Na “Semana Mundial do Brincar”, Lucila Silva de Almeida[i], formadora do Avisa Lá, relata uma experiência que a fez refletir sobre o brincar, a escola e as famílias. Confira!
Fui convidada para ser professora de um módulo sobre o Brincar num curso de pós-graduação para especialistas em crianças de 0 a 3 anos e, justamente no mês em que as aulas ocorreriam em 2020, fomos invadidos pela notícia da pandemia assolando o mundo. Na época não sabíamos quanto tempo levaríamos em isolamento, como seria, qual a melhor atitude a tomar. Ponderamos e optamos por adiar o módulo, deixando-o para o ano seguinte, já na reta final do curso. Afinal, entendíamos que o brincar pressupõe, antes de tudo, presença. Como daríamos as mãos em uma brincadeira de roda a distância? Como faríamos as oficinas de brincadeiras por meio de uma janelinha no computador?
Eis que a pandemia foi se arrastando, abril de 2021 chegou e, ainda, não podíamos nos aglomerar. Substituir o módulo? Jamais! Afinal, como linguagem primordial da infância, não dá para falar em criança pequena sem pensar no brincar. A realidade nos impôs a necessidade de discutir o brincar mesmo que a distância!
Entre cantigas e algumas brincadeiras de movimento fomos pensando as narrativas do brincar, o brincar heurístico, os materiais de largo alcance, os tempos e os espaços, o papel do professor – profissional brincante ao trazer, em sua essência, as brincadeiras, as proposições para as crianças brincarem, profissional que brinca ao escolher os materiais e ao organizar os espaços e que dá tempo suficiente para as crianças viverem suas experiências.
Nestas conversas sobre o brincar, as perguntas que sempre voltavam à cena eram: “o que propor relacionado ao brincar nesta pandemia? Quais as sugestões de propostas? Como fazer tudo isto nesta pandemia?” Conversa vai, brincar vem, chegamos às discussões sobre propostas a distância, sobre o olhar dos pais, as devolutivas das famílias e das escolas e também à falta de escuta efetiva e diálogo entre o retorno dos familiares e as intenções dos professores.
Falamos sobre a necessidade de propostas que possam ser revisitadas mais de uma vez; de as crianças poderem vivenciar as mesmas explorações numa sequência e não em atividades independentes; da possibilidade de encontros síncronos com os pequenos para coisas simples, como brincar de pensar jeitos de entrar num castelo e salvar uma princesa; ou, ainda, para conversar sobre si ou para ouvir histórias que possam ser disparadoras de brincadeiras e de novos diálogos.
Pensa daqui, traz o brincar dali, pontuamos a necessidade de focos de observação para apoiar o olhar das famílias para esse brincar em casa, da maneira possível para as famílias. No meio da aula, uma pergunta: “você não acha tudo isto um pouco utópico, pensar que os pais darão conta de fazer tudo isto?” Na hora, lembrei-me de um texto da saudosa Denise Nalini, escrito para a Revista Avisa lá – número 3, em que ela conta sobre o dia em que teve uma epifania, ao ser confrontada por um aluno dizendo que “ela precisava saber ensiná-lo direito”, pois acredito que, no fundo, é o que as famílias e as crianças também esperam da gente.
À medida que aprofundávamos a conversa, íamos percebendo que, por ser algo muito novo e jamais pensado na educação infantil, a educação a distância ainda não tem caminhos determinados. Todavia, avançamos no que diz respeito à educação presencial e, por isto, não podemos perder de vista a maneira pela qual a criança pequena aprende, a importância da experiência e não somente da informação. Terminamos as discussões e retomo a pergunta inicial respondendo que sim, as relações, os focos, as propostas que eu estava fazendo eram, sim, um pouco utópicas, porque acredito que as crianças podem mais e suas famílias também; acredito que é preciso valorizar os saberes das famílias, pois cada família conhece brincadeiras diferentes que podem ser compartilhadas e apoiar as propostas da escola, na pandemia ou fora dela.
Enfim, terminamos aquela penúltima aula com as palavras que representavam o que havia sido colhido por cada um naquele dia e Sabrina Weisz, autora da pergunta “movimentadora” de pensamentos, traz o tema deste texto: famílias brincantes.
O que seria pensar em famílias brincantes? Como ajudar as famílias a não perderem a essência do brincar, especialmente nesta pandemia? As discussões, a sua dupla de palavras ficou reverberando e me lembrei de um texto da querida Adriana Klisys[1], uma das responsáveis em re-acordar a brincante que há em mim, em que ela traz um saber amazônico sobre o sentido do brincar na fala do professor Ticuna Davi Fidelis que, ao ser questionado por que brincamos, respondeu: “brincamos para não entristecer”.
Com essa frase em mente e com todo o histórico de um ano de pandemia como mãe, tendo visto minhas filhas inventarem brincadeiras, compartilharem seus enredos, arrastarem móveis e objetos para transformá-los em brinquedos; e pensando nos pedidos das professoras da escola, que apenas pediam que realizássemos determinada atividade e lhes enviássemos as fotografias para que as atividades fossem ticadas como num check list, comecei a me questionar. Por que, mesmo sabendo da importância do brincar para o desenvolvimento das crianças, para suas descobertas, para sua compreensão do mundo e reconhecendo a potência do brincar para que elas se enlacem ao mundo (e outros tantos bons motivos), ainda há quem insista neste equívoco quanto ao entendimento do lúdico, regrando-o, delimitando-o, estruturando-o em função de supostos objetivos pedagógicos?
Se viver essa pandemia tem nos entristecido, por que não permitimos que essas famílias se reconectem com seus brincares para não entristecer? Por que a escola não reconhece as brincadeiras possíveis em casa, aquelas que as crianças já fazem, aquelas que os próprios pais ensinam a seus filhos, vindos da memória, da cultura familiar intergeracional?
Se o brincar, como observado por Freud e apontado por Cisele Ortiz e Maria Teresa Venceslau de Carvalho (pg: 107)[2], traz como uma das quatro operações necessárias para formação do eu a substituição simbólica do desprazer gerado pela ausência da mãe pelo prazer do brincar, por que temos, de certa forma, negado isso às crianças? Por que não temos possibilitado o brincar para lidar com todos os desprazeres que temos vivido nesta pandemia? Como ainda podemos reverter isto?
Volto, então, para a alteração de datas do módulo e me pego pensando que mudamos as datas por conta da oficina de brincadeiras, pela interação e tudo o que nos acontece na presença; pela importância de pegar na mão, sentir sua temperatura, seu cheiro, de observar os diferentes jeitos de participar de uma brincadeira de roda. Pergunto, então: que outros jeitos temos de perpetuar as cantigas e brincadeiras da cultura da infância? Que outros brincares podemos garantir? Como gerar condições para que as famílias sintam e enxerguem que o brincar tem valor para as instituições escolares? Como é possível mostrar para as famílias que suas crianças são capazes, competentes e criativas ao brincar em casa?
Se um dos principais remédios para essa pandemia fosse saber do que e como nossas crianças brincam, saberíamos responder? Sabemos do que nossas crianças brincam realmente ou apenas supomos a partir do que propomos?
Que o brincar não esteja mais pendurado num varal para ser recolhido entre o intervalo de uma proposta ou outra ou presente apenas nas celebrações comemorativas da “semana da criança”! Queremos o brincar encarnado!
É uma pena que a cura para tudo o que temos vivido não esteja neste olhar. Sem dúvida, ao colocar essa pergunta “atrás da orelha” poderemos não só reencontrar os meninos e meninas brincantes que éramos, mas também garantir boas memórias brincantes aos meninos e meninas que agora são. Brincar é urgente! Para imaginar, se divertir, se perturbar, se distanciar, se aproximar, se organizar, se descontrolar, se refazer, criar, dançar, construir, explorar, movimentar descobrir e se saber.
Se as famílias darão conta de observar os focos como faríamos na escola, isto de fato é o que menos importa. O que vale mesmo é que, na medida em que o brincar se torne constante, as escolas e as famílias encantem-se por esses esconderijos secretos que são as brincadeiras das crianças.
Peço licença poética a Delia Lerner para que possamos, como profissionais e familiares, saber lidar com o real, o possível e o imaginário; para que possamos permitir que o espírito brincante não adormeça em nós, pelos ensinamentos vitais, pelos morais e principalmente pelos divertidos.
Por muitas famílias brincantes! Ou melhor, inspirada no ditado africano que diz que “é preciso de uma aldeia para cuidar de uma criança”… por muitas aldeias brincantes!
20.06.2021
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[1] Postado em sua timeline do Facebook em 10 de abril de 2021
https://www.facebook.com/adriana.klisys.3
[2] Ortiz, Cisele; Carvalho, Teresa Venceslau. “Interações ser professor de bebês – cuidar, educar e brincar uma única ação. São Paulo: Blucher, 2012. Coleção Interações – Coordenação de Josca Baroukh.
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[i] Lucila Silva de Almeida – Pedagoga com pós graduação em “Educação de Crianças de 0 a 3 anos” pelo Instituto Singularidades – SP.
É autora do livro “Interações: Crianças, brincadeiras brasileiras e escola” – Editora Blucher e co-autora do livro “Parlendas para Brincar” e “Adivinhas para Brincar” Editora Panda Books e “Práticas comentadas para Inspirar” Editora do Brasil .
Professora do Curso de Pós Graduação “Educação Infantil: Investigações e Saberes com crianças de 0 a 3 anos pelo Instituto Singularidades
Formadora de professoras da rede pública e privada desde 2002, atualmente trabalha em projetos e programas de formação de professores pelo Instituto Avisa Lá e atua como Coordenadora Pedagógica no Projeto Varre Vila, projeto de Educação Ambiental na empresa COM VOCÊ serviços de treinamento.