Avisa Lá Indica #3

No primeiro Avisa Lá Indica de 2021, Ana Carolina Carvalho apresenta um lançamento especial e ainda nos brinda com sua leitura sensível, em um texto complementar, abaixo do vídeo.
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Uma leitura da alma perdida

                                                                                    Ana Carolina Carvalho

Nada é por acaso. Os livros nos encontram, nos caçam. E generosos, nos deixam achar que fomos nós quem o achamos numa livraria, num site, na caixa de correio, na estante de casa. Tem sempre a hora certa de lê-los.

Assim foi com A Alma perdida, o livro da escritora polonesa Olga Tokarczuk recém-publicado no Brasil. Trata-se de um livro ilustrado, aliás, belamente ilustrado pela também polonesa Joanna Concejo. Muitos poderão dizer que é um livro infanto-juvenil, mas eu mesma já desisti desse apêndice, posto que os bons livros nos oferecem muitas camadas de leitura e, desse modo, chegam de diferentes maneiras aos muitos leitores que encontram, crianças, jovens, adultos. Uma criança poderia encontrar esse livro e ter a certeza de que ele foi escrito para ela, naquele momento de sua vida. Assim como um jovem, questionando-se sobre o sentido da vida, ou então um adulto, na meia idade, perguntando-se sobre os caminhos tomados.

Fiquemos simplesmente com a denominação livro ilustrado. E ofereço aqui a minha leitura. Mulher adulta, meia idade.

Tomei o livro em minhas mãos. Ele chegou-me pelo correio. Tudo em sua capa me remeteu a um passado, algo antigo, desde a cor do papel, amarelecido com pequenas manchas, como uma carta adormecida há anos em uma gaveta – papel frágil, cheio de histórias – até a ilustração de Joanna, compondo um singelo cenário aludindo a uma vida: uma velha mala de viagem, a cadeira de costas, um paletó em seu espaldar e uma inusitada presença acomodada em seu estofado: um vaso de planta. O verde se espalhando, querendo crescer, seus caules como braços, talvez buscando mais do que o passado inerte. Em contraposição, no chão, um pequenino vaso de outra planta, sem cor, tímida, atrofiada.

A experiência com o passado segue nas folhas de guarda, forradas por um papel de parede antigo e carcomido. Junto à dobra da página, uma imagem bastante melancólica, como se estivesse sido posta há muitos anos, no meio de um livro, esquecida. Cena de uma cidade qualquer em dia de inverno. Essa imagem é reveladora do que virá. Nas páginas iniciais, cenas invernais vistas do alto. O leitor é colocado no lugar de quem olha a vida passando em um parque coberto de neve, pessoas caminhando, suas pegadas, crianças brincando, adultos indo para lá e para cá.

E então, a epígrafe que nos empresta uma lente para observar melhor essas cenas: Se alguém pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que andam apressadas, suadas e exaustas, e também veria suas almas, atrasadas e perdidas no caminho…

Alguém, o leitor, nos olha?  Somos nós mesmo, o leitor e esses que perderam a sua alma. Olhamos melhor as cenas iniciais. Ela nos retrata. Crianças brincam e estão sempre em pares, os adultos vão para lá e para cá. Olga e Joanna nos mostram para que serve a literatura: ela nos revela. Se aceitamos esse espelho, nos encontramos. E talvez tenhamos a chance de reencontrar nossa alma perdida.

O enredo é simples. João, homem de meia idade, leva uma vida apressada e dedicada ao trabalho. Faz coisas. O dia todo. Faz, faz, faz. E acha que a vida é isso, assim está bom, a vida é boa. Sem trégua, sem sentido. Boa? Só para que não tem alma. Assim é. A alma de João há muito está perdida, não conseguiu acompanhar seu ritmo insano e sem sentido. Uma vida sem experiência.

João é o homem moderno. É o nosso retrato. Relembro Agamben[1]: “O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes -, entretanto nenhum deles se tornou experiência”.

E então, ele colapsa. O personagem dessa fábula moderna/contemporânea não se reconhece mais. Não à toa, o colapso acontece em um quarto de hotel, ambiente impessoal. Como era seu nome? Quem era ele? No espelho, apenas uma mancha imprecisa. Onde ele estava? Olhou pela janela, mas não sabia muito bem em que cidade se encontrava, porque vistas das janelas dos hotéis, todas as cidades parecem iguais.

Ao procurar uma médica, João recebe o diagnóstico: sua alma está perdida. A razão está na forma que João encontrou para viver. Sem respiro, sem contemplação, sem tempo para a experiência. As almas se movimentam numa velocidade muito menor que a dos corpos. Resta esperar por ela. Dar-se o tempo, finalmente.

Retirar-se.

Enquanto espera sua alma, paisagens sem cor ocupam as páginas do livro. O entorno é sempre branco e preto. Tudo está meio borrado. Até que em meio aos cenários escuros, surge alguém. Uma criança atravessa cenas, passa por situações em que está sempre observando. Como se estivesse vivendo a vida passada de João, tentando apreendê-la. Uma tarde em um café, uma festa, um dia na praia, uma viagem de trem…

O fora e o dentro. João aguarda sua alma em casa. Em sua vida quadriculada. Austera. O tempo passa, animais o visitam, seus cabelos crescem, sua barba cobre seu rosto, as plantas se avolumam. Mas tudo ainda é cinza.

Até que um dia… De uma janela da casa em que ele está, uma criança o observa. Pela primeira vez, uma planta verde está no colo de João.

Sua vida ganha a primeira cor.

João pode finalmente viver uma experiência.

Sem pressa.

A alma perdida, Olga Tokarczuk e Joanna Concejo

Editora Todavia.
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[1] AGAMBEN, G. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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