógico nas creches e pré-escolas do país.

A partir da síntese de algumas das idéias desses estudiosos, pretende-se analisar concretamente o jogo de três crianças entre cinco e seis anos, levantando alguns elementos constitutivos do mesmo que poderiam orientar uma prática pedagógica junto a crianças em idade pré-escolar. Segundo os autores russos (ELKONIN, 1984), ao contrário das concepções idealistas que concebem o jogo como algo inato nas crianças, este, na sua forma encontrada atualmente, é social por sua origem e natureza, constituindo-se num modo de assimilar e recriar a experiência sócio-cultural dos adultos. Ou seja, o jogo de faz-de-conta infantil constitui-se uma atividade na qual as crianças, sozinhas ou em grupo, procuram compreender o mundo e as ações humanas nas quais se inserem cotidianamente.

Essa atividade, a partir; geralmente, do lo ao 3º ano de idade, variando conforme a origem sócio-cultural das crianças, define-se pelos seguintes critérios:

  • que a criança, durante o jogo, possa utilizar-se de objetos substitutos, ou seja, que esta confira aos objetos significados diferentes daqueles que normalmente os mesmos possuem;
  • que exista uma trama ou situação imaginária;
  • que as crianças realizem ações que representem as interações presentes na sociedade em que vivem;
  • que sejam respeitadas as regras constitutivas do tema que orienta o jogo.

Este jogo, ou faz-de-conta, ou brincadeira, como costuma ser denominado pelas próprias crianças, não surge espontaneamente, mas sob a influência da educação. Se, de um lado, no período pré-escolar, a criança já é capaz de desenvolver algumas atividades essenciais, ela não pode, sozinha, satisfazer suas necessidades vitais de sobrevivência e/ou de conhecimento do mundo real e simbólico onde se encontra. Nesse sentido, segundo LEONTIEV …

“no decurso do desenvolvimento da criança, sob a influência das circunstâncias concretas de sua vida, o lugar que ela ocupa no sistema de relações muda. A idade pré-escolar é o período da vida da criança em que se abre, pouco a pouco à mesma, o mundo da atividade humana que a rodeia.

Pela sua atividade e, sobretudo, por seus jogos, que ultrapassaram o quadro estreito da manipulação dos objetos circundantes e da comunicação com os pais, a criança penetra num mundo mais vasto de que se apropria de forma ativa. Toma posse do mundo concreto enquanto mundo de objetos humanos com o qual reproduz as relações humanas. Conduz um automóvel,“dispara com a espingarda” — se bem que o seu carro não possa ainda rolar realmente, nem a sua espingarda, disparar. Mas a criança não tem necessidade disso nesse estágio do seu desenvolvimento, pois as suas necessidades vitais fundamentais são satisfeitas pelos adultos, independentemente de sua atividade“2.

Se estas necessidades são satisfeitas imediatamente pelos adultos, as outras, referentes à construção de conhecimentos sobre o mundo que descobre pouco a pouco, serão satisfeitas apenas através destes, por meio da educação. Mais especificamente, no mundo moderno, que historicamente foi construindo uma visão de criança e a ela destinando um espaço específico, longe da produção social. A educação tem-se utilizado de um recurso pedagógico bastante rico, por meio do qual as crianças podem apropriar-se do mundo não diretamente, mas ativamente através da representação.

Esse recurso pedagógico caracteriza-se como o jogo de faz-de-conta que recria, através da representação, situações as mais variadas da vida e da cultura humana, com as quais as crianças podem defrontar-se, confrontar-se e, ao vivenciá-las, construir e reconstruir hipóteses a respeito do funcionamento dos fenômenos sociais, culturais, físicos, biológicos e afetivos.

Assim, com a ajuda de material e de determinadas ações sobre ele, numa configuração espacial que lhe é propícia, bem como com a ajuda da linguagem, a criança vai criando jogos e descobre diferentes aspectos da realidade que vai reconhecendo, variando e transformando (USOVA, 1979).

Com a intenção de dar concretude ao que foi dito até agora, subsidiando uma reflexão que oriente um projeto que leve em conta o jogo infantil como recurso pedagógico de construção de conhecimento pela criança, segue a descrição de uma brincadeira de um grupo de três crianças entre cinco e seis anos:

Três crianças, entre elas uma menina de cinco anos e dois meninos, um com cinco anos e o outro com seis anos, brincam, entre o quarto e a sala de um apartamento, com miniaturas do tipo PLAYMOBIL. Os meninos interagem bastante entre si e a menina fica rodeando o jogo, observando-o, só entrando se chamada ou em função de algo que ocorre no mesmo. O material utilizado caracteriza-se por:

  • cinco bonequinhos tipo PLAYMOBIL, caracterizados como trabalhadores braçais pelos detalhes dos chapéus e vestimentas;
  • uma miniatura de carrinho, um balde com pequenas pás, um ancinho, um rolo compressor, uma placa de trânsito simbolizando “homens trabalhando’, um porta-garrafas, seis garrafinhas, uma carriola de cimento, uma pá grande e um cavalete bloqueador de passagem.

“Este jogo, ou faz-de-conta, ou brincadeira, como costuma ser denominado pelas próprias crianças, não surge espontaneamente, mas sob a influência da educação”

Para facilitar a leitura, as crianças serão identificadas, simultaneamente, como Felipe (cinco anos), Daniel (seis anos) e Marília (cinco anos). Daniel distribui os bonecos entre si e Felipe, pois os mesmos estavam espalhados pelo chão do quarto após uma “avalanche”. Felipe arruma o balde, o cavalete e as pás em uma pequena área do solo. Marília observa-o.

– Felipe: Ai, que dia bom!

Segura um dos bonecos, passeando com ele pelo quarto, imitando, com a boca, os sons de uma máquina movimentando-se.

– Felipe: Daí, eu tive coragem e segurei!

Refere-se à contenção da “avalanche”, que está sendo representada por uma bola de futebol que se encontra num dos cantos do quarto.

– Daniel: Não, nós dois!

Refere-se à ação passada com a contenção da avalanche”.

– Felipe: Não, eu tive coragem e segurei primeiro!

Daí, veio a outra (‘avalanche’). Essa era a filhinha. Segura a bola (“filhinha”) e anda pelo quarto com ela até que a deixa sobre a cama. Ao mesmo tempo, repete sons onomatopéicos com a boca, imitando o cair de pedras (pffrrf…).

– Felipe: Da essa avalanche começou a cair e ninguém venceu ela!
– Daniel: Só eu!
– Felipe:“Não, ninguém!
– Daniel:‘Nós dois vinha aqui!

Ressalte-se aqui o desenrolar do jogo que, pela sua dinâmica, mistura o tempo todo vivências que são imaginárias e outras que são reais entre as crianças. Ao mesmo tempo em que a trama desenrola-se, a respeito e sobre a “avalanche”, os meninos intercalam diálogos verdadeiros entre si, procurando negociar o desenvolvimento da trama de tal forma que a mesma satisfaça a ambos. Nesse sentido é que VIGOTSKY apontaria o jogo como prenúncio do pensamento adulto abstrato, pois através do confronto de diferentes ideias a respeito das coisas (no caso, sobre a “avalanche”) e na acomodação de algumas regras, as crianças vão desenvolvendo o que ele considera imaginação.

Ao mesmo tempo, podem exercitar seu autocontrole, ao serem obrigados, durante a ação do jogo, a adaptar suas próprias ações às do companheiro e ao tema do jogo.

– Felipe: Ela está rodando muito!

Refere-se agora à “avalanche”.

– Daniel: Salve-se quem puder! Segura aqui, Felipe,meu bonequinho, por favor!

Sai da trama por segundos, enquanto vai buscar outro bonequinho.

– Felipe: Daí ela morreu! A avalanche morreu!
– Daniel: Cada um cuidava de uma, tá?
– Felipe: Daí, eu jogava ela!
– Daniel: Nós dois jogava, lá?
– Felipe: Eu vou dentro do berço, tá?

Informando sobre sua própria ação.

Marília traz novo bonequinho para os meninos. O jogo é interrompido por instantes para que comam chocolates. É importante observar que, enquanto as idéias desenvolvem-se entre as crianças, explicitadas pelos diálogos e negociações entre os meninos, estes percorrem todo o espaço do quarto, ora em direção à cama, ora ao berço, ora ao armário, mas nunca aleatoriamente; na medida em que vão brincando, vão definindo usos diferenciados dos espaços, cada qual com uma função especifica para o jogo.

– Daniel: Daí, as duas – “avalanches”
– quebraram, tá? A mãe foi e salvou ela!
– Felipe: Não, a mãe tava morrida!
– Daniel: Não, a mãe foi embora.
– Felipe: O meu – boneco – lava escondidinho e ia nela.

Coloca um bonequinho sobre a bola, como se estivesse cavalgando a avalanche.

– Marília: Sempre esses três bonequinhos sobram!…

Oferece-lhes outros bonecos para brincar.

– Daniel: Pronto, vamos fugir!

Antecipa verbalmente que deverão fugir da “avalanche” que está por vir.

– Felipe: Não! vamos tampar tudo, vamos fazer um reforço, já que a gente é trabalhador!

Daniel arruma os objetos, gesticulando bastante.

– Felipe: Não, assim não! A gente não tava fazendo uma armadilha! Enquanto isso, eu vou fazendo o reforço.

– Daniel: Só que ainda não, estou precisando disso.

Pega o instrumento, em miniatura, de puxar terra e simula limpar o chão. Felipe acha graça da ação de Daniel.

– Daniel: A avalanche vai ca… a… in… do!

Ao mesmo tempo em que anuncia a ação, derruba a bola sobre os brinquedos.

– Felipe: Não, eu fiz reforço!
– Daniel: A avalanche vai cair!
– Felipe: Então a gente põe terra.

A bola cai. As crianças suspendem o diálogo e observam as conseqüências. Ao final de quinze minutos de jogo, mostram-se cansados e guardam os brinquedos, propondo-se a outra atividade.

Para compreender melhor este jogo, tentemos analisá-lo segundo algumas categorias que nos poderão permitir, mais tarde, a elaboração de um projeto pedagógico do jogo:

  • Tema – refere-se a uma esfera da realidade que as crianças refletem no jogo, dependendo sua variedade da amplitude de repertório vivencial a que estão submetidas.
  • Conteúdo – aquilo que foi selecionado do tema, variando do uso simples do material até as inter-relações entre os papéis assumidos e a realidade vivenciada.
  • Duração do jogo – tempo utilizado pelas crianças para as atividades.
  • Número de participantes – número de crianças.
  • Papéis assumidos pelas crianças durante o jogo – são os desempenhados por uma criança quando ela assume integralmente outro personagem, seja ele um adulto, outra criança, um animal, um herói televisivo etc.Ao representar um papel, a criança tem a possibilidade de realizar ações que expressem as do personagem ao mesmo tempo em que estabelece relações com essas ações. A qualidade com a qual uma criança representa um papel é dada pela subordinação entre este e o cumprimento das regras ocultas implícitas em qualquer papel. Essas regras não são determinadas pelo adulto, mas serão desenvolvidas à medida que o papel vai aprofundando-se.
  • Interações lúdicas e reais entre as crianças – são as relações que se estabelecem entre as crianças e que podem ser dos dois tipos citados acima. As interações lúdicas surgem dentro da brincadeira e determinam seu conteúdo, baseando-se nos papéis assumidos pelas crianças. As interações reais ocorrem durante o jogo e referem-se a ações sobre este, por exemplo, quando as crianças combinam sobre o tema do jogo, com que objetos vão brincar, em que lugar etc., e que podem ocorrer antes ou no decorrer do mesmo.
  • Materiais utilizados – são os que as crianças usam para brincar e cuja ação sobre estes vai modificando-se à medida que crescem. Constituem-se de uma variedade de objetos que podem ser sucatas industriais; brinquedos simples, de representação explícita (como por exemplo, panelinhas, bonecos, carrinhos e uma infinidade de miniaturas); blocos para construir; fantasias; roupas velhas; maquiagem; barbante; giz, caibros de madeira etc. Quanto menores as crianças mais os objetos definem seus jogos; à medida que crescem e sua capacidade de imprimir significados diferentes aos objetos desenvolve-se, estes passam a estar condicionados às idéias geradas pela brincadeira.
  • lntervenção do adulto – é a ação desempenhada pelo adulto durante o jogo. Ela é variada e diferencia-se em função das necessidades colocadas pelos grupos de crianças. O adulto pode colocar-se como um dos participantes da brincadeira, introduzindo um novo objeto ou questionando as crianças sobre o que fazem, o que brincam, como brincam, o que necessitam para brincar. Pode colocar-se apenas como observador para, em outro momento, enriquecer o jogo através de atividades dirigidas que ampliem os conhecimentos das crianças. Pode auxiliar na escolha do material, organização do espaço e das crianças.

Dessa forma, fica fácil depreender que a “Avalanche” escolhido pelas crianças como tema do jogo demonstra, em primeiro lugar, um contato prévio dos meninos a respeito do assunto, e um desejo em aprofundar conhecimentos sobre o mesmo. Esse desejo busca uma realização no jogo através de um conteúdo bastante especifico, que é a atuação humana frente a um fenômeno físico, qual seja, a produção da “avalanche” e a tentativa de contê-la pelos “trabalhadores” – bonecos.

“Ressalte-se aqui o desenrolar do jogo que, pela sua dinâmica, mistura o tempo todo vivências que são imaginárias e outras que são reais entre as crianças”

Na tentativa de realizar esse desejo por um conhecimento específico, as crianças jogam durante quinze minutos, estabelecendo relações lúdicas intercaladas com relações reais, construindo hipóteses a respeito de um fenômeno tísico na sua relação com os homens.Assim, os objetos iniciais existentes (PLAYMOBIL) definem o tema do jogo, numa relação dialética que vem dar concretude a necessidades latentes nas crianças.

Ou seja, a necessidade de entender como se constitui um fenômeno físico (avalanche) e a forma pela qual o homem domina-o pode concretizar-se para as crianças na medida em que o material existente facilitou a vivência dessas questões pelas crianças. Ao mesmo tempo, ao assumir os papéis de trabalhadores através das miniaturas, as crianças não desempenham trabalhadores específicos conhecidos no sentido estrito da imitação – mas funções sociais típicas, corporificadas no conceito de trabalhadores.

Quando Felipe diz: “…já que a gente é trabalhador” isto não quer dizer, como poderia parecer, que ele se prepara para ser trabalhador quando crescer, mas, ao contrário, significa que busca compreender o conceito de trabalhador numa situação dada. Isso se dá quando, ao assumir o papel de trabalhador, ao mesmo tempo em que desempenha as ações típicas deste e as regras que lhe são implícitas (todo trabalhador deve necessariamente trabalhar), Felipe estabelece relações com esse papel, tentando compreendê-lo.

Nesse sentido, o jogo permite uma assimilação e apropriação da realidade humana pelas crianças já que este não surge de uma fantasia artística, arbitrariamente construída no mundo imaginário da brincadeira infantil; a própria fantasia da criança é engendrada pelo jogo, surgindo precisamente neste caminho pelo qual a criança penetra na reaIidade3.

Para obter tal êxito, a criança utiliza-se de uma forma de pensamento que lhe é própria, na medida emque o aspecto humano das coisas aparece, ainda, para ela, diretamente na forma da ação humana com essas coisas, e o próprio homem surge para ela como o denominador das coisas que age nesse mundo. Por isso é que se relacionam, no jogo citado, com o fenômeno físico – avalanche – como se fosse uma pessoa –, numa tentativa de entendê-lo na sua relação com os homens.

Através das ações lúdicas com os “bonecos-trabalhadores” e a “bola-avalanche”, as crianças constroem hipóteses e elaboram soluções para o problema colocado pelo tema do jogo. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que constróem modelos cognitivos de compreensão de diversos fenômenos (no caso, um fenômeno físico e sua relação com o trabalho humano), as crianças enriquecem sua personalidade como sujeitos que agem na realidade originária desses mesmos fenômenos, juntamente com outras crianças.

Por último, é preciso sublinhar que, no jogo, relações reais de interação entre as crianças ocorrem com a mesma intensidade que as lúdicas. Ao mesmo tempo em que os meninos desempenham papéis de trabalhadores e fazem a “avalanche” ter existência real, discutem entre si como o conteúdo do jogo deve ser elaborado. Assim, a brincadeira aparece como fator de organização entre as crianças que compreendem, durante a atividade, necessidades de uma escuta complementar e de ações complementares que condicionam o próprio desenrolar do tema.

É preciso lembrar, ainda, que as interações entre as crianças podem darse de diferentes maneiras, como fica evidenciado na participação de Marília. Apesar de não ter sido “arrebatada pelo jogo” (LEONTIEV, 1988), Marília se mantém realista, procurando auxiliar a brincadeira em diversos momentos e mostrando-se interessada a partir de parâmetros que lhe são próprios.

Sem dúvida, o jogo descrito apontaria ainda para a necessidade de se perguntar qual seria o papel do adulto e, por que sistematizar um projeto pedagógico do jogo se, sozinhas, as crianças podem ter um desenvolvimento bastante enriquecedor.

A resposta está em que, apesar de aparentemente ausente, o adulto se faz presente na brincadeira da avalanche através de pré-requisitos que o mantêm, quais sejam:

  • as crianças demonstram um repertório vivencial rico, possibilitado, provavelmente, pelos adultos ou pelos instrumentos que estes oferecem às mesmas, como televisão, rádio, cinema, viagens, livros etc.;
  • o espaço utilizado pelas crianças estava integralmente à sua disposição;
  • o material existente – PLAYMOBIL – facilitou a ação das crianças;
  • as crianças tiveram o tempo que quiseram para brincar sem restrições.

A análise, portanto, desta brincadeira ocorrida em ambiente doméstico nos evidencia o papel que a mesma desempenha no desenvolvimento infantil. A partir dela e dos pressupostos teóricos utilizados, pode-se depreender sua importância como recurso empregado pelas crianças para compreender o mundo que as rodeia, assim como é um instrumento de organização independente e autônomo das mesmas.

Claro está em que, se as crianças brincam de maneira independente em casa, com os amigos ou parentes, a prática e a história nos têm revelado que elas também brincam, e muito, na escola. O fato é que, nem sempre, suas brincadeiras são levadas em conta pelo currículo pré-escolar e quando o são aparecem apenas como recreação ou possibilidade de desgaste de energia para que, em sala, as crianças possam concentrar-se em atividades didáticas dirigidas.

A questão que se coloca, nesse artigo, é como levar em conta o jogo infantil ao serem elaborados planos pedagógicos pré-escolares, considerando-se o exposto até agora. Ou seja, como transformar o jogo infantil em recurso pedagógico pré-escolar de construção de conhecimento pelas crianças e como instrumento de organização autônomo e independente das mesmas.

“O adulto pode colocar-se como um dos participantes da brincadeira, introduzindo um novo objeto ou questionando as crianças sobre o que fazem, o que brincam, como brincam, o que necessitam para brincar”

Para alcançar tal objetivo é preciso, inicialmente, considerar as brincadeiras que as crianças trazem de casa ou da rua e que organizam independentemente do adulto como diagnóstico daquilo que já conhecem, seja do mundo tísico ou social assim como do afetivo. Por outro lado, devem-se considerar os conteúdos emocionais trazidos por cada criança e que permitem que o joga se realize.

Para garantir o aparecimento do jogo independente, faz-se necessário:

  • que a rotina escolar contemple períodos razoavelmente longos entre as atividades dirigidas, para que as crianças sintam-se à vontade para brincar;
  • que existam materiais variados, organizados de maneira clara e acessível às crianças, de tal forma que possam deflagrar e facilitar o aparecimento das brincadeiras entre elas, O acesso e a organização dos materiais devem levar em conta a idade das crianças, sendo seu uso coordenado pelo adulto responsável pelo grupo. E importante ressaltar que, quanto menores as crianças, sua variedade deve ser menor, de tal forma que elas possam explorar ao máximo as propriedades dos mesmos e iniciar um processo de representação com eles. Quanto maiores forem as crianças, pode-se manter um número mais variado de objetos, inclusive, classificando-os e agrupando-os em atividades organizadas com as crianças – segundo suas propriedades e usos específicos;
  • que a sala onde as crianças passam a maior parte de seu tempo tenha uma configuração visual e espacial propícia ao desenvolvimento da imaginação. Os movéis, com mesas, bancos, cadeiras etc., devem ser de fácil manipulação para permitir a reorganização constante do local pelas crianças, e a construção de casinhas,“ cabanas”, “lojas”, “castelos” etc. É importante, ainda, garantir um canto com espelho, maquiagens, roupas e fantasias, para que as crianças possam utilizá-las nos períodos de jogo;
  • que haja um período em que as crianças e o adulto responsável pelo grupo possam conversar sobre a brincadeira que vivenciaram, sobre as questões que se colocaram, o material que utilizaram, os personagens que assumiram, as crianças com as quais interagiram;
  • que o jogo seja incorporado no currículo como um todo, e as questões colocadas no seu desenrolar possam fazer parte de pesquisas desenvolvidas em atividades dirigidas pelas crianças; ampliadas através de passeios, observação da natureza, projeção de vídeos, escuta de rádio, música, leituras etc.;
  • que o adulto seja elemento integrante das brincadeiras, ora como observador e organizador, ora como personagem que explicita ou questiona e enriquece o desenrolar da trama, ora como elo entre as crianças e os objetos. E, como elemento mediador entre as crianças e o conhecimento, o adulto deve estar sempre junto às primeiras, acolhendo suas brincadeiras atento às suas questões, auxiliando-as nas suas reais necessidades e buscas em compreender e agir sobre o mundo em que vivem.

(Gisela Wajskop, doutora em Metodologia de Ensino e Educação Comparada pela FEUSP. Atualmente dirige o Curso Normal Superior Singularidades)

1 Este artigo foi publicado originalmente no caderno Idéias, 7. FDE. São Paulo, 1990.

2 Alexis N. Leontiev, “O desenvolvimento do psiquismo na criança” In: O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa, Ed. Horizonte. Universitário, p. 287.

3 Alexis N. Leontiev. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. A.N Leontiev, A.R. Luria, LS.Vigotsky. S. Paulo. Ícone, Editora da USP, 1988, p. 130.

Bibliografia

  • Organización de la actividad ludica en niños de 4 a 6 años. Mercedes E. Boronat. Ciudad de La Habana, Cuba, 1974-76. Pesquisa de Mestrado (mimeo).
  • Psicologia del juego. D.B. Elkonjn. Ciudad de La Habana, Cuba, Editorial Pueblo y Educación, 1974.
  • O desenvolvimento do psiquismo. A.N. LEONTIEV. Lisboa, Horizonte Universitário.
  • Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. A.N. Leontiev et alii. São Paulo, Icone: Editora da Universidade de São Paulo, 1968.
  • El papel del juego en Ia educación de los niños. A.P. Usova. Ciudad de la Habana, Cuba, Editorial Pueblo y Educación, 1979.
  • A formação social da mente. L.S.Vigotsky. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1984.
  • Brincar na Pré-Escola. Gisela Wajskop. 2002 – São Paulo, Ed. Cortez, 6ª edição.
  • Creches: atividades para crianças de zero a seis anos. Gisela Wajskop. 2000 – São Paulo, Ed. Moderna, 3ª edição.
  • Acertando o Passo. Gisela Wajskop. 2002 – São Paulo, Ed. Callis. Contato gisela@singularidades.com.br
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