A criança e os quatro elementos

Lucília Helena Franzini¹


O olho inquisidor da criança, que precisa ver como é, que busca entender como são feitas as coisas, o que as transforma, essa avidez pela descoberta e a curiosidade que se traduzem em perguntas sem fim, levou nossa equipe a pensar e a organizar novas vivências com os quatro elementos naturais – terra, fogo, água e ar


O projeto em questão teve a intenção de ampliar a experiência da criança com a natureza consolidada nas brincadeiras e nos Cantos investigativos (experimentos ligados aos fenômenos e às ciências naturais), propondo a aproximação com a Arte.

Os elementos primordiais que constituem a vida, matérias que perpassam os sentidos, desbravam a imaginação da criança e alimentam as brincadeiras de quintal.

Trazem também a curiosidade, a manipulação e a investigação das matérias – olhar, agarrar, examinar, coletar, escavar, organizar, juntar, modelar, perceber formas e cores, peso, densidade, se é dura ou mole, se quebra, como é por dentro e por fora, enfim, descobrir a anatomia da natureza – é esse o sonho arqueológico de brincar e descobrir², que denotam a intimidade e o olhar atento das crianças para com ela.


1 Coordenadora da Escola Grão de Chão, São Paulo (SP).

Desde a origem da escola, a conexão – criança e natureza – sempre permeou os nossos princípios, por isso a importância de um quintal acolhedor onde as brincadeiras pudessem se desenvolver em meio a árvores, animais e no chão de terra. Numa cidade tão árida como São Paulo, é inegável o valor de um espaço cercado pela natureza, mesmo que ele seja pequeno. Desse modo, ao longo dos anos, foram inúmeras as contribuições que dele tivemos para a ampliação das brincadeiras e dos projetos. Não por acaso, o nome, Grão de Chão, inspirado por um poema de Thiago de Mello, surge da ideia de integração do homem com a natureza; da união das partes para fazer-se o todo.

O ambiente é sem dúvida um facilitador das experiências com os elementos da natureza e, na falta dele, propomos fazer a aproximação com a natureza a partir de excursões a parques, e da criação de acervo de materiais coletados pelas crianças e famílias, como pedras, cascas de madeira, argila expandida, folhas e flores secas, galhos, conchinhas, sementes e outros. No Grão, esses materiais são organizados em caixas ou potes transparentes, próximos ao chão de terra e tanque de areia, e também no ateliê de artes.

Nutrir o aparelho sensorial da criança das formas fundamentais, dos materiais primitivos, das substâncias que sustentam as coisas, é almejar uma pedagogia de repercussões internas… Se criarmos porosidade sensorial, habilidade perceptiva (tátil, visual, olfativa, gustativa), as formas tocam do corpo à alma. As formas naturais, ainda mais, pois são dadas ao corpo, do seu mesmo lastro bioquímico. (PIORSKI, 2016, p.70).

As ciências e as Artes Visuais sempre tiveram profunda interlocução na profusão de experimentos e na inventividade presentes no trabalho do artista e do cientista. Com base nas experiências com os quatro elementos (com materiais naturais e artísticos), ao final de um semestre de trabalho, construímos com as crianças uma “Instalação” – ambiente cheio de formas, cores, odores e sensações táteis. O projeto abarcou toda a escola e seis professores se encarregaram de pensar coletivamente as vivências expressivas e investigativas; o resultado foi bem diversificado, já que as experiências tomaram rumos diferentes.


2 Brinquedos do chão – a natureza, o imaginário e o brincar, de Gandhy Piorski. São Paulo: Peirópolis, 2016.

Brincar de investigar com fogo

O fogo, que hipnotiza por sua beleza, produz cores e movimentos, aquece, queima e transforma os materiais, acalma o observador e agita quem se aproxima dele; é o elemento que mais provoca sentimentos contraditórios nas crianças e nos educadores: medo, receio, admiração… Não é para menos, ele pode ser muito perigoso se a atividade não for muito bem planejada e organizada.

Para mexer com o fogo é preciso, inicialmente, aprender a respeitá-lo, por isso elegemos sempre esse elemento para pequenos rituais – homenagear, festejar ou agradecer algo. A fogueira é preparada e as crianças, sentadas em volta, em formação de roda, aprendem a observá-la, mantendo uma distância segura. O fogo entra também para o conforto do descanso diário, ao sabor de uma história e nas culinárias, durante o preparo dos alimentos.

A investigação direta da criança com o fogo deve acontecer sempre em pequenos grupos com a presença constante de um adulto. Outras dicas são importantes – antes de começar a atividade, tirar casacos de náilon ou lã e prender os cabelos, quando necessário. Para as crianças que têm muito medo do fogo, em um primeiro momento, deixá-las observar os amigos no contato direto e não insistir. Ao final, não há quem resista ao encantamento de participar das transformações causadas pelo aquecimento. Faz parte também à provocação de encostar o dedinho no material aquecido e tudo isso é muito saudável, muito importante para futuras experiências. Assim, os conteúdos atitudinais foram bem explorados já que foi grande a atenção com os procedimentos que envolvem a segurança das crianças.

Em Roda de Conversa, as crianças comentaram sobre situações em que mexeram com o fogo em casa, como na hora de cozinhar ou de acender velas. Uma criança contou que botou fogo no jornal e, a partir desse exemplo, retomei que precisam de um adulto para realizar atividades com fogo.

[…]
Algumas crianças ficaram hipnotizadas com o fogo, ainda assim fizeram traços e rabiscos com os palitos queimados. Outras demonstraram e falaram do medo. Com calma e com cuidado auxiliamos em aproximações sucessivas até que encostassem o material no fogo. Os sorrisos de algumas delas demonstraram o valor da conquista. (Escrita avaliativa do professor Pedro Braga, que desenvolveu as Oficinas com Fogo)

O trabalho com o fogo propiciou a percepção de texturas, formas, cores, odores, plasticidade e outras qualidades dos materiais (naturais e outros) e também a transformação e a reinvenção deles. Todas as atividades expressivas que tiveram o calor como disparador foram muito empolgantes.

O fogo produz fuligem e, com o auxílio de panelas velhas de metal, um grupo de crianças de três e quatro anos utilizou a fuligem da parafina e desenhou com pincel umedecido ou com o dedo. A inspiração veio dos grafites produzidos por Alexandre Orion, que tem como marca pessoal o desenho que surge da “limpeza” de túneis sujos pela poluição. A partir do fundo enegrecido, Orion usa panos para tirar a fuligem e criar figuras. O mesmo conceito foi usado com a água – as crianças desenharam com ela sobre o chão empoeirado. Com isso, aprofundou-se também a ideia da arte efêmera, que com o tempo se desfaz. Houve também a produção de fuligem a partir do giz de lousa e do carvão amassado no pilão, e as crianças desenharam sobre as mesas sujas.

Outro mote muito importante foram as experiências com gizes de cera: pequenos ou ressecados, eles foram reciclados e transformados pelo fogo em novos instrumentos e suportes para riscar. A argila, elemento da terra, fez-se molde para conter os materiais quentes; a experiência cresceu e testaram-se moldes de metal. Delicadas formas também surgiram da parafina colorida derretida pelas crianças e remodeladas para a brincadeira de fazê-las boiar na água. Impressionante foi também o uso da vela para desenhar diretamente no papel.

Muitas gostaram de por a ponta do dedo nas pequenas pocinhas de vela derretida que se formaram sobre o papel. Quando eu perguntei o que sentiam, responderam:

– É quentinho e gostoso!
(Escrita avaliativa da professora Sandra Syomara Oliveira Araújo, que desenvolveu as Oficinas com Fogo).

Água – um oceano de emoções

A criança nos mostra com toda a sua gestualidade o prazer decorrente do contato com a água: nas construções de encanamentos, nas modelagens de castelos de areia, nos banhos de  esguicho, nas poças encontradas após a chuva ou nas pias onde as mãos são lavadas incansavelmente. Mergulhada no imaginário, a criança cria porções mágicas e diverte-se com a ideia de, com elas, dominar bruxas, fantasmas e outras criaturas. A água, como bem disse a poetisa
Roseana Murray³, é um “oceano de emoções” e por isso o bloco de atividades com ela foi muito agradável para todos – adultos e crianças.

Além das brincadeiras, durante os momentos de exploração no ateliê ou no Canto Investigativo, as crianças descobriram que a água, sozinha ou misturada a outros materiais, torna-se fluida ou densa, fria ou quente, rala ou espessa, transparente ou colorida, e ao evaporar segue seu caminho pelo ar.

As atividades com água tiveram três momentos:

Lúdico – confecção de água colorida e poções cheias de gliter e purpurina.

Expressivo – utilização de elementos naturais e materiais artísticos para transformar a água:


3 Poetisa e escritora de obras infantojuvenis brasileira, nascida no Rio de Janeiro em 1950.

confecção de tintas naturais para encontrar novas cores e texturas; pesquisa com guache, nanquim e anilina para produção de tintas aguadas; pinturas escorridas com o manuseio de borrifadores e conta-gotas; desenho com água no chão e no papel; esculturas de gelo com flores secas.

Investigativo: observação da chuva e das poças provocadas no chão de terra; sensibilização com as diversas temperaturas da água; experiências de evaporar a água, fazer gelo e descongelar.

Nos cantos de exploração de materiais, todos aproveitaram bastante a proposta das águas (pintura com anilina aguada) e do fogo (desenho com giz de cera derretido na chama da vela). No primeiro dia, estava chovendo e esta característica do tempo apareceu nos desenho e nos borrões provocados pelo contato da água da chuva com a caneta preta. (Escrita avaliativa da professora Luciana Nunes Alves, que desenvolveu as Oficinas de Fogo e Água)

Durante as investigações das tintas aguadas, perguntamos se seria possível pintar com o sopro – as crianças descobriram que sim. Propusemos então misturar sabão na aguada e perceberam que, ao soprar, a tinta não escorria – criava lindas esculturas coloridas, bolhas que se avolumavam e subiam antes de estourar e se fixar no papel. O ar movimenta a água e também materiais leves como os papéis, por isso o bloco do ar foi quase todo dedicado a produzir brinquedos.

Ao brincar com o ar, a criança contempla o mundo, percebe a leveza e se encanta com o poder desse elemento tão misterioso e envolvente. Exploramos materiais leves e translúcidos (plásticos, celofanes) e papéis (seda, crepom) para criar brinquedos prontos, movimentos e histórias pelo AR. Surgiram bonecos, bichos, fadas, pipas e o que mais puderam inventar! Os brinquedos do ar ampliam a visão da criança, pois os materiais utilizados para criá-los necessitam do AR para ganhar movimento, vida!

(Depoimento da professora Silvia Bogik Haddad)

Os amigos da terra

A terra é o chão, o abrigo das sementes, das plantas, dos animais e das pessoas. Do solo vêm os alimentos, os pigmentos, o barro bruto e os elementos naturais que podem ser coletados. A pesquisa no quintal da escola, segundo Débora Francci (educadora da escola), “só faz o nosso trabalho crescer e ser belo”, porque ao aproximarmos a criança da natureza favorecemos o despertar dos seus sentidos e da sua imaginação.

Com a terra as crianças foram incentivadas a plantar, a colher e a colocar a mão na massa: transformá-la em tinta, em barro, misturá-la com argila, com areia e outros materiais.

O preparo da terra foi muito interessante para as crianças. Durante a conversa inicial, logo elas identificaram que era terra e que tinha vindo do Quintal. Sugeri que amassassem com as mãos, usando muita força para deixá-la em pedaços bem pequenos e que também podiam sentir o cheiro. Cada uma se serviu de uma porção de terra e começaram a socar com os bastões. Peneiraram, colocaram água e cola, e, por último, indicamos que poderiam escolher os suportes para pintar. Enquanto a atividade acontecia, procurei dar maior ênfase no uso da água para conseguir produzir tinta de terra.
(Escrita avaliativa da professora Sandra Syomara Oliveira Araújo, que desenvolveu as Oficinas com Fogo)

Com as sementes, galhos, flores, folhas, pedaços de argila, carvão e pedras, sugerimos inúmeras combinações para colagens e carimbos; e também para organizá-los no espaço (desenho do espaço lúdico), possíveis com os materiais com propriedades tridimensionais. Restos de madeira foram transformados em carvão ou queimados para servirem de suporte para desenhos e pinturas. Sementes e folhas foram trituradas e surgiram sachês, que possibilitaram a ampliação dos sentidos olfativos. Muito especial foi o trabalho com a argila:

O contato com a argila é sempre prazeroso para as crianças, que se apropriam do material com naturalidade e muita criatividade. Elas a usaram de diferentes formas: modelagem livre, modelagem com uso de instrumentos, desenho no papel, na parede ou chão (na forma de bastão ou massa) ou pintura (na forma de barbotina). A grande surpresa foi a proposta de assemblagem na parede: com a argila bem umedecida, ela serviu para desenhar na parede de azulejo e criar volume, com o uso, inclusive, de outros materiais naturais que foram fixados a ela, como galhos, folhas e flores”.
(Depoimento da professora Débora Francci)

Quando resolvemos trabalhar com os quatro elementos primordiais, não poderíamos deixar de pensar na preservação deles. A abordagem se fez pela arte indígena, incluindo as lendas, e também por artistas como Frans Krajcberg, que usa os restos das queimadas para construir sua obra, transformando a arte em manifesto para defender o ambiente.

A turma apreciou muito a ideia do artista de proteger a natureza e denunciar a destruição com a arte. Esse conceito foi levado muito a sério! Foi interessante ver as caras pensativas ao descobrir que a arte fala e faz as pessoas pensarem em coisas importantes. (Escrita avaliativa da professora Débora Francci, que desenvolveu as Oficinas da Terra)

Ao final, em nossa instalação, uma grande árvore, símbolo da natureza, foi construída para abrigar os amigos da terra, os guardiões do nosso Quintal – as crianças do Grão. Pensamentos e sentimentos se materializaram na Instalação e pudemos compartilhar o que foi vivido com os visitantes.

O Homem e os quatro elementos

Poema de Roseana Murray que gerou o nome da Instalação

A terra é o chão
Onde se planta a semente
E se cravam os pés
Feito bandeira
No fogo tudo começa e termina
Transmutação
Os pensamentos são o ar
Que nada aprisiona
Nenhuma barreira
Sentimentos são água
Oceano de emoções
Fazendo e refazendo o mundo
Equilibrar dentro do corpo
E da alma
Os quatro elementos
Essa tarefa do dia a dia

Posted in Revista Avisa lá #70.