Cenografia do conhecimento nos corredores da Escola

Ester broner¹


Os corredores de uma escola dizem muito sobre as concepções vigentes em relação à valorização do potencial expressivo e os conhecimentos dos alunos. espaços áridos ou que só apresentam produções dos adultos precisam ser transformados


1 Coordenadora Geral do Ensino Fundamental I e coordenadora pedagógica do 3o ano da Escola Castanheiras. Este artigo é parte de sua tese de doutorado, intitulada Cenografia do conhecimento: a dimensão estética da escola, defendida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (SP) em 2015.

A tarefa principal de um educador é fazer com que o mundo seja interessante. Nada mais do que isso. A arte é o que nos traz a carga sensível do mundo. A arte é o mundo como cor, como som, como textura, como rugosidade.

Jorge Larrosa Bondía²

A passagem da Educação Infantil ao Ensino Fundamental é uma via complexa e delicada para todos os que ali se encontram: crianças, pais e educadores. No entanto, as concepções de infância, desenvolvimento e aprendizagem que afetam estes ciclos de formação, não raro, se mantêm isoladas em seus territórios e desdobramentos pedagógicos. Ao contrário, o que se esperaria, em tempos de adaptação e de expectativa de acolhimento, seria a comunhão dos saberes e conquistas que, a duras penas, vem  ampliando a nossa visão sobre a escola, apresentando-a como um lugar de cultura, de produção de conhecimento e de integração social.

A história desta pesquisa sobre os espaços escolares aconteceu assim…

Em Ouro Preto, ouvi uma frase de um jovem estudante, guia turístico local, que enquanto me ensinava entusiasticamente a ler e interpretar os signos daquela maravilha de cidade mineira, um museu a céu aberto, respondeu sem pestanejar a uma pergunta que lhe fiz, repentinamente, sobre como era sua escola, imaginando-a integrada aos sentidos daquela paisagem. Em poucas palavras disse-me algo assim:

Ah, Dona, escola é escola em qualquer lugar. Minha escola não tem a beleza que vemos aqui. Não tem nada a ver com isso, não tem nada de bonito por lá.. Ela é contemporânea…

Esta frase soou forte como se fosse uma premissa entoada em coro por nossos estudantes, apossando-se de minhas inquietações e instigando-me a pesquisar formas de enfrentá-la. Escola é escola em qualquer lugar?


2 Disponível em: www.revistaeducacao.com.br/o-professor-ensaista/.

Escola, lugar de cultura

Foi assim que, produzindo um caminho de pesquisa, abordei a escola de Ensino Fundamental, segmento em que atuo como coordenadora, pela sua dimensão estética, buscando manifestações subjetivas em registros de aprendizagens dos alunos.

Ao contrário das demais dimensões presentes na maior parte das declarações a respeito do currículo, das didáticas, sobre os sistemas de avaliação, poderia afirmar que a dimensão estética é, de modo geral, pouco ou quase nada explorada neste segmento. Não raro, termina por ser delegada apenas aos professores de arte, talvez porque se acredite que são eles, e somente eles, que teriam o talento ou o “dom” para explorar este conhecimento na escola, quando não, estritamente em suas aulas. Crença aparentemente inofensiva para o alcance dos objetivos numa escola com foco em excelência em seus desempenhos acadêmicos, porém, fatalmente se tornará nociva por furtar aos demais educadores, e principalmente aos alunos e alunas, a oportunidade de mobilizar os sentidos, a percepção sensível, a produção subjetiva e criativa nos diferentes processos de aprendizagem.

Ter acompanhado o desenvolvimento de crianças em algumas escolas de ponta de Educação Infantil, nos primeiros tempos de minha formação como educadora, despertou-me logo a alegria e a curiosidade de observá-las explorando, interpretando e comunicando as suas percepções e ideias sobre as coisas do mundo. À medida que as experiências vividas pelas crianças aconteciam e amadureciam, as formas de comunicar os fenômenos com os quais interagiam ganhavam expressividade. Os cantos das salas guarnecidos de fantasias, adereços e utensílios sempre convidando ao exercício do jogo simbólico; lápis, pincéis, tintas e argilas chamando à criação e à capacidade expressiva; a generosa oferta literária expandindo a imaginação e as formas de ler e de dizer do mundo. Aos poucos, todo este conjunto de experiências ia modificando o espaço, deixando rastros, registros, criando conexões e afetando as nossas interações no ambiente.

Vivi boas experiências na Educação Infantil, ao longo dos anos³, que demonstraram que pode haver uma construção de um espaço qualificado pelas oportunidades de exploração e interação entre as crianças, organizado de forma acolhedora e
estimulante, identificado pelas produções e registros dos pequenos. Isso ganhou um lugar de importância na reflexão entre os educadores deste segmento. Esta é certamente uma conquista que marca o reconhecimento de uma cultura da infância e que se manifesta em signos próprios e genuínos. Mesmo que não se possa generalizar, sempre vale dizer que no âmbito das reflexões sobre a expressividade desta cultura, na Educação Infantil, o registro realizado pelas crianças, nos processos de desenvolvimento das linguagens – desenhos, pinturas, modelagens, escritas e outras construções lúdicas –, foi sendo reconhecido como principal manifestação simbólica deste universo e se apresenta, como força maior para superação do consumo de imagens estereotipadas e massificadas, como os personagens da Disney, por exemplo, ou mesmo das releituras, cópias das reproduções de obras de artistas, tema recorrente nas formações. Ao contrário, as marcas dos pequenos pesquisadores do mundo, à medida que ganham terreno, parecem refazer o gesto e o gosto primordial do Homem, de comunicar expressivamente suas experiências, atravessado por uma manifestação estética.


3 Trabalhei por anos no Jardim Experimental Escola Caracol, Itaim Bibi (SP), como professora; no Colégio Peretz como coordenadora de Educação Infantil e em projetos da rede pública, como as creches do município paulista São Caetano do Sul.

Por outro lado, ao entrar no Ensino Funda – mental, o que se revelou em seus espaços, trouxe de volta a voz do jovem estudante de Minas Gerais, instigando-me a observar e estranhar a aridez de seus ambientes, os vazios de seus corredores, tantas vezes sombrios, e aquela sensação de desconformidade estética, ou mesmo de abandono que parece resistir na arquitetura de nossas representações desta instituição.

Como dois fluxos de vida poderiam correr assim paralelos, insensíveis um ao outro? Por que, neste segmento, Ensino Fundamental, a produção de conhecimento não conquistou a espontaneidade e expressividade estética e, consequentemente, visibilidade na cultura institucional tal como havia se mostrado na Educação infantil?

Teria a aquisição de mais idade a condição de fazer do aluno um ser menos afeito aos encantos, aos impactos e às impressões sobre a vida, tornando o belo, o sensível, o inusitado das emoções, desnecessários num mundo de competições para o alcance de notas e índices de desempenho?

Estes estranhamentos se desdobraram em reflexões e ações de uma coordenadora pedagógica, dentro da escola de Ensino Fundamental, e ganharam também contornos de uma pesquisa acadêmica sobre os seus corredores. Escolhi deter-me neste espaço aparentemente insólito, como se ocupasse uma terceira margem, um lugar suspenso do tempo e do espaço do que é convencionalmente instituído como lugar de aprender, a sala de aula por exemplo, para poder observar e sentir, o que aprendemos e apreendemos na estética desses corredores, ainda que de forma inconsciente?

Ser afetado pelos corredores

Refletir sobre a estética dos corredores da escola exigiu-me antes um estudo da Estética, um ramo da Filosofia que investiga o belo, o mundo sensível, mundo das percepções, dos julgamentos e das emoções produzidas pelos fenômenos estéticos. Tomei também emprestado da Arte as reflexões produzidas em seus campos, em especial da museologia, assimilando questionamentos e conceitos para serem experimentados como instrumental de formação e trabalho pedagógico na escola. Curadoria, cenografia, público, exposição, percepção, experiência estética, estética da recepção, comunicação, forma e conteúdo são alguns dos conceitos que emprestei do universo da Arte e trouxe-os às nossas formações, explorando com os professores e coordenadores formas de ocupação dos corredores com as produções dos
alunos, não como objetos de decoração, mas visando, especialmente, à partilha e à qualidade na produção, recepção e repercussão de conhecimento em toda a comunidade escolar.

Interessava-me observar e sentir em que medida uma curadoria dos processos de aprendizagem, expondo cuidadosamente as produções nos corredores, tornariam visível, uma espécie de cenografia do conhecimento, o que, de certa forma, entrevia como poesia da aprendizagem, afetando, no sentido mesmo de “afeto”, toda a comunidade que a frequentava.

Esta relação entre experiência estética e experiência de aprendizagem se afirma na perspectiva de artistas, arte-educadores, curadores e filósofos. Na escola de Ensino Fundamental, porém, esta reflexão ainda parece subestimada. Para Eisner, professor da Universidade de Stanford, Estados Unidos da América, devemos prestar atenção às experiências sensíveis da arte pois elas nos ensinam sobre o ato de aprender. Segundo ele:

o sentido de vitalidade e a explosão de emoções que sentimos quando comovidos por uma das artes pode, também, ser assegurada nas ideias que exploramos com os estudantes, nos desafios que encontramos em fazer investigações críticas e no apetite de aprender que estimulamos.

Entendo a escola como um lugar de narrativas literárias, filosóficas, políticas, científicas, éticas ou culturais. Narrativas múltiplas de sentidos, orientadas por teorias educacionais que, por sua vez, também são narrativas explicando como aprender e ensinar acontece em cada lugar, em cada escola, em cada criança e assim se apresentam de muitas formas: em imagens fotográficas, desenhos, pinturas, escritas, sonoridades e performances inclusive. São como sínteses ou recortes dos processos de aprendizagem que, atravessados por uma visão estética, oferecem-se, em exposição, com fins de instigar o olhar, o diálogo, os pensamentos, outras possibilidades de leitura e aprendizagem sobre o mundo.

O que chamei de cenografia do conhecimento incide luz sobre estas narrativas elaboradas por alunos, alunas e professores, no processo de desenvolvimento de diferentes linguagens.

Conhecer o instrumental metodológico de uma curadoria e aplicá-lo à cultura escolar e suas produções, mobiliza nossa disposição para pensar e integrar ao planejamento a possibilidade de expor os trabalhos dos alunos, considerando as linguagens e suas especificidades, as necessidades de suportes adequados, ambientação, luz, sonoridades, cores, texturas, textos de apresentação, modos de mediação e especialmente, de diálogo com o público. Esses modelos vão sendo discutidos e elaborados com as crianças, refletindo sobre como melhor sensibilizar o público para as narrativas em exposição.

Aos poucos, à medida que as exposições vão ocupando os espaços, vamos percebendo os efeitos desta partilha do conhecimento, nesse caso, situada fora dos cadernos, dos livros didáticos e das salas de aula, mas nos corredores de escola, como se fora a pele de outro educador.

Neste entendimento, mais uma vez poderíamos reagir às palavras do menino guia de Ouro Preto – como poderiam ser as escolas, as mesmas em qualquer lugar? Quantas representações de escola são possíveis? Como poderíamos reduzir essa diversidade de processos a uma mesma agência social de reprodução de narrativas reapresentadas em todo o território nacional apenas pelo enquadre dos livros didáticos ou das avaliações externas?

Espaços que expressam a todos

O desejo de verter essas experiências mais afeitas ao universo da Arte e da Estética para a escola de Ensino Fundamental onde hoje trabalho, mobilizou o repensar de suas funções e identidades por todos nós. O público, afetado pelo projeto de exposições, composto de alunos e alunas, pais e funcionários da instituição, tem produzido diferentes leituras e novas narrativas ao se referirem à presença dos trabalhos nos corredores. Conferem à partilha um caráter de força da escola, de bem maior, de bem-estar, e manifestam sentidos de pertencimento. Alunos de uma série acabam conhecendo projetos de outras. Muitos participam de murais interativos. Hipóteses de alfabetização avançam na curiosidade pela leitura do que está exposto. Funcionários fotografam os murais com seus celulares para mostrarem aos seus familiares. Há visitas que podem ser guiadas pelos alunos que produziram a exposição. Os pais entram uma vez por semana para apreciar novas exposições. Valorizam-se o andar devagar e a apreciação dos trabalhos.

Abrimo-nos enfim à comunidade para discutir a função social e cultural da escola. Para romper o paradigma que a reduz às suas salas de aula, aos cadernos e provas, às carteiras imóveis e enfileiradas, às lousas fartas de conteúdos acumulados e prescritos em suas grades, aos seus muros e paredes que a apartam da cultura, da vida das pessoas e da vida da cidade. Mobilizações que já são parte fundamental de um projeto que poderia ser configurado como estético político-pedagógico, reafirmando a escola como lugar de conhecimento e de cultura para toda a comunidade, abrindo nossos corredores para visitação e para que se tornem, também, a cada dia, lugares de aprender.

Posted in Revista Avisa lá #70.