Diários de campo; escrever para pensar melhor sobre as intervenções do professor

Diários são as “obras que registram a relação do que se faz, a sucessão do que acontece todos os dias”. Essas obras estão presentes na história do homem há muito tempo, assumindo diversas funções; existem, por exemplo, diários de bordo que guardam as impressões de uma inesquecível viagem. Diários de navegadores rumo a terras desconhecidas que registram as descobertas do mundo novo. Diários de adolescentes que contam as alegrias e tristezas da juventude, das festas e namoros. Diários íntimos que guardam segredos insuspeitados…
Qualquer que seja a natureza, alimentam a curiosidade dos leitores que se deixam levar pela vida do outro, por um certo olhar concedido pela narrativa.

“O diário é muito importante para que a cada dia possamos melhorar as atividades, porque escrevendo o que fazemos com as crianças, estamos também estudando e pensando…
por que eu não preparei aquela atividade de um jeito mais interessante? É também uma fonte de pesquisa.”
(Jerusa, creche Visconde de Ouros)

Narrativas pessoais também estão presentes nas instituições de educação: são os diários de campo que promovem reflexões da prática educativa no dia a dia da aprendizagem, no processo de ensino. Escritos pelos próprios professores, depois do momento da prática direta com as crianças, descrevem fatos, relatam iniciativas, interivenções e resultados, sentimentos, dúvidas, inquietações…como os diários que existem no mundo, eles contam passo a passo o que acontece todos os dias, como se sucede o tempo considerando o olhar de seu autor.

Por isso são narrativas e singulares, que no conjunto, compõem uma diversidade de textos bastante interessante. Existem, por exemplo, narrativas que empreendem uma certa pesquisa a respeito de algum aspecto do trabalho como o processo de adaptação, a aquisição da escrita pelas crianças (recomendamos a leitura do diário de Ana Carolina, a seguir), a aprendizagem de determinados procedimentos matemáticos, etc. Esses assuntos são tratados ao longo de um certo tempo (dias, semanas, etc) tecendo um percurso. Há também notas sobre reações e características individuais das crianças, fatos inéditos daquele dia, o que foi significativo ou pode ter repercussão nos dias seguintes, episódios de parque, dificuldades da organização do tempo, relações com as famílias…enfim, há tantos tipos de diários quanto tipos de professores, pensamentos e questões.

“Através do diário podemos registrar nossos trabalhos e até mesmo nos corrigir, pois só na hora em que escrevo o meu diário eu vejo coisas que na hora da atividade não havia percebido.”
(Ana, C.J. Centro Social do Brooklin)

A escrita do diário é uma prática importante para o professor; ao escrever ele se coloca num diálogo íntimo, uma conversa consigo mesmo, podendo tomar consciência do seu fazer, refletir sobre o que aconteceu, avaliar e muitas vezes já pensar futuras intervenções, reorganizar materiais, planejar situações que podem realizar melhor suas intenções com as crianças. Por esse meio pode aprender cada vez mais sobre seu próprio trabalho. Segundo Zabalza1 , “o próprio fato de escrever, de escrever sobre sua prática, leva o professor a aprender através da sua narração. Ao narrar a sua experiência recente, o professor não só a constrói linguisticamente como também a reconstrói ao nível do discurso prático e da atividade profissional (a descrição vê-se continuamente excedida por abordagens reflexivas sobre os porquês e as estruturas de racionalidade e justificação que fundamentam os fatos narrados). Quer dizer, a narração constitui-se em reflexão”. Registros dessa natureza, além do benefício imediato no próprio ato de escrever, também amplia os conhecimentos do professor na medida em que podem ser lidos por um parceiro mais experiente, em geral o coordenador pedagógico.

O diário, como forma de reflexão, quando lido com seriedade e respeito, segundo contrato prévio entre o autor e seu parceiro, pode se tornar um recurso importante que permite o acesso ao pensamento
do professor, fundamental na busca de estratégias mais apropriadas para desestabilizar suas crenças e hipóteses, ajudando-o a avançar além do que já sabe.

Sendo assim escritos, lidos e entendidos, além do prazer que se oferece aos leitores, os diários de campo contribuem significativamente para melhorar a qualidade da “relação do que se faz, do que sucede todos os dias” entre crianças, professores e pais numa instituição de educação.

1Zabalza: pesquisador e professor da Universidade de Santiago de Compostela na Espanha.

Para saber mais:

  • Diários de Aula, M.A. Zabalza; ed. Porto, Portugal,1994
  • Observação, Registro, Reflexão, Madalena Freire Weffort; Espaço Pedagógico, 2a ed., 1996
  • Era Assim, Agora Não, Regina Scarpa; ed. Casa do Psicólogo, 1998

Diário da professora

21 / 5 / 1998

“O grupo todo esteve super envolvido numa
conversa sobre a figura mitológica do Minotauro,
estimulados pelas leituras que temos
realizado da obra de Monteiro Lobato. A
existência ou não do Minotauro, o labirinto em
que morava e se utilizava para “pegar” suas vítimas
mobilizou todo o grupo. Assim que terminamos
a conversa, resolvemos registrar com um
desenho o que havíamos discutido, as características
do bicho e de seu labirinto.
Quando percebi que algumas crianças já
estavam terminando o seu desenho, sugeri
que escrevessem os seus nomes e quem
quisesse, poderia também escrever Minotauro.
Algumas crianças falaram logo de cara que não
sabiam escrever e mediante essa reação eu
disse que poderiam tentar, pensando como
fariam, que letras utilizariam, etc.
Gabriel logo se prontificou a escrever e
obteve um resultado emocionante! Para cada
sílaba, ele correspondeu uma vogal, mantendo
o seu valor sonoro assim:

 

Mi no tau ro

 

I O A O.
Mi no tau ro.

Em outra mesa Luiza também escreveu dessa forma. Diante do meu entusiasmo e a descoberta dos dois, a classe toda escreveu IOAO também. Gabriel, que foi o primeiro,
ficou muito orgulhoso e ia de mesa em mesa verificar como andavam as escritas dos colegas, super satisfeito com o que havia conseguido, repetindo para si mesmo: MI NO TAU RO, assim mesmo, pausadamente, como se ainda estivesse lendo.

22 / 5 / 1998

No dia seguinte, estávamos todos na roda de conversa, nos preparando para iniciar a escrita de nossa agenda a fim de marcar os compromissos
do dia quando Isabella levantou-se e disse: “Olha, eu preciso falar uma coisa: algumas crianças escreveram daquele jeito minotauro
mas não é daquele jeito.
– Por que Bella, não é daquele jeito? –
perguntei.
– Porque eu sei que não é daquele jeito,
tem mais letras.
– Como você acha que é? Quais letras você
acha que tem a mais no minotauro?
– Eu não sei quais letras, mas eu sei que
não é assim, tem mais letras mas não sei
quais. Nesse momento várias crianças saíram da
roda para ver a escrita de minotauro que
estava em um desenho pendurado no painel.
Pedi que todos voltassem trazendo o desenho
para a roda. Com todos acomodados novamente, pedi
para o Gabriel ler a escrita IOAO, acompanhando
com o seu dedo (é claro que tive a intenção de provocar, ou melhor, incrementar a discussão, já que quem provocou foi a Bella, trazendo-nos uma informação nova, a de que a palavra minotauro continha mais do que 4 letras; eu sabia que Gabriel estava muito certo de seu jeito de escrever e ler e sabia que boa parte do grupo concordaria, mas queria
fazê-los pensar, incluindo a nova informação).
De fato, e como era esperado, Gabriel leu sem problemas, enfatizando cada sílaba em uma letra. Após a leitura do Gabriel, Luiza também
trouxe novo desafio ao grupo:

– Não é assim! Eu sei que começa com M e que tem outras letras porque a minha mãe sabe e ela escreveu ontem. Era grande, não tinha só isso de letra!
– Como você acha que é Luiza? – perguntei.
– Ah, eu não sei.
– Mas tenta escrever, você pode tentar.
Luiza toma um papel e escreve: MIOTRO.

 

“Eu sei que começa com M”

Em seguida ela diz:
– Tem M, começa com M, eu lembro!
Pedi para Stefano ler e ele o fez da seguinte forma:
M I O T R O,
Mi no tau ro…………..
compartilhando a hipótese silábica.
– E essas duas letras, Stefano? O que você faria com elas?
– Não, essas duas letras não precisa.
– Precisa sim! Tem essas duas letras!
– E você Bella, como você acha que se lê?
Isabella lê Minotauro correndo de uma só vez
pela palavra MIOTRO. Após a leitura de Isabella, Stefano pede para
escrever – ele normalmente adora escrever “do seu jeito” e às vezes, viaja… já notei que muitas vezes, vai só colocando letra no papel,
sem parar e pensar, ou pelo menos, não como algumas crianças que problematizam a escrita. Stefano não faz assim mas acho que tudo bem,

até porque numa discussão tão acalorada como essa, ele escreve assim: MIONANTTRO. O que ele fez aqui? Nossa! Ele estava super atento à discussão porque ele incluiu todas as informações novas, se aproximando mesmo da escrita convencional da palavra…

Em seguida, Izabel pede para escrever e o faz assim: MOIRE, ao que algumas crianças contestam,

dizendo que aquele jeito não era de jeito nenhum porque minotauro acabava com O. Então Izabel retomou sua escrita e acrescentou um O, ficando: MOIREO. Alice também escreveu MOAO, mas o grupo logo disse que faltava um I. Nessa altura, percebi que a informação da Luiza – minotauro começa com M – fora assimilada por todos, assim como a presença do I acabou como uma certeza, da mesma forma que a finalização com O. Melhor dizendo, nem todos: Gabriel fixou-se na sua hipótese, olhando para mim desconfiado, como que pedindo uma confirmação da sua escrita. Toda hora em que tinha uma brecha na discussão, ele falava: – Eu acho que é daquele jeito que eu escrevi! E reforçava sua teoria com a contagem dos dedos (4 sílabas = 4 letras). Alex fazia-lhe coro e também repetia a hipótese de Gabriel, concordando, escrevendo novamente IOAO.

Enquanto algumas crianças escreviam, outras como Marcelo, Camila e Martin ficavam acompanhando com os dedos, contando as letras como sílabas, olhando as escritas que iam surgindo; os três também achavam que minotauro possuía 4 letras e comunicavam essa idéia do grupo. Dessa forma, todos se mostravam envolvidos na discussão. Durante toda essa conversa, várias crianças
ficavam me pedindo incessantemente: -Lê! Lê o que a gente escreveu!

Mas como eu queria que a discussão fosse adiante e não parasse por ali,
resolvi deixar a leitura para o final, mas também tinha dúvidas: leio ou não
leio? E agora? Aliás, frequentemente tenho essa dúvida.

No início, eu sempre lia o que as crianças escreviam na agenda, elas curtiam saber o que tinham escrito e aproveitavam as informações que a leitura traz. No entanto, isso virou um “cacoete” do grupo e eu percebia que já não escreviam mais sem que eu lesse. Resolvi reduzir minhas leituras para que justamente não minasse possibilidades de discussão e também não causasse uma dependência do tipo “só escrevo se a professora ler”, mas ainda mantive algumas leituras.
Isabella sempre me pede e às vezes fica frustrada porque não leio imediatamente, deixando para depois da discussão. Fico na dúvida e as
vezes não sei o que fazer, pensando que pode ser ruim não ler toda hora. Será que estou escondendo o jogo? Tenho certeza de que essas dúvidas são típicas de professores dessa faixa etária… Acho que deve ter sempre essa dúvida: o que responder? O que falar? O que eu fiz foi legal? Estou ajudando as crianças a aprender ou estou travando o processo?

Ao final da discussão, percebi que algumas crianças já estavam cansadas e além disso, já estava na hora do lanche… Então passamos pela leitura. Nem preciso dizer que Gabriel ficou frustradíssimo quando li IOAO, tal como ele escrevera. A cara que ele fez! Ainda bem que Izabel salvou a pátria dizendo: – Ah, mas eu acho muito legal esse jeito que ele escreveu!
Demais, não? É claro que nessa hora o grupo estava a mil, as crianças falando alto, repetindo o que havia lido, falando para o Gabriel que ele tinha errado e ninguém ouviu o que a Bel tinha dito! E é claro também que eu a fiz repetir… Ela repetiu e eu fiz coro à sua fala, complementando:
– Eu também acho esse jeito muito legal, sabem por que? Porque o Gabriel está pensando como se escreve, que letras deve usar, quais servem para aquele som, como funciona a escrita e isso é muito legal mesmo porque é assim que a gente aprende, discutindo, vendo o outro escrever, pensando se é daquele jeito mesmo ou não! E foi isso que a gente fez hoje aqui!

Em seguida li as outras escritas e, ao final, eles me pediram para eu mesma escrever Minotauro e eu o fiz. Agora estou mais certa da minha atitude de ler o que escreveram e de escrever a palavra ao final, na sua forma convencional. Isso possibilita que as crianças pensem sobre a escrita. A diferença, agora pensando, não reside em escrever ou ler, mas sim na forma como proporciono o uso dessa escrita às crianças: não é impositivo, nem de fora para dentro, ao contrário: o uso deve vir sempre atrelado à possibilidade de reflexão das crianças e contribuir nesse processo é, sim, papel do professor na Educação Infantil.”

Ana Carolina Carvalho
professora do grupo 5 (5 a 6 anos)
Escola Logos – Educação Infantil (em 1998)

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