Uma parceria para formar formadores

A parceria profissional não é tarefa fácil em nenhum trabalho. Vejam como duas técnicas desenvolveram uma colaboração produtiva com resultados efetivos na prática de formação


Edna da Silva Costa, Regina Lúcia Rodrigues¹

No Guarujá², a dupla de formadoras locais precisou organizar o trabalho de formação geral e específico do Programa Educação Infantil Santander – PEI3/Instituto Avisa Lá – IAL, de modo a superar o desafio tanto de dividir as tarefas, como de formar as equipes gestoras das creches do município.

A indicação pela Secretaria de Educação de uma dupla responsável por assumir e desenvolver as ações formativas é um dos critérios para participação no programa. Parte-se do princípio de que o trabalho em parceria potencializa o intercâmbio de ideias, a reflexão conjunta, a construção coletiva do conhecimento e a corresponsabilização das ações formativas.

Entretanto, o trabalho em dupla nem sempre é fácil e simples se considerarmos: o perfil de cada uma, o conhecimento sobre o objeto de estudo e sobre a faixa etária, a metodologia da formação, assim como a experiência de trabalho na rede e fora dela. Essa é a realidade da maioria das secretarias de educação. O relato a seguir dá um panorama de como organizam o trabalho e dividem as funções, considerando os perfis, as competências e os conhecimentos.


1 Formadoras locais da Secretaria Municipal de Educação do Guarujá.
2 Município de São Paulo, um dos 20 participantes da segunda edição (2014-2016) do PEI.
3 Desenvolvido pelo Instituto Avisa Lá em cooperação com o Ministério da Educação. Atua tanto na área de Gestão Pedagógica como na de Gestão para Saúde & Bem-Estar.

Nesta parceria técnica, observamos que ocupar o lugar de formadoras PEI/IAL em nosso município potencializou em nós algumas de nossas características: a de sermos curiosas, pesquisadoras e leitoras tanto dos materiais indicados como, principalmente, dos materiais que produzimos, tais como: registros dos encontros locais e das supervisões, anotações das palestras e das reflexões nos seminários presenciais. Esses registros tornaram visível nossa construção de conhecimento, porque pudemos aprofundar a análise do trabalho realizado na rede e ampliar nossa discussão para rever nosso olhar ou validar nosso percurso, num ciclo em que início, meio e fim se fundem.

Do ponto de vista de participantes da formação PEI/IAL, chegamos iguais: primeiro contato com a metodologia, primeira participação em reuniões on-line com pessoas de realidades tão diferentes dos diversos municípios participantes, primeiro contato com a elaboração e acompanhamento de um projeto institucional, entre outros momentos significativos do programa.

Mas saímos diferentes de cada participação, pois cada solicitação, comentário ou texto lido aciona em nós conhecimentos anteriores, que são modificados, ampliados ou ainda questionados.

Sentamos e conversamos sobre esses impactos. Sendo assim, já não somos mais as mesmas, fomos modificadas pelo estímulo externo e modificamo-nos internamente movidas pelo desejo de saber mais, de nos apropriarmos dessa metodologia de formação a ponto de sermos o modelo e de imprimirmos nele as nossas marcas.

Instrumentos que subsidiaram nossa prática

O livro Bem-vindo, mundo! – criança, cultura e formação de educadores4, adquirido pelas duas, é um material inspirador; dele retiramos o seguinte trecho, que exprime muito bem o efeito causado em nós nos momentos em que nos organizamos para redigir este relato:

A formação nesse programa, de certa forma, é uma viagem: temos data de partida e chegada; roteiro em mãos, sabemos onde queremos aportar, mas não temos certeza de como será nossa travessia, que aventuras enfrentaremos, que surpresas, dúvidas, medos e incertezas viveremos. Junto do mapa, trazemos conosco um diário para ser preenchido a bordo, um dos instrumentos mais importantes do educador nessa viagem.5


4 Idealizado pelo Instituto C&A de Desenvolvimento Social e pelo Instituto Avisa Lá.
5 CARVALHO, Silvia Pereira de; KLISYS, Adriana; AUGUSTO, Silvana (Orgs.). Bem-vindo, mundo! – criança, cultura e formação de educadores. São Paulo: Peirópolis, 2003. p. 163.

Outro instrumento que apoiou nossa atuação no programa foi o Guia de orientações para o formador, disponibilizado pelo IAL, que, além de informar sobre o PEI, explica, oferece referências teóricas que obviamente são importantes e garantem procedimentos para que o programa seja desenvolvido com excelência no município. No entanto, mesmo com o apoio desse material, ainda não sabíamos como iríamos nos organizar e realizar o trabalho em colaboração uma com a outra.

Foi no dia a dia de nossa prática que cada uma passou a identificar em si e na outra o que conseguíamos fazer melhor, com o que nos sentíamos confortáveis do ponto de vista de identificação e reconhecimento das potencialidades ao reunir e organizar os materiais enviados pela consultora do programa, bem como aqueles discutidos nas reuniões na plataforma.

Mas como identificamos isso? De modo geral, foi a partir de nossas conversas, que giravam em torno de:

Partilha de impressões do material enviado

Nossa conversa passava por: Como nos observamos na leitura do texto? Gostamos do que lemos? Foi uma leitura fluida? Ou o texto foi denso? Já havíamos lido algo do autor anteriormente? Ou escrito por outro? Identificamo-nos com as palavras do autor a ponto de ver algo do nosso trabalho ali refletido? Recuperamos falas de nosso colegas nas reuniões da plataforma ou ainda de nossa consultora, para que pudéssemos dialogar com o texto. Passado esse momento que se assemelha a uma tempestade de ideias, já com o texto lido, checávamos os aspectos que nos haviam chamado a atenção a ponto de grifá-los e verificávamos nossas anotações. Aqui já passávamos a nos observar e, assim, identificar nossas facilidades e fragilidades para cada um dos momentos de realização dos encontros de formação.

Estudo da Orientação de Pauta de Formação enviada pelo IAL

As orientações fornecidas também recebiam a mesma atenção e agíamos da mesma maneira descrita para os textos. Imprimíamos, então, uma cópia da pauta para cada uma. No material impresso registrávamos nossas discussões, ideias, os materiais que poderiam nos auxiliar. A Orientação de Pauta enviada se transformava num “mapa do percurso”: setas para os aspectos que conversavam entre si e que faziam todo o sentido para nosso município; trechos com marca-texto que mereciam atenção/destaque, seja porque necessitávamos entender melhor, seja porque iríamos somente mencionar, seja ainda porque precisávamos jogar-lhes luz; indicação de qual de nós duas seria responsável por pesquisar/verificar/trazer materiais que pudessem colaborar com o encontro. Nesse momento, também recuperávamos questões observadas nas visitas feitas periodicamente em nossas unidades, independentemente das ações previstas no programa, assim como orientações e observações enviadas por nossa consultora a partir dos registros que
produzíamos.

Elaboração da pauta do encontro

Após esse estudo e com esse rascunho do “mapa do percurso”, passávamos para o próximo passo: elaborar nossa pauta. A definição de quem faria a digitação ficava muito por conta de quem, naquele momento, tinha disponibilidade para fazê-lo. Depois, esse registro era encaminhado para a outra, para apreciação e ajustes que a parceira considerasse necessários.

Envio para a consultora

Com a pauta definida, cuidávamos da comunicação com nossa consultora. Utilizamos um recurso do Word de inserir comentários ao texto produzido.

Check-list para realização do encontro

A cada encontro de formação, produzimos uma check-list de tudo o que será necessário para sua realização: verificar a necessidade de envio de material por e-mail para as gestoras; selecionar esse material; averiguar o agendamento com as equipes de som e data-show e de cessão da sala na universidade; checar a disponibilidade de um motorista para levar café/água para o local; observar quantidade suficiente de descartáveis para o lanche; contatar a equipe de cozinha para fazer o café e separar todos os utensílios necessários para a montagem da mesa; definir qual de nós duas ficará responsável por imprimir a pauta e a lista de presença. Essa estratégia nos dá tranquilidade, uma vez que nos pautamos por uma organização que, quando consultada, permite que visualizemos nosso trabalho.

Organização do encontro de formação

Após a devolutiva da consultora e os ajustes solicitados, partimos para a montagem do PowerPoint e para a seleção do texto para leitura previsto nas pautas de formação. Geralmente, apoiamo-nos em autores de nossa preferência ou, ainda, em função do que observamos na rede, buscamos um texto que possa dialogar com essa observação. Outro ponto de partida é o texto/autor/tema proposto nas reuniões da plataforma. Para a leitura, alternamo-nos entre os encontros ou, a partir de nossas manifestações quanto ao texto, elegemos aquela que fará a leitura.

Encaminhamento do encontro de formação

Definir quem cuida de que item é algo que fazemos e tratamos a partir da consciência do que cada uma pode fazer, gosta de fazer ou entende que faz bem, numa tentativa de sermos justas uma com a outra – “Até aqui eu posso chegar… Daqui pra frente você pode se encarregar?”. Buscamos manter uma relação generosa entre nós, a partir de nossos perfis e dos aspectos positivos necessários tanto para o trabalho da formação PEI/IAL, quanto para nosso trabalho na rede.

Durante o encontro de formação

Enquanto uma toma a frente e conduz o item, a outra acompanha, evitando ao máximo fazer colocações que por vezes possam interromper o fluxo de pensamento. Contudo, a troca de olhares é um sinalizador de que a que acompanha gostaria de fazer um apontamento. Percebendo que a outra leu esse gesto, aguarda a oportunidade para se colocar. Enquanto isso, faz anotações das colocações da que está à frente e, principalmente, das colocações das gestoras. Essa é uma experiência, um exercício que requer uma escuta apurada de quem registra e também de quem está atuando no processo de reflexão com o grupo. Por fim, cada uma de nós se encarrega de digitar seu registro, enquanto uma fica responsável pela redação do texto final a partir dos trechos registrados.

Registros e reflexões no percurso

Como consultora do IAL, observei que a dupla foi aprendendo a se organizar e a trabalhar junto também diante das situações que iam se apresentando, como no encaminhamento das tarefas quando uma delas não estava presente – por estar de férias, por exemplo. O encontro do mês de maio de 2015 já havia sido organizado pela Edna, pois Regina estava de férias. Como não havia participado do processo de elaboração da pauta, Regina se propôs a acompanhar o desenvolvimento do encontro como observadora, além de fazer anotações das falas das gestoras para que pudessem retomar posteriormente. Prontificou-se, também, a redigir o relato do encontro de formação. O relato foi produzido, apreciado por Edna, retomado em alguns pontos por ela observados e, então, enviado para mim, consultora.

Perceberam, a partir dessa experiência, que registravam não somente as falas, mas também as impressões provocadas pelas discussões e reflexões realizadas nos grupos como propostas de encaminhamento para ações posteriores.

De acordo com as formadoras locais, essas anotações revelavam as várias informações, sensações e opiniões que precisavam ser consideradas para o processo formativo. “A nossa parceria foi permitindo, gradativamente, ajustes para produzir resultados que se transformaram em encaminhamentos durante as formações.” (Trecho do relato de campo das formadoras)
Renata Frauendorf

A elaboração do registro do encontro é feito a partir das anotações de cada uma. Um primeiro texto é produzido. Mas o material só segue para a plataforma do programa após leituras subsequentes e apontamentos quanto à necessidade de subtrair ou acrescentar questões que possam garantir que o material enviado revele nossos investimentos, nossas reflexões, possibilitando também uma via de diálogo com nossa consultora e/ou com a equipe do IAL. O relato constitui-se, para nós, em um documento que direciona nosso trabalho e se torna uma fonte de conhecimentos e saberes; dizemos isso tendo a escrita como parte do processo de formação e também como um aprendizado: aprendemos a estar atentas para a escuta das equipes, que foram revelando dados importantes daquilo que produzimos e nos propomos a trabalhar.

Outra ação que potencializa nosso trabalho em parceria é a visita e relato de supervisão. Aqui, cada uma assume seu segmento, uma vez que uma coordena a pré-escola e a outra, as creches. Interessante observar que essa não foi questão conversada e decidida, apenas realizamos assim. A cada visita de supervisão, naturalmente iniciamos uma conversa sobre o que foi observado, sobre o que sentimos, sobre o que nos alegrou e/ou angustiou. Fazemos isso em meio a outras tarefas de nosso cotidiano profissional. Da mesma forma, tratamos o registro dessa visita. Apesar de solicitarmos a apreciação pela outra de nossa produção, aqui não fazemos alterações, inserções, exclusões de trechos na produção inicial. Quando muito, apontamos erros de digitação e/ou gramaticais que porventura
tenham passado despercebidos.

E, por fim, um momento dedicado às reuniões dos formadores (Gestão para Saúde & Bem-Estar e Gestão Pedagógica) e à diretora de Educação Infantil. Elaboramos um Cronograma de Ações do Programa, com o objetivo de que a equipe da Diretoria de Educação Infantil tivesse uma visão geral da ação dos três formadores6 e pudéssemos, dessa maneira, garantir um remanejamento dos técnicos e diminuir o impacto de nossa adesão ao programa sobre as demais ações e competências da Diretoria. Elencamos então: reuniões na plataforma – tanto as gerais quanto as de grupo –; datas dos encontros de formação das duas gestões; datas de reuniões com equipes gestoras (diretoras e orientadoras), reuniões da Diretoria, formações pela empresa; e demais compromissos de cada coordenador. Optamos, então, por realizar uma vez por mês uma reunião entre os formadores e a diretora de Educação Infantil. Tínhamos como objetivo garantir um espaço para troca de informações e experiências e definir encaminhamentos e, principalmente, um espaço de acolhimento às dúvidas e possíveis questionamentos resultantes dessa experiência.

A dupla também podia contar com esse espaço junto à diretora de Educação Infantil para mediar não só eventuais discordâncias de opinião das formadoras em relação aos encaminhamentos dos encontros, mas também a ansiedade gerada pelas dificuldades enfrentadas, com o objetivo de chegar ao consenso nas tomadas de decisão. A dupla toma isso como um aspecto positivo, como uma oportunidade de crescimento tanto profissional quanto pessoal.

Foram inúmeras as ações que o programa exigiu: planejamento do cronograma e das ações de formação com as equipes gestoras, reuniões on-line, trocas contínuas com a consultora do IAL, supervisão e toda a documentação expressa a partir das pautas e relatos, bem como participação em uma avaliação externa. É trabalhoso, exige compromisso profissional, porque comporta muita autoria das formadoras locais, mas a atuação em parceria colaborativa dá o apoio necessário para desempenharmos nossas funções.


6 Duas de Gestão Pedagógica e um de Gestão para Saúde & Bem-Estar
Posted in Revista Avisa lá #68.