Correio poético e circulação da literatura

Luciana Oliveira dos Santos e Viviane Cristina de Souza¹


Ações de incentivo à leitura com crianças de 3 anos apoiam-se na brincadeira com palavras, na poesia e termina em projeto de indicação literária


Crianças pequenas gostam de brincar com as palavras e de repetir palavras que não conhecem só porque lhes soam engraçadas. Regidas pelo pensamento sincrético², buscam no efeito sonoro da rima e na repetição dos sons uma inspiração para brincar, um modo de expressão que é muito próximo do pensamento típico dessa idade. O trabalho com poemas e indicação literária oferece uma ótima oportunidade de imersão da criança na expressividade da sua língua. Ao memorizar os textos para brincar, as crianças ganham um repertório para as primeiras experiências de leitura.

A professora Viviane, do G3 (crianças de 3 anos), teve a ideia de convidar os grupos dos 2os anos da Escola3 para compartilhar as experiências de leitura de poemas entre turmas diferentes. Nas turmas dos 2os anos o projeto intitulava-se Correio poético, e o projeto dos pequenos de 3 anos, Vai e vem poesia4. Na sala, as professoras já vinham apresentando e lendo os poemas para os alunos que acompanhavam a leitura no caderno de poemas, composto de uma coletânea de poemas de Vinicius de Moraes, Ricardo Azevedo, Lalau e Laurabeatriz.


1 Luciana é orientadora pedagógica e Viviane é professora de Educação Infantil.
2 A Literatura, e em especial a Poesia, frequentemente usam de recursos como a fabulação, a contradição, a tautologia e
a elisão, que são características do pensamento sincrético predominante nas crianças de 3 a 5 anos.

A escola preza o enfoque literário, e as professoras planejam atividades na área de linguagem oral e escrita que favoreçam a troca por meio de experiências coletivas. Dentre elas, foi realizada a construção de uma caixa de correio para que os alunos trocassem os poemas que apreciavam. Definido o local em que ficaria a caixa, chegou a hora de pensar quais poemas poderiam ser apresentados aos grupos. Os pequenos receberam a primeira correspondência e, como bons anfitriões, propuseram-se a enviar a resposta.

A proposta se estendeu aos 2os anos, e o G3 queria compartilhar os poemas de preferência. Mas como envolver os grupos dos 2os anos?

Correio, via de comunicação poética

A coordenadora da Educação Infantil propôs à professora do G3 a realização de um correio poético já que as crianças estavam inseridas na linguagem poética. Motivada, voltou para a sala com uma ideia: conversar com as professoras dos 2os anos – Marina e Rosangela5 – sobre o correio. Elas abraçaram a ideia e, aos poucos, o correio poético foi sendo elaborado. Marcaram o dia e o local de encontro das turmas. Organizados em roda, elas apresentaram aos grupos a proposta do correio, e, com eles, definiram onde ficaria o correio. Um aluno diz:

– Não dá para ser na recepção, pois as pessoas podem mexer!

A professora comenta:
– O ideal não seria a caixa de correio ficar em um local visível para que outras pessoas também possam colocar as cartas?

Após discutirem a proposta chegaram à decisão de colocá-la ao lado da Secretaria. Com a ajuda de alguns funcionários envolvidos na proposta, foi montada a base que sustentaria a caixa. Para fazer surpresa, as professoras combinaram entre elas de colocar as cartas às terças-feiras.

Algumas crianças tomaram a iniciativa de ilustrar a caixa deixando-a com suas próprias marcas.

Chegou o grande dia de verificar a caixa de correio e, para surpresa do grupo, tinha uma carta endereçada ao G3, e as crianças, eufóricas, diziam à professora: Abre logo, Vivi!


3 Escola Colibri, localizada no município de Embu das Artes (SP).
4 Este nome foi inspirado no artigo Vai e vem poesia, de Adriana Klisys, publicado em 2002 na edição número 2 da Revista Avisalá, indicado aos professores no processo de formação desta escola.
5 Marina Estrauss Thuler é professora do 2o ano A e Rosangela Batista da Conceição de Jesus, do 2o ano B. 6 Leonardo Antunes Cunha, conhecido no mundo literário como Leo Cunha, nasceu em Bocaiúva e mora em Belo Horizonte (MG). Graduado em Jornalismo e Publicidade, pós-graduado em Literatura Infantil, mestre em Ciência da Informação, doutor em Cinema e professor universitário de Jornalismo desde 1997. É escritor, tradutor e jornalista.

Ao voltarem à sala para fazer a leitura em roda descobriram que a correspondência fôra enviada pela turma do 2o B. Continha um pensamento de Léo Cunha6:

Poeta tem mão de fada.
Quando ele escreve a caneta
voa que nem borboleta,
vira vareta encantada,
Não é mais caneta, não,
é varinha de condão.

Para responder, escolheram o poema que mais apreciam – A casa, de Vinicius de Moraes.

A proposta foi envolvendo quem gostava de poesia. Alguns funcionários também escreveram cartas para o G3.

Enviamos para os 2os anos um vídeo das crianças cantando A casa e uma carta explicando o passo a passo para acessarem o vídeo.

Paralelo ao projeto Vai e vem poesia, a Escola toda passou a desenvolver também o projeto Indicação literária. A poesia já estava presente em nosso cotidiano, assim como a leitura, a contação de histórias e o reconto oral, que já aconteciam nas turmas da Educação Infantil. Entendendo que fazer indicações é uma ação comum entre leitores, resolvemos aproveitar o repertório literário construído por todas as turmas e acionar o registro das leituras favoritas dos grupos, recomendando-as para outros grupos da Escola.

Quando lemos um livro interessante é comum sentirmos a vontade de compartilhar com as pessoas. As crianças também demonstram essa vontade quando pedem para ler de novo a mesma história, ou quando chegam à escola com um livro para que o professor leia para a turma toda.


7 Formação realizada em 2016 pelo Instituto Avisa Lá, a cargo da formadora Ana Carolina Carvalho com os professores da Escola Colibri, tendo como foco o projeto didático Indicação literária.

Formação continuada e indicação literária

A Escola investe na formação continuada de professores e, para o ano de 2016, nos dedicamos ao projeto institucional Indicação literária x formação: como indicar uma boa leitura para outra pessoa ou grupo e investir no acervo literário da sala de leitura.

O que as crianças aprendem com a escrita de indicações?

♦ A estrutura de escrita da indicação, estrutura do texto: como começa, como acaba, as perguntas para enlaçar o leitor.
♦ O que se pode falar sobre o livro.
♦ Ampliar o repertório de histórias – elas aprendem ao escrever que podem utilizar mais referências, fazer comparações etc.
♦ Que a escrita é diferente da fala, embora a escrita possa representar a fala. A criança percebe que para escrever não bastam ideias ou palavras soltas.
♦ A escrever um texto, mesmo antes de escreverem convencionalmente, porque são autoras do texto. É preciso planejamento, revisão, isto é, voltar muitas vezes ao texto; comparar aquilo que se queria escrever com o resultado, igualmente parte da revisão. Clareza de ideias, completude.
♦ A produzir oralmente um texto, mesmo antes de escreverem convencionalmente.

Os alunos aprendem, portanto, uma série de comportamentos escritores, como planejar o que se vai escrever, considerando o interlocutor; revisar o que se escreveu, voltando muitas vezes ao texto; a comparar aquilo que se queria escrever com o resultado.

No início do ano, quando a formadora7 apresentou o tema na formação, ficamos ansiosas e até preocupadas, pois era algo novo para o grupo.

O tempo foi passando e fomos ousando fazer indicação coletiva. O grupo escolhia os títulos literários após a apresentação de um repertório de histórias lidas pela professora.

Na semana seguinte, a professora planejou o momento da leitura inserindo os apontamentos feitos na formação: realizou a leitura diária, e o grupo escolheu uma leitura para fazer a indicação. Ela se ofereceu como escriba das ideias das crianças que produziam pequenos textos com partes importantes da história, uma vez que ainda não sabem grafá-los convencionalmente.

Os alunos indicaram a história da Ritinha bonitinha, de Eva Furnari, para o grupo de 5 anos. A indicação foi feita em um único parágrafo e, para surpresa e encanto das professoras, percebemos o quanto podemos aguçar e dar espaço para as crianças serem protagonistas. Alguns pontos essenciais foram:

♦ conhecer muitos textos de indicação ou semelhantes, como as resenhas informativas de catálogos de editoras;
♦ explicar o propósito e para quem vai escrever;
♦ garantir a autoria coletiva, ou seja, que todos
♦ possam dar ideias sobre a escrita do texto;
♦ escrever na frente do grupo;
♦ organizar o tempo;
♦ revisar o texto várias vezes.

A cada indicação elaborada ao longo do trimestre fomos percebendo os avanços das crianças no que diz respeito à expressividade infantil e à ampliação do repertório de palavras, inclusive aquelas identificadas na história. Notamos que várias indicações continham expressões extraídas dos textos. As professoras também foram se apropriando do gênero e fazendo intervenções conscientes após as crianças ditarem as ideias principais do que ouviram da história.

O que a literatura pode ensinar ao leitor-ouvinte

A experiência literária brinda o leitor-ouvinte com as coordenadas para que ele possa nomear-se e ler-se nesses mundos simbólicos que outros seres humanos construíram. E embora ler literatura não transforme o mundo, pode fazê-lo ao menos habitável, pois o fato de nos vermos em perspectiva e de olharmos para dentro contribui para que se abram novas portas para a sensibilidade e para o entendimento de nós mesmos e dos outros.8

O projeto de indicação literária foi ganhando proporção na escola. À medida que as professoras liam para os alunos, as crianças se dedicavam à leitura mesmo sem saber ler, voltando aos livros e explorando-os por conta própria, e faziam boas indicações dos livros para os colegas de seu grupo ou para outras turmas. Foi um projeto que proporcionou também mais integração entre as séries, aproximando crianças de diferentes faixas etárias. Foi o que aconteceu com as crianças das turmas do G3 quando foram até a sala do 1o ano B e fizeram a indicação do livro Porcolino e a vovó9.

Os alunos do 1o ano B ficaram muito interessados em conhecer a história e, por isso, decidiram ouvir juntos a leitura. As turmas se encontraram no parque, local onde se organizou uma grande roda, e o tão desejado livro foi lido. Para a estudiosa Claudia Molinari10, crianças que recomendam suas leituras a outras crianças ou aos adultos expressam seus gostos e suas preferências, selecionam o quê e como dizer para ganhar mais um leitor e avaliam o que ler, atendendo às recomendações dos outros. E foi o que o G3 fez indo até a sala do 1o ano para recomendar a leitura, deixando o grupo instigado a ouvir a mesma história.


8 Em Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação, de Yolanda Reys. São Paulo: Pulo Do Gato, 2015. p.28-29.

As experiências literárias das crianças se unem no universo da linguagem, seja no projeto Vai e vem poesia, seja nas indicações coletivas e rodas de leitura. Nesta experiência literária, retratada a seguir com um trecho da roda de conversa, as crianças ocupam os papéis principais de leitores-ouvintes e revelam seus saberes por meio de seus achados literários através da conversa. Como relata Cecília Bajour11, além de aprender a escutar os silêncios dos textos e colocá-los em jogo nas experiências de leitura, os mediadores podem aguçar o ouvido aos modos particulares que os leitores têm de se expressar e de fazer hipóteses sobre os seus achados artísticos.

História: A velhinha que dava nome às coisas
Texto: Cynthia Rylant
Ilustração: Kathryn Brown
Editora: Brinque-Book
Ano: 2013

Grupo 3
Professora Viviane: O que será a história de hoje?
Do cachorro?
Gabriel: Da vovó com topete.
Nathaly: Tem uma baleia.
Davi: Não!
Crianças: Baleia, baleia.
Crianças: Tem um carro, vovó com topete, carro
com topete, rua com topete.
Professora, lendo o que está atrás do livro (contracapa): O que há atrás do livro? Querem saber o que vai acontecer? Quem escreveu esse livro foi a Cynthia Rylant. Quem ilustrou foi a Kathryn Brown. Ele foi feito nos Estados Unidos.


9 De Margaret Wild e Stephen Michel King. São Paulo: Brinque Book, 2013.
10 Em: Uma atividade permanente – Clube de leitores. A escrita de recomendações pelas crianças da Educação Infantil. Maria Cláudia Molinari. Separata utilizada pela formadora durante o trabalho. 11 Em: Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.

Comentários das crianças

Gabriel: A velhinha tem topete, carro fusca, carro trem bem grandão e o farol deste tamanho.

Professora: A vovó fazia o quê?
Gabriel: Andava de carro. Camaro e Ferrari.
Davi: Vivi, o que o Gabriel disse?
Professora: Que a vovó andava de Camaro.
A professora inicia a leitura.
Gabriel: Anda de Camaro.
Gabriel: Eu não gosto dessa velhinha não.
Todos: Eu também não.
Professora: Por que você não gosta, Gabriel?
Gabriel: Tem um queixão deste tamanho. E nem trocou de casa.

Uma análise da transcrição da roda de leitura mostra como é importante o professor ampliar o universo discursivo do grupo de crianças trazendo para a roda as narrativas, o imaginário, o vocabulário e o linguajar próprio de cada um; convidando novos falantes para a roda; e, assim, o professor pode colorir ainda mais a profusão de sentido que a nossa língua permite e “garantir experiências que possibilitem vivências éticas e estéticas com outras crianças e grupos culturais, que alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e conhecimento da diversidade”12.

Todo o itinerário de leitura traçado culminou na mostra cultural em novembro de 2016, em que os produtos finais foram expostos para apreciação das famílias, deixando em evidência as produções das crianças: marcadores de indicações literárias, livro com o registro das indicações, correio poético.

Ao rever o percurso de aprendizagem de leitura, miro e vejo o quanto as crianças crescem e ampliam suas experiências quando inseridas em um universo literário. A literatura tem um poder grandioso de magia que encanta os pequenos e a todos os que estão à sua volta, a magia do brincar, do conhecer, do ser, do aprender e do conviver presentes na rotina. São grandes quintais literários por onde os alunos passam e revelam os exercícios de ser criança na modernidade, e acredito que isso eles levarão para a vida.


12 Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, 2010.
Posted in Revista Avisa lá #71.