Relação entre formadores, coordenadores e professores favorece a reflexão sobre a prática e fortalece vínculos
A ideia de formação continuada está relacionada a diversas aprendizagens dos alunos, dos professores, dos coordenadores pedagógicos e de nós, formadores das equipes técnicas dos municípios. Nesse processo, há algumas estratégias que permitem aos educadores refletir sobre a própria prática. Olhar distanciadamente para o trabalho possibilita o desenvolvimento pessoal e profissional e a construção de novos saberes, tão necessários ao diálogo, à argumentação e à discussão acerca do conhecimento.
Durante dois anos de formação do Programa Além das Letras no município de Ariquemes, em Rondônia, inúmeras ações foram implementadas para qualificação das práticas de coordenadores e de professores. Dentre elas, destacam-se as visitas de supervisão às escolas municipais. Um dos objetivos desse trabalho é fortalecer mais pontualmente a relação entre formador e coordenador pedagógico, uma vez que o atendimento é individual, o que diferencia esse momento dos encontros de formação com o grupo todo. Nesses encontros, busca-se auxiliar o professor a refletir sobre sua prática, contribuindo para a qualificação do processo de ensino e aprendizagem.
Primeiros desafios
As primeiras visitas não foram fáceis.
Acompanhar os coordenadores de 23 escolas foi o primeiro desafio. Os formadores tiveram de se organizar para acompanhar mais de perto as práticas docentes e realizar intervenções adequadas. Resolvida essa situação, evidenciamos outra problemática: para muitos coordenadores, a presença de um técnico da secretaria e do formador era entendida como uma fiscalização do seu trabalho.
Como resolver essa situação foi um dos nossos primeiros questionamentos. Diante desse problema, apresentamos uma ação com base nas ideias, concepções e dificuldades observadas nas escolas sobre as práticas em sala de aula. O que significa isso? Significa aproximar o formador do coordenador, fazendo-o perceber que ele pode contar com um parceiro no ambiente escolar, um corresponsável pelo ensino e aprendizagem, que igualmente se preocupa em saber como as crianças estão aprendendo e como os professores estão ensinando.
Daí a importância da mediação dos saberes para ajudar o coordenador a refletir acerca da prática do professor. Essa interação com o coordenador, além de criar um vínculo de confiança, fortaleceu o espaço de reflexão. Hoje podemos dizer que os formadores são esperados, pois quando há supervisão é comum os coordenadores terem as dúvidas registradas, tanto as formuladas pelos professores nos encontros de formação quanto as compartilhadas durante a observação em sala de aula.
A maneira de conduzir os encontros de formação possibilitou a consolidação dessa parceria, sempre atenta à formação de profissionais capazes de olhar para o seu dia a dia e dele extrair novas aprendizagens. Nesses encontros, procurou-se valorizar os saberes dos profissionais, assumindo como ponto de partida as dificuldades surgidas, optando por estratégias que privilegiassem o desenvolvimento do grupo. Tarefa bastante difícil, pois muitos esperavam ouvir o que deveriam fazer, ao invés de propor uma reflexão sobre como impulsionar algumas mudanças e por quê fazê-las.
Talvez muitos imaginassem um encontro em que o formador apenas transmitisse informações ou oferecesse atividades prontas. Nesse processo foi fundamental analisar o que ajudaria o grupo de professores a caminhar. Isso foi possível por meio de leitura de textos, de discussão, da análise de bons modelos de práticas, troca de ideias e experiências. Dessa forma, a supervisão foi desfazendo a ideia inicial de fiscalização.
Ao mesmo tempo que os coordenadores se formavam, eles perceberam que o formador também se tornava aprendiz da própria ação. Assim como o professor deve planejar o que será ensinado, os formadores precisavam planejar o que fariam nesses encontros, elaborando as pautas antecipadamente para promover discussões e reflexões sobre algumas dificuldades apresentadas nas práticas em sala de aula.
Elaboração das pautas
Para a elaboração das pautas era preciso determinar o foco, definir o que seria abordado. O conteúdo a ser discutido não era escolhido de maneira aleatória. Consideravam-se os problemas mais comuns dos espaços escolares: organização da rotina do professor e do coordenador, papel do coordenador como formador, observação da prática em sala de aula. Todos estiveram em constante aprendizagem.
Da elaboração das pautas à sua conclusão, contou-se com uma parceira experiente, a consultora Renata Frauendorf1. Ela orientou o grupo em relação ao quê e à promoção da reflexão para que esse espaço não se resumisse a queixas e reclamações ou a um encontro transmissivo apenas. Suas devolutivas elucidavam os encaminhamentos, tornando as formadoras mais seguras com relação às práticas. A seguir, a pauta do último encontro de supervisão.
Pauta de supervisão
Objetivos
- Tematizar a prática dos professores sobre a atividade de reescrita por meio de vídeos produzidos pelas escolas.
- Identificar os avanços dos professores uma vez que se trata de uma segunda sequência de filmagem.
- Planejar com o coordenador a devolutiva com ações e orientações que poderão apoiar o professor filmado a aprimorar a proposta de reescrita.
Conteúdos
- Reflexão sobre a prática de reescrita.
- Estratégia formativa
- Tematização da prática.
Encaminhamentos
- Assistir aos vídeos antes do encontro de supervisão e analisar o planejamento do professor que foi filmado para fazer as possíveis intervenções.
- Planejar a tematização ao eleger o foco a ser discutido, assim como as questões disparadoras de reflexão.
- Agendar com os coordenadores as visitas às escolas.
- Solicitar para os coordenadores: computador com caixas de som para assistir aos vídeos.
- Solicitar aos coordenadores que assistam ao vídeo e elejam pontos a serem discutidos com os formadores, tendo por foco a ação da professora.
- Ouvir atentamente e registrar as explicações que os coordenadores farão durante o encontro de supervisão.
Desenvolvimento
Proposta 1 – Tematização da prática
Essa proposta dependerá de cada vídeo ou de cada situação de reescrita, pois sabemos que as problemáticas apresentadas pelas práticas dos professores não são as mesmas, por isso esse momento contará muito com a conversa entre formador e coordenador para que, juntos, possam articular os conhecimentos teóricos à prática.
Sabemos que os problemas serão muitos em relação ao conteúdo, por isso resolvemos concentrar nosso olhar sobre o que os professores já sabem e o que precisam avançar em relação à proposta. Para tanto, as questões para os coordenadores são:
1. Quais são as observações ou pontos que chamaram sua atenção em relação à ação da professora?
2. Que conhecimentos a professora revela saber sobre a proposta de reescrita? O que ela ainda não sabe? Por quê?
FL: Acreditamos que essa questão provocará muita reflexão sobre intervenções do professor, função comunicativa, situações em trabalho coletivo, em dupla ou individual, professor como escriba, comportamento escritor, escolha de um bom texto para reescrita… enfim, discutiremos muito sobre as condições oferecidas, mas não podemos definir o que seria para cada vídeo; tudo dependerá das situações filmadas.
Durante essa conversa, podemos apontar alguns problemas relacionados ao planejamento e à prática do professor. Muitos indicam em seus planos de aula objetivos e conteúdos que não são evidenciados na prática.
C: Ótimo notarem isso. Também será muito bom evidenciarem isso ao coordenador, pois muitas vezes ele não percebe esse descompasso. Seja por considerar que é só para cumprir um requisito burocrático ou por não saber o que realmente pretende ser abordado em cada aula planejada pelo professor.
3. Como reconceitualizar a prática de reescrita com o professor? O que é preciso discutir com ele para que possa qualificar a atividades de reescrita?
Proposta 2 – Avaliação
Por ser a última supervisão, consideramos importante que apontem qualidades e problemas apresentados sobre a tematização da prática.
Contudo, é sabido que não basta uma boa pauta, é preciso relacionar boas estratégias para promoção da reflexão. Nesse processo formativo, nos apoiamos em várias estratégias, especialmente a tematização da prática, nosso carro-chefe nessas reflexões.
Tematização da prática
Segundo Lerner, Torres e Cuter2, “a finalidade da análise de situações de sala de aula sempre é a aprendizagem e não a avaliação do que o professor fez ou deixou de fazer na aula registrada. Tanto nas situações em que são analisadas as aulas originadas em outros contextos como naquelas em que se reflete sobre a própria prática, os formadores propõem questões que permitem observar de que maneira o conteúdo se apresenta na aula, como se desenvolvem as interações dos alunos com o conteúdo – e entre si na relação com o conteúdo – quais são as intervenções do professor e que avanços se observam nas aprendizagens dos alunos.
Trata-se de pensar a prática como um objeto do conhecimento complexo, no qual é possível considerar diversos aspectos que podem ser recortados do contexto específico (…) e que podem ser caracterizados e previstos como variáveis que devem ser levadas em consideração no momento do planejamento e da concretização de novas situações de ensino.” Para isso, “é preciso conseguir captar os pontos centrais e saber onde se quer colocar o olhar do professor, de maneira a desencadear uma reflexão importante. Ao se analisar uma aula, deve-se levantar questões que ajudem a promover uma discussão, de tal modo que os conteúdos didáticos ‘circulem’: fala-se deles porque se tornaram observáveis aos professores.” Sabe-se que fazer dessa estratégia uma ferramenta de reflexão do coordenador é um grande desafio.
Para essa tematização, indicamos as seguintes ações:
- Orientação da tarefa – é a primeira ação antes do encontro de supervisão. Indicamos um prazo adequado para o planejamento da ação com o professor e filmagem da situação didática. É preciso que o formador defina o conteúdo a ser abordado. Para isso, é essencial considerar os conteúdos que são discutidos na formação para que juntos possamos ter referências teóricas.
- Análise dos materiais recebidos – esse é um processo longo, pois antes de marcar a supervisão, todos assistimos aos vídeos enviados pelos coordenadores. Esse procedimento exige pensar como ajudar o coordenador a encaminhar reflexivamente esse momento com o professor. Ainda na análise, elaboramos boas perguntas para promover discussões sobre o objeto de estudo. Embora o conteúdo solicitado para filmagem seja comum a todos, na prática, os problemas mostram-se, às vezes, muito diferentes.
- Realização do encontro de supervisão – procuramos organizar os momentos de supervisão imediatamente após o encontro de formação do Programa. Agendamos anteriormente com os coordenadores para que se organizem nas escolas, para que no dia combinado para a visita eles não estejam envolvidos com outras ações que lhes competem.
- Encaminhamentos – para tematizar as situações filmadas, convidamos cada coordenador a assistir ao vídeo e pensar sobre os procedimentos adotados pelos professores. Nesse processo, são necessários alguns cuidados, como saber ouvir atentamente e registrar as falas dos coordenadores. A princípio, os deixamos à vontade para falar sobre o que pensam, o que observam em relação à situação filmada. Durante as conversas, vamos observando como eles relacionam os conhecimentos teóricos às práticas de sala de aula. Para tematizar a prática, é preciso garantir que todos os envolvidos nesse processo tenham referências teóricas para poder analisar e resolver situações, como também refletir sobre a melhor forma de orientar as aprendizagens dos alunos. No início, procuramos sempre evidenciar os pontos positivos, em vez de propor reflexão sobre o que precisa ser aperfeiçoado na prática de sala de aula. Nossa intenção é que os coordenadores nos tenham como modelo para que,assim, façam o mesmo com os professores, evitando aspectos meramente avaliativos. Por fim, após construirmos o que deve ser observado, relacionamos algumas ações para que os coordenadores possam auxiliar os professores no aperfeiçoamento de suas práticas pedagógicas.
- Devolutiva ao professor – após a nossa devolutiva aos coordenadores, propomos que eles façam o mesmo com os professores. Por meio das reflexões geradas pela tematização, os professores refinam suas práticas de leitura em voz alta e de produção de textos. A utilização dessa estratégia formativa tem resgatado a figura do coordenador nas instituições como um profissional que coloca em jogo a reflexão do professor para ajudá-lo a avançar em sua prática.
Considerações
A partir de então, é possível dizer que foi dado o pontapé inicial para a construção de uma escola reflexiva, como aponta a pesquisadora Isabel Alarcão: “A minha convicção é que, se queremos mudar a escola, temos de a assumir como organismo vivo, dinâmico, capaz de atuar em situação, de interagir e desenvolver-se ecologicamente, e de, nesse processo, aprender e construir conhecimento sobre si própria. Poderemos então falar de uma epistemologia da vida da escola. E de uma escola em desenvolvimento e aprendizagem permanentes”.3
A adoção dessa estratégia surgiu da necessidade de se criar mecanismos de reflexão sobre as ações dos professores. Percebíamos que, embora discutíssemos os conteúdos e refletíssemos sobre eles nas formações com os coordenadores, era preciso algo mais, como bem cita Rosa Maria: “Aquele que semeia sem revolver a terra consegue, no máximo, espalhar as sementes sobre a superfície, sem esperança de que algum dia criem raízes, cresçam e deem frutos4.” Consideramos que as formações são as sementes que plantamos e as supervisões, o revolvimento da terra para que os frutos brotados sejam de qualidade.
(Claudiene Dias da Silva e Sandra da Silva Duarte, coordenadoras pedagógicas da Secretaria Municipal de Ariquemes-RO e formadoras dos programas Além das Letras e Além dos Números, ambos do Instituto Avisa Lá)
1Renata Frauendorf é formadora do Instituto Avisa Lá, em São Paulo–SP
2LERNER, Delia; TORRES, Mirta e CUTER, Maria Elena. A tematização da prática na sala de aula. In. CARDOSO, Bia (org). Ensinar: tarefa para profissionais. Rio de Janeiro: Record, 2007. Tel.: (021) 2585-2000. Site: www.record.com.br.
3Escola Reflexiva e Supervisão: Uma escola em desenvolvimento e aprendizagem, de Isabel Alarcão. Porto: Porto Editora, 2001. Site: www.portoeditora.pt.
4Itinerários pela educação latino-americana: caderno de viagem, de Rosa Maria Torres. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 306. Tel.: 0800 703 3444 Site: www.artmed.com.br.
Tarefa
Propor nova filmagem para tematizar a prática do professor nos encontros de supervisão. Para isso, seguir as orientações indicadas:
- a) Escolher o mesmo professor cuja prática tenha sido discutida anteriormente no encontro de supervisão.
- b) Esclarecer novamente que a filmagem não tem finalidade avaliativa.
- c) Planejar com o professor uma situação de reescrita.
- d) Filmar o professor desenvolvendo a atividade, destacando trechos interessantes para a tematização.
- e) Entregar para o formador local o vídeo e o planejamento produzidos para que ele possa assisti-lo e analisá-lo, pensando nas questões que poderão ser discutidas com base nesse material.
- f) O prazo para entrega dos materiais (planejamento e vídeo) é até o fim de agosto. As tematizações serão realizadas no início de setembro.
Ficha Técnica
- Programa: Além das Letras
Coordenadora: Beatriz Gouveia
Consultora: Renata Frauendorf
Email: rfrauendorf@globo.com
Formadoras Locais: Claudiene Dias da Silva e Sandra da Silva Duarte
E-mails: sandrasemed@hotmail.com e claudieneds@hotmail.com
Responsabilidade técnica: Instituto Avisa Lá
Desenvolvimento: Secretaria Municipal de Ariquemes – RO
Endereço: Rua México, 932 St 10 – Ariquemes – RO – CEP 78933-425 – Tel.: (69) 3535-3891
Para saber mais
- Ensinar: tarefa para profissionais, de Bia Cardoso (org.). Rio de Janeiro: Record, 2007. Tel.: (21) 2585-2000 Site: www.record.com.br.
- Escola Reflexiva e Supervisão: uma escola em desenvolvimento e aprendizagem, de Isabel Alarcão. Porto: Porto Editora, 2001. Site: www.portoeditora.pt.