Lucila Silva de Almeida*
O provérbio africano “É preciso uma aldeia para educar uma criança” expressa a ideia de que a educação não é responsabilidade exclusiva da família ou da escola, mas sim de toda a comunidade. Ele ressalta a importância das relações sociais na formação dos bebês e das crianças, reconhecendo que o desenvolvimento infantil acontece por meio das interações com diferentes pessoas, espaços e experiências.
Nesse sentido, a educação se dá em uma rede de apoio, onde cada integrante da comunidade — familiares, vizinhos, professores e demais membros — contribui para a construção dos valores, do conhecimento e do pertencimento cultural da criança. Somos tecidos de todos essas relações. Tecidos destas aprendizagens!
Esse olhar coletivo fortalece a ideia de que o cuidado e a aprendizagem são processos compartilhados, que envolvem diálogo, respeito e corresponsabilidade.
Digo isto porque, morando sozinha com minhas filhas e numa cidade como São Paulo em que pessoas queridas acabam por não morar perto, minha aldeia muitas vezes é a escola em que minhas filhas estudam.
Em um tempo em que as redes de apoio das famílias estão cada vez mais frágeis, a escola tem sido um dos poucos espaços onde elas podem recorrer para compartilhar dúvidas, desafios e esperanças sobre a educação de suas crianças. Muitas vezes, é na escola que encontram escuta, orientação e parceria.
Se antes a expressão “é preciso uma aldeia para educar uma criança” fazia referência a uma comunidade ampla e diversa, hoje, para muitas famílias, essa aldeia se resume à escola — um espaço que, além de ensinar, acolhe, cuida e constrói laços. Isso nos convida a refletir sobre o papel social da escola e sobre como podemos fortalecer essa rede de apoio para que ela seja, de fato, um lugar de encontro, trocas e aprendizagens compartilhadas.
No entanto, é uma pena que muitas escolas ainda sejam áridas, com pouco espaço para acolher o outro do bebê e da criança. Em vez de se constituírem como aldeias que abraçam a diversidade, que escutam as singularidades e que reconhecem os diferentes saberes, muitas ainda operam na lógica da rigidez, do controle e da normatização.
Quando a escola se fecha para o diálogo com as infâncias e suas famílias, perde a chance de ser esse território vivo de trocas e pertencimento. Transformar essa realidade exige um olhar atento, disponível e disposto a fazer da escola um verdadeiro espaço de relações, onde todos – crianças, professores e famílias – sejam parte ativa dessa aldeia.
A escola sempre diz que quer a participação das famílias, mas será que, na prática, estamos realmente criando espaços de encontro ou só reforçando distâncias?
Muitas vezes, sem perceber, a escola adota posturas que afastam em vez de aproximar. Reuniões longas e pouco acolhedoras, bilhetes que só cobram, falta de escuta e de momentos reais de troca fazem com que as famílias se sintam mais como espectadoras do que como parceiras. Além disso, quando a escola olha para as famílias apenas pelo que “falta” – o que não sabem, o que não fazem, o que não conseguem – em vez de reconhecer seus saberes e realidades, ela cria um muro invisível que impede o diálogo.
Certa vez, conversando com uma gestora, perguntei qual era seu maior desafio na escola. Sem hesitar, ela respondeu: “As famílias. Os pais não entendem o desenvolvimento das crianças”.
Fiquei em silêncio por um instante, mas essa resposta ecoou em mim de um jeito inquietante. Afinal, e nós, entendemos?
Entendemos que crescer não é um processo linear? Que cada criança tem seu tempo e seu jeito próprio de aprender? Entendemos que a infância não cabe em checklists e tabelas? Que brincar não é perda de tempo? Que o choro é uma forma legítima de comunicação?
E mais do que isso: entendemos as famílias? Suas histórias, seus desafios, suas potências? Ou seguimos esperando delas um modelo idealizado, sem considerar suas realidades?
Muitas vezes, a escola se queixa da ausência das famílias, mas será que nos perguntamos por que algumas delas se afastam? Será que estamos, de fato, criando espaços de acolhimento, escuta e diálogo? Ou só comunicamos regras, exigências e cobranças?
Se queremos construir uma escola que seja, de fato, uma aldeia, onde crianças, professores e famílias possam caminhar juntos, precisamos começar pelo básico: olhar para o outro com disponibilidade, abandonar certezas rígidas e abrir caminhos para o encontro. Talvez, assim, possamos sair da lógica de quem “não entende” para a construção de uma comunidade que aprende junta.
Como podemos cobrar das famílias sendo que muitas vezes, nós professores não entendemos e compreendemos bebês e crianças?
Nesta mesma conversa, que poderia ser com inúmeras outras gestoras, também perguntei sobre a participação das famílias na escola. Ela me respondeu que, embora as reuniões sejam realizadas em horários como o de HTPC (horário de trabalho pedagógico coletivo) e à noite, com o intuito de facilitar a presença das famílias, ainda assim a participação é limitada. “De 100%, apenas 30% aparecem”.
Ao ser questionada por que isso acontecia, a resposta foi direta: “Porque não querem estar presentes, não querem saber da vida do filho”.
Isso me fez refletir profundamente sobre a relação que estamos construindo com as famílias. Elas são de fato reconhecidas como sujeitos da educação? Ou continuamos tratando-as como simples expectadoras do processo escolar, sem considerar suas realidades e necessidades?
Penso nisto, também a partir da minha própria experiência como mãe, algo que sempre me provoca a pensar sobre esse tema. As reuniões que tive a oportunidade de participar foram sempre muito rígidas e previsíveis, com um roteiro claro do que se esperava de nós. Um checklist quase impositivo: prender o cabelo da criança, não mandar de roupa curta, olhar os piolhos.
Essas orientações, embora importantes em alguns contextos, se transformam em um manual de conduta que desvia do verdadeiro propósito de uma reunião escolar: a troca.
Nunca, em nenhuma dessas reuniões, fomos convidadas a nos apresentar, a partilhar um pouco sobre nossas próprias histórias ou perspectivas. Nenhum espaço foi aberto para mostrarmos o que também está acontecendo nas nossas casas e corações.
E o que mais me incomoda é que, em nenhum momento, nos é dado o privilégio de, sequer por 5 minutos, ver algumas fotos ou ouvir um relato simples sobre como acontece o processo de aprendizagem das crianças na escola. Nada que nos aproximasse do cotidiano da sala de aula, da experiência das crianças além das notas ou do conteúdo curricular.
Se queremos de fato envolver as famílias, precisamos repensar essa abordagem rígida, que mais exclui do que aproxima.
O espaço das reuniões precisa ser um lugar de acolhimento, onde as famílias possam ser reconhecidas como parceiras, onde possamos compartilhar, aprender e nos conectar.
Precisamos abandonar a ideia de um encontro marcado pela cobrança e pela formalidade, para abraçar um modelo de escuta mútua onde, tanto a escola quanto as famílias, possam se apresentar, aprender e crescer juntas.
O processo de educação é um caminho compartilhado e se queremos de fato construir uma rede de apoio, precisamos abrir as portas para que as famílias possam entrar, não só fisicamente, mas de coração e mente, sem a rigidez do checklist e com o espaço de pertencimento que todos merecem.
Se queremos, de fato, construir uma aldeia onde a escola e a família caminham juntas, precisamos criar espaços de encontro de verdade, onde as famílias sejam bem-vindas como são e onde a parceria se construa no respeito, na escuta e na troca.
25/03/2025
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Lucila Silva de Almeida – Mestranda no Programa Educação, Política, História e Sociedade, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP. Pedagoga com pós graduação em “Educação de Crianças de 0 a 3 anos” pelo Instituto Singularidades – SP.
Formadora de professoras da rede pública e privada desde 2002. Atualmente trabalha em projetos e programas de formação de professores/coordenadores pelo Instituto Avisa Lá, Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e Secretaria Municipal de São José do Rio Preto.
É autora do livro “Interações: Crianças, brincadeiras brasileiras e escola” – Editora Blucher e coautora do livro “Parlendas para Brincar” , “Adivinhas para Brincar” e “Receitas para brincar” Editora Panda Books e “Práticas comentadas para Inspirar” Editora do Brasil .